RAOUL
Estou sentado em um parquinho, desses públicos onde tem aparelhos para adultos se balançarem como idiotas e chamarem de exercícios físicos. Um segurança me segue de perto. O vejo no carro do outro lado da rua, ele e o motorista estão prontos para qualquer coisa, é a rotina deles.
Saí da escola sem permissão, e não é a primeira vez. Odeio estudar aos sábados.
Os seguranças não interferem nessas coisas, apenas relata para o meu pai, que vai falar sozinho por alguns minutos sobre futuro e a necessidade de estudar.
Talvez eu fique de castigo, o que não é uma má ideia. Gosto de ficar sozinho no meu quarto, sem fazer nada, apenas deitado encarando as pequenas imperfeições do teto.
É mais divertido que ser obrigado a aturar as crianças da minha idade. Elas parecem que não foram fabricadas com o mesmo material que eu, são todas tolas e pegajosas. Não as suporto.
Desde o primeiro incidente que sou vigiado com muito rigor. Parece que não posso matar alguém por me contrariar. E matar o professor que puxou minha orelha foi exagero, segundo o meu pai.
Uma palhaçada toda essa baboseira. Por que aquele adulto sem noção podia me castigar por ser mais inteligente que ele e eu não poderia revidar? Não faz nenhum sentido.
O “adulto” ficava batendo na minha cabeça e falando sem parar. O estilete estava sobre a mesa, chamando por mim. Foi um alivio calar a boca daquele professor.
Mas parece que foi errado.
Suspiro, de puro tédio.
De onde estou, vejo uma criança pedalando uma bicicleta infantil na calçada.
Ela vai e volta na bicicleta cor de rosa.
Até ai não é nada incomum, já vi outras crianças fazendo o mesmo. O diferente é que essa menina está usando um capuz vermelho com uma capa tão longa que estou esperando pacientemente o momento em que vai enganchar em alguma parte da bicicleta e a derrubar.
Mal noto as outras pessoas, muito menos as outras crianças que me chamaram para um jogo qualquer. Parece que tudo ao meu redor foi abduzido e só resta aquela criatura de vermelho.
Eu quero ver essa menina cair. Quero ver ela aprender que não deve brincar com o perigo.
Ela vai e volta.
Percebo que a pele do seu braço é exatamente igual ao meu doce favorito: chocolate.
Ela vai e volta.
Percebo que é magra e pequena.
Ela vai e volta.
E mais nada.
Droga!
Uma, duas, três, quatro... várias vezes. A menina ri do perigo. A capa passa por um triz de enganchar, mas nada acontece. Nem uma quedinha. Fico intrigado. Isso deve estar errado.
Me levanto e caminho até a calçada, parando na sua frente.
Vejo a curiosidade em seu rosto de acordo com que se aproxima pedalando devagar, sem intenção de parar, como se soubesse que o obstáculo sairia da sua frente.
Ela está tão curiosa sobre o fato de que continuo parado — só pode ser isso — que não vê o filho da puta adulto e cego que também pedala pela calçada como uma criança aprendendo. O desgraçado a assusta ao passar colado a ela. Isso sim faz a menina de capuz vermelho cair quase aos meus pés, em um baque e um gemido de dor.
Sem graça e com os olhos castanhos claros — um tom tão brilhante quanto mel — cheios de lágrimas, ela levanta. O capuz finalmente caído sobre suas costas, revelando ondas de cachos de uma cor marrom que nunca vi em ninguém antes. É como sua pele, só que vários tons mais escuro.
Ainda estou parado, olhando para ela.
Não sei bem o que me chama a atenção nela, agora que já a vi caindo. Talvez sua cor, talvez seus cachos bagunçados... Sei lá.
Estou dividido. Parte de mim quer ir tentar alcançar o homem e o derrubar da bicicleta por ele ter atrapalhado a lição que a menina aprenderia ao cair sozinha. Enquanto a outra parte está presa ao chão, vidrado na menina que nesse momento estende um doce para mim. É uma barra de chocolate de uma marca barata. Seus olhos ainda brilham com as lágrimas causadas pela queda, como se fosse uma folha molhada da chuva que vejo no jardim da minha casa. Mas ela sorri, um sorriso pequeno que não mostra os dentes, apenas curva seus lábios.
Olho dela para o doce. E simplesmente me pergunto: O que acontece se aceitar?
Meu pai sempre faz de tudo para que eu enturme com as crianças da minha idade, sempre em vão. Ele ficaria feliz se eu levasse essa menina para casa?
