Capítulo 4 - OS PRESENTES DE BELA

CINDERELA

— Meu Deus, Bela! — Exclamo ao abrir a janela e encontrar Bela onde menos gostaria. — Não faz isso comigo. Você quer mesmo me matar do coração. Só pode.

— E por que eu iria querer matar minha única amiga? — Ela sorri e se vira para mim, seus cabelos castanhos voando para todo lado.

A garota tem toda uma casa para escolher qualquer lugar onde ler, mas ela prefere subir até o telhado.

Ela adora livros de aventura, e acha sua vida monótona demais. O sonho da minha amiga era ser policial, mas descobriu que ficaria apenas no sonho já que seu pai não a deixa fazer nada perigoso. Acho que é por isso que ela vive subindo nas coisas.

— Por favor, só converse comigo quando estiver com os dois pés no chão desse quarto. — Cruzo os braços.

— Medrosa! — Ela fecha o livro e sobe calmamente como se fosse uma gata andando pelo telhado, até passar pela janela e entrar. — Pronto.

— Depois diz que não precisa de babá — provoco.

Sei que ela odeia o fato de que o pai me contratou para fazer companhia/vigiar.

— Vou fingir que não ouvi isso da minha melhor única amiga. — Ela coloca o livro cuidadosamente sobre a mesa de cabeceira e acaricia a capa antes de se afastar. Os trata como bebês. — Sabe o que eu gostaria hoje? De uma aventura.

— Você sabe que eu preciso desse emprego... — meu tom mostra o quanto estou implorando.

Quando Bela fala assim é porque quer aprontar.

— Pode ser só um passeio pela praia então. Por favor, amiga. Meu pai me trata como uma boneca de porcelana. Tenho dezenove anos e não posso ir a uma livraria sem ser vigiada. Às vezes acho que ele está me preparando para um grande sacrifício humano.

— E eu acho que você anda lendo fantasia demais. Sacrifício?! — rio.

— Pois olha isso — ela mostra um convite igual ao da Anastácia.

— Anastácia também ganhou um. É só um convite para uma festa na casa onde seu pai trabalha.

— Trabalha é uma palavra muito fraca. Meu pai entregou a vida àqueles homens. Eu sei que devo a minha vida a eles, mas não quero virar uma escrava. O bem não deve pedir nada em troca.

— Bonito isso que você falou.

— É o que acho. — Ela desvia o olhar para a própria mão e se perde no silêncio que se segue.

— Aconteceu mais alguma coisa, Bela? Te conheço, você parece triste.

— Nada que eu não possa resolver. — Ela me olha dos pés a cabeça e muda o tom para mais alegre. — Nós calçamos o mesmo número, não é?

— Sim. Trinta e sete. O número da maioria das mulheres.

— Venha ver isso.

Sou puxada até o closet onde Bela pega uma caixa e abre.

Nunca vi nada tão lindo. O sapato que ela me mostra parece ser feito de cristal.

— Venha, experimenta.

— São de verdade? Parece enfeite.

— Além de ser de verdade, é confortável. Você verá.

Sento no puff que ela usa para calçar seus sapatos. E ela para na minha frente para me calçar.

— Deixa que eu coloco — diz.

Eu não brigo. Trabalho com Bela há três anos, e aprendi que ela não liga de fazer essas coisas para seus amigos. Pena que seu pai não deixa que tenha outras amigas, muito menos amigos, e como são só os dois, ela obedece a tudo que ele pede, mesmo que seja um pouquinho rebelde às vezes.

— O que acha? — pergunta depois de colocar o calçado em meus pés.

Levanto e dou uma volta de 360 graus. Meus olhos focados no sapato.

— Uau! Nem parece de vidro.

— É porque não é. Esse é um modelo exclusivo, único, e vale mais que a casa onde estamos. O material é segredo do design.

Minhas pernas amolecem só de saber disso.

— Preciso tirar agora. Se estragar, nem meus órgãos paga.

