Reviro os olhos diante da brincadeira sem sentido.
— Já que não quer... — ela se abaixa para levantar a bicicleta que ficou no chão e coloca o doce na cestinha da mesma. Durante o ato, ela pragueja várias vezes, muitos palavrões que meu pai proíbe em casa. Não se parece com as meninas ou meninos do meu colégio, sempre certinhos.
— Você tem sorte, menina — digo, decidido a tê-la como minha primeira e única amiga.
— A porra do meu joelho dói, não acho que seja sorte.
Parece que ela não sabe falar sem incluir um palavrão.
— Tem sorte porque chamou a minha atenção. Seremos amigos a partir de agora.
Ela me olha por alguns segundos e simplesmente diz:
— Eu não quero. Obrigada.
O que? Até parece que essa menina vai me dizer não assim. Atrevida.
— Por que não quer ser a primeira ami...
— Primeira? — me interrompe, levantando a cabeça para olhar novamente meu rosto com interesse.
Dou de ombros.
— Possivelmente única. Não gosto de pessoas.
— Mas eu sou uma pessoa. — Ela volta a colocar o capuz na cabeça. Parece me analisar em busca de sinais evidentes de loucura. Não a culpo. Afinal, estou aqui convidando uma estranha para ser minha amiga.
— Tenho minhas dúvidas sobre isso.
— De qualquer forma, não seremos amigos. Não é assim que uma amizade começa.
— E como começa? — questiono confuso. Nunca me falaram que existem regras para se começar uma amizade.
— Primeiro, um pretendente a amigo não fica encarando só a espera do outro cair. O normal é amparar o amigo.
— Em minha defesa, eu não queria ser seu amigo enquanto esperava você cair. Além disso, não sou normal.
— Percebi — diz empurrando a bicicleta para longe.
— Vou com você. — A sigo, caminhando ao seu lado enquanto ela empurra a bicicleta.
— Nem sabe onde vou.
— Não importa.
Ela dá de ombros e continua andando.
— Quer mesmo ser meu amigo? — pergunta depois de uns cinco minutos andando em silêncio.
— Por que mais eu andaria com uma estranha?
— Vai saber! — Ela para e me oferece o chocolate novamente. Dessa vez aceito. — Se é isso, me fale sobre você.
— Eu moro com meu pai e meus irmãos. Minha mãe morreu — digo o que acho básico.
— Sinto muito pela sua mãe. — Faz uma careta estranha, uma mistura de pena com sei lá o que.
— Não a conheci, não posso dizer que faz falta. — Coloco as mãos nos bolsos da calça do uniforme. Oculto o fato de que ela morreu no meu parto. Essa menina parece o tipo que faz grandes demonstrações de pena. Não quero presenciar isso. — Sua vez.
— Eu moro com minha mãe e meu padrasto, que eu amo como se fosse meu pai de sangue. Meu pai de verdade é um maldito viciado que nos deixou na sarjeta. Pelo menos é isso que escuto minha mãe dizer pra vovó, eu nunca o vi.
— Quer que eu peça ao meu pai para matar o seu pai? — ofereço.
Um homem que deixa a família na sarjeta, deve ser permitido matar. São tantas regras que o senhor Seven impõe. Tedioso.
— Como? — ela para, me olha e cai na gargalhada. — Você é estranho, um estranho lobinho mauzinho.
— Prefiro que me chame de Raoul, Chapeuzinho Vermelho. — Chamar ela assim faz com que a menina toque o seu capuz, como se fosse a primeira vez que alguém a compara a garotinha sem noção dos contos de fadas.
Lobinho? Essa menina precisa levantar a cabeça para me encarar. Não tenho nada de “inho”.
— Não, eu gosto de lobinho mauzinho. Vou te chamar assim para sempre, agora que seremos amigos.
Devo me arrepender agora, eu sei.
— Por que quer me chamar assim?
— Eu vi você me olhando um tempão. Parecia um animal mau esperando para atacar a ovelha indefesa. Só que se engana, eu sou brava. Já fiquei de castigo por bater em garotos maiores que você.
Parece mais indefesa que brava. E eu não consigo imaginá-la batendo em alguém.
Não falamos nada por mais de um minuto, foi o bastante para ela achar tempo demais.
— Já que seremos amigos para sempre, vou te chamar de lobinho mauzinho, depois de lobo mau e quando ficar velho de lobão mauzão.
Eu tento não rir, mas é impossível.
O que eu estou fazendo com essa menina empurrando essa bicicleta rosa ao meu lado?
— Por que me chama de Chapeuzinho Vermelho?
— Obviamente pelos seus trajes.
— Não tem chapéu. É um capuz.
— Capuz iria estragar o apelido. Você é a Chapeuzinho Vermelho, como nos contos.