Eu gosto de ficar sozinho. As pessoas me irritam e cansam facilmente. Tenho dez anos, mas prefiro conversar com os amigos do meu pai que com crianças.
Então por que ainda estou aqui?
— Não quer? — a menina pergunta. E não espera resposta. — Eu sou Carmine Lopes da Rocha. Tenho dez anos. Qual o seu nome?
Tão pequena e tem a minha idade.
— Eu esperei você cair — digo simplesmente.
— É um prazer te conhecer “eu esperei você cair”.
Reviro os olhos diante da brincadeira sem sentido.— Já que não quer... — ela se abaixa para levantar a bicicleta que ficou no chão e coloca o doce na cestinha da mesma. Durante o ato, ela pragueja várias vezes, muitos palavrões que meu pai proíbe em casa. Não se parece com as meninas ou meninos do meu colégio, sempre certinhos.— Você tem sorte, menina — digo, decidido a tê-la como minha primeira e única amiga.— A porra do meu joelho dói, não acho que seja sorte.Parece que ela não sabe falar sem incluir um palavrão.— Tem sorte porque chamou a minha atenção. Seremos amigos a partir de agora.Ela me olha por alguns segundos e simplesmente diz:— Eu não quero. Obrigada.O que? Até parece que essa menina vai me dizer não assim. Atrevida.— Por que não quer ser a primeira ami...— Primeira? — me interrompe, levantando a cabeça para olhar novamente meu rosto com interesse.Dou de ombros.— Possivelmente única. Não gosto de pessoas.— Mas eu sou uma pessoa. — Ela volta a colocar o capuz
Sete anos depois.RAOUL— Você vai mesmo me levar? — Carmine vira parte do corpo para me olhar na carteira atrás da que ocupa.Ela me encara piscando seus longos cílios que parecem maiores cada ano que passa. Seus olhos brilham como o mel nas minhas panquecas de manhã.Os olhos de Carmine nunca deixam de me hipnotizar desde que nos conhecemos e eu fiz da vida do meu pai um inferno até ele convencer os pais dela a aceitar que ela fosse bolsista no meu colégio. Como o colégio é muito longe da sua casa, meu motorista nos leva juntos há sete anos. Ela é como uma parte essencial do meu corpo. Depois daquele dia na praça, ficar longe dela me parece absurdo.Desvio o olhar para minhas anotações.— Eu nunca furei com você. Nem nas piores furadas que me obriga — respondo sem olhar para ela enquanto anoto algumas observações da aula de cálculo avançado.Ela nunca presta atenção na aula porque praticamente tem o idiota aqui como professor particular.— Vou comprar os ingresso da pré-venda, Teen
CARMINEAquele menino da praça, de olhar sombrio marcados por olhos cinzas, que hoje sei que são como os do pai, quem diria que seria meu melhor amigo?Ele diria.Depois de um tempo convivendo com Raoul, aprendi muito sobre o seu mundo. Ele não se envolve, as pessoas ao seu redor são sempre usadas por ele, seja por prazer ou por qualquer outro benefício. E não é sem querer, ele sabe tudo que faz e o que causa nas pessoas, só não liga. É como se não tivesse a capacidade de se importar com os sentimentos alheios ou consequências. Quando ele quer uma coisa, não tem nada que fique em seu caminho.Foi exatamente assim naquele dia em que nos conhecemos. Eu lembro que não ofereci muita resistência, mas posso dizer que ele não desistiria enquanto eu não dissesse sim ao seu estranho pedido de amizade.Nos dias seguintes eu ouvi várias conversas dos meus pais. Meu padrasto não confiava muito no homem cheio da grana que bateu em nossa porta me oferecendo uma bolsa de estudos. Ele só o convenceu
RAOULOuço as batidas leves na porta. Uma batida. Duas seguidas e logo três seguidas. É o código. A porta se abre e Carmine entra, caminhando a passos rápidos até a cama, onde joga a mochila e se joga bufando.— Chega pra lá, idiota!— Seu jeito carinhoso é o que mais me encanta — digo me afastando para ela se deitar ao meu lado. — Isso não é cara de quem gozou.— Ainda sou a virgem imaculada. Ele terminou comigo. Disse que sou cega e que vai voltar pra Minas. Ah, e disse que me ama.— Nessa ordem?Ela encara o teto enquanto diz:— Sei lá. Nunca mais me deixa namorar nenhum babaca. Já decidi: serei a tia dos seus filhos. Nunca mais vou namorar.A imito, encarando o teto.— E quem disse que terei filhos? Pode parar de me incluir em seus planos furados.— Que péssimo amigo você é.— Termina comigo então.— Babaca! — bate de leve no meu braço. — Você devia me consolar.— Humm não. Já faço demais por você.— Faz porra nenhuma. — Senta na cama. — Eu é que faço demais te aturando.— Vem aqu