Bela gargalha.

Quando cansa de rir, ela fala:

— Quer viver uma aventura?

A aventura que minha amiga quer que eu viva é me passar por ela no baile de máscaras dos Seven. Eu devo usar os sapatos que valem mais que uma casa.

Confesso que fiquei tentada. Nunca fui a nenhuma festa assim. Já sai com alguns colegas na época da escola, mas depois que papai morreu eu virei um móvel da casa.

Mas não posso. É muito arriscado. Os convites são nominais. Nunca que vão acreditar que sou a Bela.

Neguei no primeiro dia, e nos dias seguintes, neguei quando ela me mostrou o lindo vestido azul estilo princesa, e neguei mais um pouco, até que ela me mostrou a máscara. Com o vestido e a máscara é impossível alguém me reconhecer. Mesmo que eu seja loira. É só falar que pintei o cabelo exclusivamente para a festa. E não é como se as pessoas naquele castelo conhecessem Bela. É o pai dela que trabalha lá e ele nem vai participar.

— Vamos, diz que vai fazer isso por mim, amiga — Bela implora fazendo um biquinho fofo. — Eu não quero ir. Prefiro ficar lendo. E se eu não for, papai virá com aquela história que devemos a vida a eles e blá blá blá. Se você for eu juro que faço o que você quiser, posso até pedir ao papai para ver com os Seven se conseguem a sua liberdade. Ele vai ficar feliz achando que compareci a festa, vai acatar qualquer pedido meu. Você precisa disso tanto quanto eu, amiga. Sabe disso. Não pode viver naquela casa sendo maltratada e com medo que a qualquer momento aquele monstro entre no seu quarto. Isso não é vida. Eu prometi que te ajudaria, então aceita minha ajuda.

Suas palavras trazem um misto de medo e esperança.

Às vezes acordo e, por alguns segundos, penso que aquilo não passou de um pesadelo, mas quando viro em direção a porta e vejo o móvel pesado diante dela, a minha única proteção, tudo volta e eu sei que vivi cada segundo daquela noite. Dói em minha alma como se tivesse acabado de acontecer. Ainda sinto o cheiro de cigarro barato, como se estivesse impregnado em mim, ainda ouço as palavras duras e ofensivas ao meu corpo, ainda sinto o meu corpo sendo rasgado, minha virgindade sendo tirada de mim a força.

Realmente preciso disso.

Chego a imaginar uma ordem de um dos Seven — qualquer um — me afastando de vez daquela família cruel. Porque eu não tenho mais coragem de fugir. Podem me chamar de covarde, tola, o que for. Eu sei que muitos me veem assim por viver como escrava da minha madrasta e seus irmãos, quando tenho idade suficiente para viver a minha própria vida. Quem está de fora não vê, só eu sei tudo que passei em minhas tentativas de fuga. A cicatriz no meu ombro e a cicatriz na minha alma são a maior prova do que a família Tedesco é capaz.

— Com uma condição — digo, me decidindo.

Bela b**e palmas, sorrindo de pura empolgação.

— Qualquer coisa.

— Nada de ler no telhado ou em qualquer lugar perigoso.

— No dia do baile ou nunca mais?

— Nunca mais, queridinha.

— Ah Ellaaa..

— Eu vou ficar ótima de pijama na minha cama... — começo.

Ela segura as minhas mãos.

— Tá bom. Nunca mais. Promete que vai?

Sorrio e digo:

— Prometo.

Ela dá vários pulinhos e me agarra.

— Obrigada! Prometo que você vai viver a melhor aventura da sua vida e que se fizer as escolhas certas, poderá ser livre e feliz para sempre.

Feliz para sempre... Até parece. Isso é coisa de final de livro infantil. A realidade é dura. Se eu tiver uma noite agradável já me darei por satisfeita. E se ela realmente conseguir com o pai que um Seven interfira com os Tedesco... ai sim esse seria o meu feliz para sempre.

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