— Não gosto de histórias infantis.
— Nem eu. Caso não conheça, te apresento a versão dos Irmãos Grimm.
Ela dá de ombros.
— Minha mãe diz que vermelho espanta mau olhado e manda as energias ruins para longe. É a cor da proteção. Uso esse manto com capuz quase sempre, e sempre levo uma fita no pulso. — Ela levanta o braço mostrando uma fita vermelha gasta. O capuz também já teve dias melhores.
Continuamos conversando sobre qualquer coisa até chegar em uma casa pequena com portão de madeira e fachada amarela. Essa é uma parte da cidade que nunca visitei.
— Até mais, Chapeuzinho — digo dando meia volta, sabendo que o carro com motorista e segurança me segue discretamente.
— Espera. E quando vou te ver de novo?
Dou de ombros e respondo:
— Em breve.
Vou embora sem olhar para trás. Tenho planos.
Sete anos depois.RAOUL— Você vai mesmo me levar? — Carmine vira parte do corpo para me olhar na carteira atrás da que ocupa.Ela me encara piscando seus longos cílios que parecem maiores cada ano que passa. Seus olhos brilham como o mel nas minhas panquecas de manhã.Os olhos de Carmine nunca deixam de me hipnotizar desde que nos conhecemos e eu fiz da vida do meu pai um inferno até ele convencer os pais dela a aceitar que ela fosse bolsista no meu colégio. Como o colégio é muito longe da sua casa, meu motorista nos leva juntos há sete anos. Ela é como uma parte essencial do meu corpo. Depois daquele dia na praça, ficar longe dela me parece absurdo.Desvio o olhar para minhas anotações.— Eu nunca furei com você. Nem nas piores furadas que me obriga — respondo sem olhar para ela enquanto anoto algumas observações da aula de cálculo avançado.Ela nunca presta atenção na aula porque praticamente tem o idiota aqui como professor particular.— Vou comprar os ingresso da pré-venda, Teen
CARMINEAquele menino da praça, de olhar sombrio marcados por olhos cinzas, que hoje sei que são como os do pai, quem diria que seria meu melhor amigo?Ele diria.Depois de um tempo convivendo com Raoul, aprendi muito sobre o seu mundo. Ele não se envolve, as pessoas ao seu redor são sempre usadas por ele, seja por prazer ou por qualquer outro benefício. E não é sem querer, ele sabe tudo que faz e o que causa nas pessoas, só não liga. É como se não tivesse a capacidade de se importar com os sentimentos alheios ou consequências. Quando ele quer uma coisa, não tem nada que fique em seu caminho.Foi exatamente assim naquele dia em que nos conhecemos. Eu lembro que não ofereci muita resistência, mas posso dizer que ele não desistiria enquanto eu não dissesse sim ao seu estranho pedido de amizade.Nos dias seguintes eu ouvi várias conversas dos meus pais. Meu padrasto não confiava muito no homem cheio da grana que bateu em nossa porta me oferecendo uma bolsa de estudos. Ele só o convenceu
RAOULOuço as batidas leves na porta. Uma batida. Duas seguidas e logo três seguidas. É o código. A porta se abre e Carmine entra, caminhando a passos rápidos até a cama, onde joga a mochila e se joga bufando.— Chega pra lá, idiota!— Seu jeito carinhoso é o que mais me encanta — digo me afastando para ela se deitar ao meu lado. — Isso não é cara de quem gozou.— Ainda sou a virgem imaculada. Ele terminou comigo. Disse que sou cega e que vai voltar pra Minas. Ah, e disse que me ama.— Nessa ordem?Ela encara o teto enquanto diz:— Sei lá. Nunca mais me deixa namorar nenhum babaca. Já decidi: serei a tia dos seus filhos. Nunca mais vou namorar.A imito, encarando o teto.— E quem disse que terei filhos? Pode parar de me incluir em seus planos furados.— Que péssimo amigo você é.— Termina comigo então.— Babaca! — bate de leve no meu braço. — Você devia me consolar.— Humm não. Já faço demais por você.— Faz porra nenhuma. — Senta na cama. — Eu é que faço demais te aturando.— Vem aqu
CARMINE— Está melhor do termino? — Raoul pergunta distraído enquanto andamos para fora do colégio.Como sempre, sob olhares dos outros alunos, principalmente do sexo feminino.Tenho quase certeza que essas garotas matariam alguém que namorasse o Raoul. Elas fazem de tudo para chamar a atenção dele. Algumas até mesmo sobem a saia do uniforme para mostrar mais.Nosso uniforme é de saia e sapatos na cor preta e blusa branca e o dos rapazes é de calça e sapatos na cor preta e terno preto com gravata, por cima da camisa branca. Às vezes me sinto em uma série de TV quando chego no colégio. O problema é que essas roupas não combinam com o clima da nossa cidade. Tenho até pena dos garotos.Voltando as garotas assanhadas... Eu não ligaria se fosse apenas isso, se elas apenas dessem mole para ele, mas elas me hostilizam por causa dele, têm raiva por sermos tão próximos e ele não se aproximar delas, mesmo tendo comido a maioria.As ignoro, como sempre.— Sim. Comi um monte de bolo de chocolate