CARMINE— Está melhor do termino? — Raoul pergunta distraído enquanto andamos para fora do colégio.Como sempre, sob olhares dos outros alunos, principalmente do sexo feminino.Tenho quase certeza que essas garotas matariam alguém que namorasse o Raoul. Elas fazem de tudo para chamar a atenção dele. Algumas até mesmo sobem a saia do uniforme para mostrar mais.Nosso uniforme é de saia e sapatos na cor preta e blusa branca e o dos rapazes é de calça e sapatos na cor preta e terno preto com gravata, por cima da camisa branca. Às vezes me sinto em uma série de TV quando chego no colégio. O problema é que essas roupas não combinam com o clima da nossa cidade. Tenho até pena dos garotos.Voltando as garotas assanhadas... Eu não ligaria se fosse apenas isso, se elas apenas dessem mole para ele, mas elas me hostilizam por causa dele, têm raiva por sermos tão próximos e ele não se aproximar delas, mesmo tendo comido a maioria.As ignoro, como sempre.— Sim. Comi um monte de bolo de chocolate
Reviro os olhos enquanto entrego o suco deles e bebo um pouco do meu.— Namora esse daqui. Pelo menos eu sei que ter meu chocolate é garantido. — Vovó continua com sua falta de senso.— Que a senhora nem pode comer muito — rebato.Ela bufa.— A Carmine só namora babacas, vovó. Eu não me encaixo nessa categoria. — Raoul atiça. Quando esses dois estão juntos, não sei quem é mais chato.— Porque você é frouxo e não pegou ela de jeito.— Vovó! — quase cuspo o suco. Hoje ela está inspirada.Raoul ri e me encara com sua melhor cara de safado.— Devo te pegar de jeito, Chapeuzinho?Porra de apelido ridículo.Devolvo seu olhar na mesma medida e digo:— Por que não pega um pau grande e grosso e chupa?A risada dele vira gargalhada e minha avó do mal o acompanha.— Vocês serão um casal barulhento. Ainda mais quando vier os filhos.— Ignora isso, Raoul. Pelo amor de God. — Me viro para minha vó. — Se a senhora continuar me empurrando pra ele, meu amigo nunca mais vai querer te visitar, sua velha
CARMINEOdeio menstruação.Estou com cólica e dor de cabeça. Justo hoje que é o dia de assistir A pequena sereia. Não, eu não sou muito romântica, gosto de filmes de ação, fantasia e terror, mas tenho essa queda por produções da Disney. Vejo tudo que lançam.Quando piso o pé no portão da escola, começo a desejar dar meia volta e voltar para minha cama.Raoul faltou, o que não é novidade.Agradeço ao segurança e ao motorista dos Seven que me levam mesmo quando ele falta e entro nesse mar de adolescentes.— Oi, amiga. Sozinha hoje? — Nick, uma das minhas colegas de classe e minha amiga, comenta me dando o braço.— Pois é. Tem gente que não precisa estudar como os meros mortais.— Aquele deus grego tem tudo. — Ela suspira. — Você é uma sortuda.— Não sou... — antes que eu termine de falar sinto uma mão agarrar meu cabelo e puxar com força para trás.Os cachos estão soltos. Me acostumei com eles assim depois de desistir de brigar com Raoul por sempre soltá-los.A pessoa puxa como se quise
RAOULO celular toca o alarme do despertador e eu simplesmente desligo e volto a dormir.Não quero ir ao colégio hoje. As aulas do último ano parecem sempre repetitivas. Posso adivinhar cada explicação dos professores. Isso é um saco.O celular toca novamente.Quando estou prestes a desligar definitivamente, meus olhos encontram a sacola sobre a mesa de cabeceira.— Droga! Não posso faltar hoje. — Saio da cama resmungando.Os chocolates na sacola é a prova que minha amiga está nos dias em que matar um se torna possível para ela. Carmine precisa dos seus remédios.Quando saio do castelo em direção aos carros estacionados, vejo que o carro que nos leva já não está mais aqui. Claro que não. Estou atrasado, a obrigação do motorista é garantir a carona da minha amiga, mesmo que eu não esteja.Não demora para um motorista se oferecer para me levar quando me vê no uniforme ridículo do colégio. O fato de todos se vestirem iguais é tedioso.— Acelera — ordeno quando entro no carro.O homem obe