Sete anos depois.
RAOUL
— Você vai mesmo me levar? — Carmine vira parte do corpo para me olhar na carteira atrás da que ocupa.
Ela me encara piscando seus longos cílios que parecem maiores cada ano que passa. Seus olhos brilham como o mel nas minhas panquecas de manhã.
Os olhos de Carmine nunca deixam de me hipnotizar desde que nos conhecemos e eu fiz da vida do meu pai um inferno até ele convencer os pais dela a aceitar que ela fosse bolsista no meu colégio. Como o colégio é muito longe da sua casa, meu motorista nos leva juntos há sete anos. Ela é como uma parte essencial do meu corpo. Depois daquele dia na praça, ficar longe dela me parece absurdo.
Desvio o olhar para minhas anotações.
— Eu nunca furei com você. Nem nas piores furadas que me obriga — respondo sem olhar para ela enquanto anoto algumas observações da aula de cálculo avançado.
Ela nunca presta atenção na aula porque praticamente tem o idiota aqui como professor particular.
— Vou comprar os ingresso da pré-venda, Teen Wolf. — Sorri amplamente.
— Se me chamar assim mais uma vez, talvez eu te leve para conhecer a Ariel pessoalmente no fundo do mar.
Sua resposta é uma careta.
— Não sei como ainda sou sua amiga. — Volta a olhar para frente, fazendo drama. Como se houvesse a remota chance de eu cumprir minha palavra.
Me curvo para frente só para sussurrar no seu ouvido:
— E eu não sei por que tenho que ir nessa furada quando seu namorado está a duas carteiras de distância.
O pulo que Carmine dá na cadeira chama a atenção do professor e dos outros alunos.
— Algum problema, senhorita Lopes? — o homem gorducho e grisalho a encara entediado.
Nosso professor é o motivo para muitos irem mal na matéria, é chato. Acho que ele não gosta da profissão.
Muitas risadinhas mal disfarçadas partem dos nossos colegas.
— Des-culpe, senhor. — Ela gagueja.
Seguro uma gargalhada. Principalmente ao ver a forma curiosa como seu namorado a olha.
Antes que o homem fale mais alguma coisa, o som estridente informando o fim das aulas toma conta do lugar.
Carmine me encara novamente, seus olhos brilhando de fúria.
— Já falei pra não fazer isso, porra!
Sim, já falou, inúmeras vezes, mas me divirto com sua ira.
Levanto as mãos em rendição. Só que ela sabe que não significa nada. Eu vou fazer de novo. Seu pescoço e orelha são seus pontos fracos e é divertido provocá-la.
Nada de sussurro. Essa é a regra que não sigo.
— Palhaço! Se o professor me desse uma advertência eu nunca mais falaria com você — reclama enquanto guarda suas coisas.
— Tá com raivinha? Isso significa que não preciso me sujeitar a ver A pequena sereia?
— Isso significa que você vai ficar até o fim dos créditos.
— Vamo, amor? — Um loirinho pouco mais alto que ela segura sua cintura. — Minha tia num tá em casa não, a gente pode assisti um filme até ela chegá.
— Alguém vai transar hoje? — provoco.
O rapaz fica vermelho. Ele é todo tímido. Costumo dizer que Carmine o adotou por ele sofrer bullying com seu jeito mineiro de ser. Sua fala mansa e diferente diante de cariocas agitados causa brincadeiras maldosas. Confesso que não entendo tudo que esse cara fala. Às vezes ele parece que veio de outro planeta. Mas nem posso reclamar, afinal eu nem falo como um carioca “raiz”. Meu pai exige um português com o mínimo de influências regionais. Amaymon é muito exigente.
Se ele ficou vermelho, Carmine... seu olhar em minha direção é de alguém prestes a cometer um assassinato.
— Vamos embora, Diego. Esse lobo não tomou o remédio dele hoje.
Ela sai arrastando o garoto sem olhar para trás.
Ainda fico parado, me perguntando por que tenho que assistir filme da Disney no lugar do babaca loiro.
Esse namoro não foi um bom negócio para mim. Continuo me sentindo meio que escravo dessa garota atrevida.
Pego minha mochila e saio devagar pelos imensos corredores repletos de alunos andando e conversando entre si. Não falo com ninguém pelo caminho. Carmine é a minha única amiga. As pessoas desse lugar já desistiram de tentar, o que agradeço. São tão... previsíveis, chatas e medrosas. A maioria não pode ouvir meu sobrenome que falta curvar em reverência. Que irritante!