Reviro os olhos enquanto entrego o suco deles e bebo um pouco do meu.— Namora esse daqui. Pelo menos eu sei que ter meu chocolate é garantido. — Vovó continua com sua falta de senso.— Que a senhora nem pode comer muito — rebato.Ela bufa.— A Carmine só namora babacas, vovó. Eu não me encaixo nessa categoria. — Raoul atiça. Quando esses dois estão juntos, não sei quem é mais chato.— Porque você é frouxo e não pegou ela de jeito.— Vovó! — quase cuspo o suco. Hoje ela está inspirada.Raoul ri e me encara com sua melhor cara de safado.— Devo te pegar de jeito, Chapeuzinho?Porra de apelido ridículo.Devolvo seu olhar na mesma medida e digo:— Por que não pega um pau grande e grosso e chupa?A risada dele vira gargalhada e minha avó do mal o acompanha.— Vocês serão um casal barulhento. Ainda mais quando vier os filhos.— Ignora isso, Raoul. Pelo amor de God. — Me viro para minha vó. — Se a senhora continuar me empurrando pra ele, meu amigo nunca mais vai querer te visitar, sua velha
CARMINEOdeio menstruação.Estou com cólica e dor de cabeça. Justo hoje que é o dia de assistir A pequena sereia. Não, eu não sou muito romântica, gosto de filmes de ação, fantasia e terror, mas tenho essa queda por produções da Disney. Vejo tudo que lançam.Quando piso o pé no portão da escola, começo a desejar dar meia volta e voltar para minha cama.Raoul faltou, o que não é novidade.Agradeço ao segurança e ao motorista dos Seven que me levam mesmo quando ele falta e entro nesse mar de adolescentes.— Oi, amiga. Sozinha hoje? — Nick, uma das minhas colegas de classe e minha amiga, comenta me dando o braço.— Pois é. Tem gente que não precisa estudar como os meros mortais.— Aquele deus grego tem tudo. — Ela suspira. — Você é uma sortuda.— Não sou... — antes que eu termine de falar sinto uma mão agarrar meu cabelo e puxar com força para trás.Os cachos estão soltos. Me acostumei com eles assim depois de desistir de brigar com Raoul por sempre soltá-los.A pessoa puxa como se quise
RAOULO celular toca o alarme do despertador e eu simplesmente desligo e volto a dormir.Não quero ir ao colégio hoje. As aulas do último ano parecem sempre repetitivas. Posso adivinhar cada explicação dos professores. Isso é um saco.O celular toca novamente.Quando estou prestes a desligar definitivamente, meus olhos encontram a sacola sobre a mesa de cabeceira.— Droga! Não posso faltar hoje. — Saio da cama resmungando.Os chocolates na sacola é a prova que minha amiga está nos dias em que matar um se torna possível para ela. Carmine precisa dos seus remédios.Quando saio do castelo em direção aos carros estacionados, vejo que o carro que nos leva já não está mais aqui. Claro que não. Estou atrasado, a obrigação do motorista é garantir a carona da minha amiga, mesmo que eu não esteja.Não demora para um motorista se oferecer para me levar quando me vê no uniforme ridículo do colégio. O fato de todos se vestirem iguais é tedioso.— Acelera — ordeno quando entro no carro.O homem obe
Finalmente Carmine dormiu. Tive que ouvir muito hoje por causa de uma vadia que nem sei quem é direito. Ela não falou o que a garota alegou para atacá-la, preferiu me xingar com todo seu estoque de palavrões. Mas eu vou descobrir. Assim que colocar as mãos na pessoa que teve a ousadia de machucar minha Chapeuzinho, ela vai me dizer até o que eu não perguntar. Sei que as merdas que aquelas alunas disseram não passa disso: merdas.O pescoço da minha amiga está arranhado. E ela teve que tomar remédio para dor por causa dos puxões no cabelo.Um braço quebrado é mínimo que aquele idiota merece por ter dado uma de maluco. Ao invés de separar as duas, ele aproveitou para machucá-la. Tenho certeza que foi pelo fora que ela deu nele pouco antes de começar a namorar o sonso do Diego.E realmente foi injusto culparem apenas ela. Tenho que ligar para o meu pai e pedir que interfira, ou terei que incendiar aquela escola.Saio devagar da cama para não acordá-la. Deixo os livros e caderno no mesmo l