CARMINE
Aquele menino da praça, de olhar sombrio marcados por olhos cinzas, que hoje sei que são como os do pai, quem diria que seria meu melhor amigo?
Ele diria.
Depois de um tempo convivendo com Raoul, aprendi muito sobre o seu mundo. Ele não se envolve, as pessoas ao seu redor são sempre usadas por ele, seja por prazer ou por qualquer outro benefício. E não é sem querer, ele sabe tudo que faz e o que causa nas pessoas, só não liga. É como se não tivesse a capacidade de se importar com os sentimentos alheios ou consequências. Quando ele quer uma coisa, não tem nada que fique em seu caminho.
Foi exatamente assim naquele dia em que nos conhecemos. Eu lembro que não ofereci muita resistência, mas posso dizer que ele não desistiria enquanto eu não dissesse sim ao seu estranho pedido de amizade.
Nos dias seguintes eu ouvi várias conversas dos meus pais. Meu padrasto não confiava muito no homem cheio da grana que bateu em nossa porta me oferecendo uma bolsa de estudos. Ele só o convenceu quando disse que seu filho tinha dificuldades de fazer amigos, mas que não foi assim comigo. A sinceridade dele os convenceu.
Com o ouvido encostado na porta do quarto, ouvi tudo, até os vários minutos que meus pais levaram elogiando a filha, euzinha.
— Em que cê tá pensando? Tá rindo com uma cara de besta. — Diego me traz para o presente.
E não, não vou socá-lo por me chamar de besta. É o seu jeito de falar. Ele atura meus palavrões e eu meu divirto com seu dialeto.
— Nada. Só lembrando dos meus pais. Já escolheu o filme?
Ele deixa o controle da televisão de lado e se encosta no sofá. Sua expressão não é nada boa. Parece se preparar para contar algo. Nunca o vi tão inquieto como nos últimos dias.
Conheci Diego no primeiro dia de aula dele, transferido de outra escola. Ele tem sotaque do interior de Minas Gerais, além de usar muitas palavras e termos do local, um prato cheio para alunos maldosos. Me tornei amiga dele por isso. Meio que usei o fato de que nossos colegas têm medo de Raoul e me associa a ele, assim qualquer um que eu adotasse ficaria protegido. Acabamos nos aproximando com as constantes faltas do meu melhor amigo no colégio. Um dia rolou um beijo, e logo um pedido de namoro. Eu aceitei. Ele é um loiro lindo e seu sotaque é tão gostoso de ouvir.
Estou pensando em nossos meses de namoro quando ele diz:
— Carmine, eu vô vortá pra Beagá e queria que cê fosse junto. Eu te amo.
Três coisas que eu não estou preparada para ouvir. Vou embora. Vem comigo. Eu te amo.
Fico paralisada, olhando para ele a espera de que diga que imaginei o que acabei de ouvir.
Ele passa a mãos nos fios loiros.
— Num vai falar nada, sô? — pergunta.
Foi real. Ele realmente disse as três coisas.
— Eu não saberia o que dizer, Diego. Eu gosto de você, mas não posso abandonar a minha vida e simplesmente me mudar por um namorado de escola. É loucura, você sabe. — Sou sincera.
— Um namorado de escola. — Ele ri com certa amargura e se levanta, parando na minha frente. — O que cê num pode largá, Carmine? Seu lobim?
O que que esse idiota está dizendo? Seu ciúme do Raoul é tão... nem sei como definir.
Sem contar que ele pode perder os dentes usando a palavra “lobim”.
— Eu não preciso dizer para você que a minha família está aqui, todos que eu amo. E sim, isso inclui o meu amigo.
— E cê num me ama. — Não é uma pergunta. E eu não respondo. — Cê é tão cega que chega a ser besta.
É minha vez de me levantar. O fato dele ser pouco maior que eu ajuda a nos deixarmos cara a cara.
— Besta é o olho do seu cu. — Perco a calma. — Pelo jeito você quer um motivo pra terminar brigado comigo. Se era apenas isso, vou embora.
— Que pressa. O seu lobim tá esperanu. Vai!
Odeio que ele mantenha a voz baixa até quando grito com ele. Nunca parece irritado de verdade.
— Não gosto do seu tom, Diego. Se quer me dizer algo, seja claro. Esse seu ciúme do meu melhor amigo chega a um nível ridículo de idiota.
— Vô dexá que descubra sozinha. E espero que perceba quando for tarde dimais.
— Eu não tenho que ouvir isso. — Decido ir embora para que esse termino não fique pior, mas ele segura meu braço.
Estamos novamente frente a frente.
— Eu te amo, Carmine. Te amo de verdade. — Toca meu rosto com o carinho que já conheço, não desvio. — De um jeito egoísta.
— E por isso quer brigar comigo quando está me dando um pé na bunda?
Ele sorri de canto. É fofo esse babaca.
— Até parece que arguém é capaiz de dá um pé na bunda de Carmine Lopes da Rocha.
— Você é o primeiro.
— Desculpe. Eu tenho que ir. Minha mãe piorô da depressão e meus pais precisam de mim. Tão tudo na capitá com minhas tia.
E a raiva se transforma em pena.
— Sinto muito por isso.
— Pode me abraça? — abre os braços com um sorriso pequeno desenhado em seu rosto.
Simplesmente aceito seus braços.
— Úrtimo bejo de despedida?
— Não. Vamos terminar como amigos, da mesma forma que começamos.
Diego vai perceber que exagerou com essa história de amor. Só temos dezessete anos. Minha mãe me arrastaria pelos cabelos se eu ao menos cogitasse a possibilidade de ir para outro estado por um garoto.
— Tentei. — Ele ri, e acompanho. Quando paramos ele me faz encarar seus olhos verdes como duas esmeraldas. — Promete que num vai dexá aquele minino te magoá?
Nem preciso que diga quem.
— Ele é meu melhor amigo. Isso nunca vai acontecer.
Ele só balança a cabeça.
— Ainda podemos ver o filme? — mudo de assunto. Não quero que seu ciúme do meu amigo seja o tópico da nossa última conversa.
Nos sentamos, e encosto a cabeça em seu ombro. Ele pega a pipoca que ficou sobre a mesinha de centro e nós dividimos enquanto rimos com Venom na televisão.
Não falamos mais sobre Raoul, muito menos sobre amor.
E assim, passo minhas últimas horas com meu primeiro namorado. Ele diz que não vai mais voltar às aulas. É um adeus.
Quando nos despedimos, ele rouba um beijo e fala que espera termos a chance de voltar a nos encontrar.
Apenas sorrio em resposta. Porque sei que ele sente mais que eu. Algo em mim diz que não voltaremos a nos encontrar.
É definitivamente um adeus.
RAOULOuço as batidas leves na porta. Uma batida. Duas seguidas e logo três seguidas. É o código. A porta se abre e Carmine entra, caminhando a passos rápidos até a cama, onde joga a mochila e se joga bufando.— Chega pra lá, idiota!— Seu jeito carinhoso é o que mais me encanta — digo me afastando para ela se deitar ao meu lado. — Isso não é cara de quem gozou.— Ainda sou a virgem imaculada. Ele terminou comigo. Disse que sou cega e que vai voltar pra Minas. Ah, e disse que me ama.— Nessa ordem?Ela encara o teto enquanto diz:— Sei lá. Nunca mais me deixa namorar nenhum babaca. Já decidi: serei a tia dos seus filhos. Nunca mais vou namorar.A imito, encarando o teto.— E quem disse que terei filhos? Pode parar de me incluir em seus planos furados.— Que péssimo amigo você é.— Termina comigo então.— Babaca! — bate de leve no meu braço. — Você devia me consolar.— Humm não. Já faço demais por você.— Faz porra nenhuma. — Senta na cama. — Eu é que faço demais te aturando.— Vem aqu
CARMINE— Está melhor do termino? — Raoul pergunta distraído enquanto andamos para fora do colégio.Como sempre, sob olhares dos outros alunos, principalmente do sexo feminino.Tenho quase certeza que essas garotas matariam alguém que namorasse o Raoul. Elas fazem de tudo para chamar a atenção dele. Algumas até mesmo sobem a saia do uniforme para mostrar mais.Nosso uniforme é de saia e sapatos na cor preta e blusa branca e o dos rapazes é de calça e sapatos na cor preta e terno preto com gravata, por cima da camisa branca. Às vezes me sinto em uma série de TV quando chego no colégio. O problema é que essas roupas não combinam com o clima da nossa cidade. Tenho até pena dos garotos.Voltando as garotas assanhadas... Eu não ligaria se fosse apenas isso, se elas apenas dessem mole para ele, mas elas me hostilizam por causa dele, têm raiva por sermos tão próximos e ele não se aproximar delas, mesmo tendo comido a maioria.As ignoro, como sempre.— Sim. Comi um monte de bolo de chocolate
Reviro os olhos enquanto entrego o suco deles e bebo um pouco do meu.— Namora esse daqui. Pelo menos eu sei que ter meu chocolate é garantido. — Vovó continua com sua falta de senso.— Que a senhora nem pode comer muito — rebato.Ela bufa.— A Carmine só namora babacas, vovó. Eu não me encaixo nessa categoria. — Raoul atiça. Quando esses dois estão juntos, não sei quem é mais chato.— Porque você é frouxo e não pegou ela de jeito.— Vovó! — quase cuspo o suco. Hoje ela está inspirada.Raoul ri e me encara com sua melhor cara de safado.— Devo te pegar de jeito, Chapeuzinho?Porra de apelido ridículo.Devolvo seu olhar na mesma medida e digo:— Por que não pega um pau grande e grosso e chupa?A risada dele vira gargalhada e minha avó do mal o acompanha.— Vocês serão um casal barulhento. Ainda mais quando vier os filhos.— Ignora isso, Raoul. Pelo amor de God. — Me viro para minha vó. — Se a senhora continuar me empurrando pra ele, meu amigo nunca mais vai querer te visitar, sua velha
CARMINEOdeio menstruação.Estou com cólica e dor de cabeça. Justo hoje que é o dia de assistir A pequena sereia. Não, eu não sou muito romântica, gosto de filmes de ação, fantasia e terror, mas tenho essa queda por produções da Disney. Vejo tudo que lançam.Quando piso o pé no portão da escola, começo a desejar dar meia volta e voltar para minha cama.Raoul faltou, o que não é novidade.Agradeço ao segurança e ao motorista dos Seven que me levam mesmo quando ele falta e entro nesse mar de adolescentes.— Oi, amiga. Sozinha hoje? — Nick, uma das minhas colegas de classe e minha amiga, comenta me dando o braço.— Pois é. Tem gente que não precisa estudar como os meros mortais.— Aquele deus grego tem tudo. — Ela suspira. — Você é uma sortuda.— Não sou... — antes que eu termine de falar sinto uma mão agarrar meu cabelo e puxar com força para trás.Os cachos estão soltos. Me acostumei com eles assim depois de desistir de brigar com Raoul por sempre soltá-los.A pessoa puxa como se quise
RAOULO celular toca o alarme do despertador e eu simplesmente desligo e volto a dormir.Não quero ir ao colégio hoje. As aulas do último ano parecem sempre repetitivas. Posso adivinhar cada explicação dos professores. Isso é um saco.O celular toca novamente.Quando estou prestes a desligar definitivamente, meus olhos encontram a sacola sobre a mesa de cabeceira.— Droga! Não posso faltar hoje. — Saio da cama resmungando.Os chocolates na sacola é a prova que minha amiga está nos dias em que matar um se torna possível para ela. Carmine precisa dos seus remédios.Quando saio do castelo em direção aos carros estacionados, vejo que o carro que nos leva já não está mais aqui. Claro que não. Estou atrasado, a obrigação do motorista é garantir a carona da minha amiga, mesmo que eu não esteja.Não demora para um motorista se oferecer para me levar quando me vê no uniforme ridículo do colégio. O fato de todos se vestirem iguais é tedioso.— Acelera — ordeno quando entro no carro.O homem obe
Finalmente Carmine dormiu. Tive que ouvir muito hoje por causa de uma vadia que nem sei quem é direito. Ela não falou o que a garota alegou para atacá-la, preferiu me xingar com todo seu estoque de palavrões. Mas eu vou descobrir. Assim que colocar as mãos na pessoa que teve a ousadia de machucar minha Chapeuzinho, ela vai me dizer até o que eu não perguntar. Sei que as merdas que aquelas alunas disseram não passa disso: merdas.O pescoço da minha amiga está arranhado. E ela teve que tomar remédio para dor por causa dos puxões no cabelo.Um braço quebrado é mínimo que aquele idiota merece por ter dado uma de maluco. Ao invés de separar as duas, ele aproveitou para machucá-la. Tenho certeza que foi pelo fora que ela deu nele pouco antes de começar a namorar o sonso do Diego.E realmente foi injusto culparem apenas ela. Tenho que ligar para o meu pai e pedir que interfira, ou terei que incendiar aquela escola.Saio devagar da cama para não acordá-la. Deixo os livros e caderno no mesmo l
RAOULDepois de tudo que aconteceu hoje, estou mais que disposto a um pouco de ação. Só espero que Henry realmente me mostre um pouco disso. Porque se ele vier com alguma negociação verbal será nele que vou descontar minha frustação.Seguimos até um lugar relativamente deserto. É um galpão em uma parte da cidade que parece abandonada. Pelo caminho ele me conta que vamos encontrar um policial corrupto que anda extorquindo pequenos comerciantes. Um deles é uma senhora que foi uma das primeiras a lavar dinheiro para nossa família. Pelo menos é o que fiquei sabendo.Quando chegamos, Henry me deixa com o verme que permanece covardemente ajoelhado.Fico olhando para ele sem interesse. Até que uma voz me chama:— Ei, garoto! — Olho e vejo uma velha meio curvada, com cabelos totalmente brancos e um vestido florido brega, tanto quanto a bolsa enorme que também tem estampas florais. Ela se aproxima.Não falo nada. Sua presença não é problema meu.Ela para ao meu lado e aponta o verme.— Aquele
CARMINECorro pela floresta. O vento forte balança meus cabelos, mas não derruba meu capuz vermelho, por mais que suas pontas voem para todo lado. Depois de muito correr, encontro uma parede. É a terceira vez que encontro a mesma parede. Esse lugar não tem saída. Decido correr perto dela até encontrar uma porta ou o seu fim. Os galhos arranham meu rosto e meus braços, manchando-os de um carmesim intenso, meu sangue. Ouço uivos assustadores que fazem meu coração disparar. Estou fugindo de um lobo. Sei que estou.Finalmente chego a uma porta, que abro com dificuldade. O que? Agora estou em um quarto. É o quarto do meu melhor amigo. Não uso mais o capuz e não estou ferida, estou com um vestido vermelho justo e curto, e meus cabelos estão livres pelas minhas costas e ombros.Raoul sai do banho com um toalha enrolada na cintura, os cabelos molhados pingam na sua pele e minhas mãos coçam por tocá-lo. Eu me lembro desse dia. Foi preciso berrar alguns comandos na minha mente para não encar