A palavra transar volta a minha mente enquanto estou saindo, então simplesmente mudo a direção dos meus passos até um grupo de líderes de torcida.
Miro uma loirinha de poucas curvas e caminho até parar na sua frente. Suas colegas se afastam dando risadinhas e cochichando.
— Oi, Raoul! — ela diz, colocando os fios loiros atras da orelha.
A garota sabe qual o único motivo para eu ir até ela.
Trocamos meia dúzia de palavras e ela aceita prontamente me seguir até o vestiário masculino, vazio nesse momento.
Nunca me lembro o nome delas, mas elas não parecem se incomodar. Sempre topam repetir a dose.
Chego em casa, e uma reunião familiar me espera no escritório do papai.
Estão quase todos aqui, exceto Adam e Florian. Eu praticamente não os vejo.
— Pai, o que estamos fazendo aqui? O senhor só nos reúne de portas fechadas quando o assunto é grave — pergunto me jogando em uma poltrona.
Antes de me responder, ele chama a atenção dos meus irmãos. Só responde quando todos estão olhando em sua direção.
— Vocês sabem o último desejo de sua mãe.
— Ela quer ver do céu todos os filhos casados — respondo distraído, porque meu celular vibra no bolso.
Disfarçadamente, abro a mensagem de Carmine e vejo a foto dos ingressos.
Maldito filme!
Carmine nem gosta dessas coisas. Ela gosta mesmo é de me torturar. Quase um mês de espera por essa porcaria. Esse mês vai ser longo.
Meu pai volta a falar, mas não dou muita atenção. Só vejo Felipe resmungar alguma coisa e sair.
Noto que todos ficam em silêncio. Devem ter dito algo que fez meu irmão lembrar de Aurora. Nem tento entender essas coisas de relacionamento amoroso. Se apegar ao ponto de deixar de viver pela pessoa, isso não é algo que eu acredite.
Antes que voltem a falar, me levanto.
— Eu ainda estou no ensino médio, acho que posso ficar por último nessa fila. Pai, se o senhor permitir, quero sair. Tenho um trabalho para fazer com a Chapeuzinho Vermelho.
Papai me olha por alguns instantes. Esse é seu jeito de permitir.
Quando passo por Henry, não resisto e lhe lanço um sorrisinho maldoso. Sei que vai sobrar para ele essa história de casamento.
O idiota me mostra o dedo do meio, e diz:
— O Raoul já tem pretendente. Pode esperar alguns meses e colocar ele no altar com essa tal menina de vermelho.
É sério isso? Outra vez?
Eles querem que eu faça amigos, e quando faço, vem as piadinhas. Talvez prefiram que Carmine fosse homem.
— Não diga asneiras, cuzão. Ela é minha melhor amiga, crescemos juntos, somos quase irmãos — respondo com os dentes cerrados.
Não gosto que façam piadas com minha amiga, nem mesmo meus irmãos.
Sim, a minha amiga é gostosa, não sou cego, mas eu jamais estragaria algo que está dando certo por uma foda. Tem muitas opções para foder, já uma amiga como ela, não creio que exista outra.
Mas Henry até está certo em uma coisa... Não, ainda não está na hora de pensar em casamento.
— Chega, meninos! — papai interfere.
Eu não espero mais nada. Saio. Tenho mais o que fazer que ouvir essas palhaçadas.
Sigo para o meu quarto e coloco Bon Jovi no último volume enquanto tomo banho e me deito na cama, olhando o teto com a mente em branco.
Marquei para fazer esse trabalho só no fim da tarde. O motorista vai buscar Carmine. Enquanto isso, farei o que tem de mais divertido: absolutamente nada.
CARMINEAquele menino da praça, de olhar sombrio marcados por olhos cinzas, que hoje sei que são como os do pai, quem diria que seria meu melhor amigo?Ele diria.Depois de um tempo convivendo com Raoul, aprendi muito sobre o seu mundo. Ele não se envolve, as pessoas ao seu redor são sempre usadas por ele, seja por prazer ou por qualquer outro benefício. E não é sem querer, ele sabe tudo que faz e o que causa nas pessoas, só não liga. É como se não tivesse a capacidade de se importar com os sentimentos alheios ou consequências. Quando ele quer uma coisa, não tem nada que fique em seu caminho.Foi exatamente assim naquele dia em que nos conhecemos. Eu lembro que não ofereci muita resistência, mas posso dizer que ele não desistiria enquanto eu não dissesse sim ao seu estranho pedido de amizade.Nos dias seguintes eu ouvi várias conversas dos meus pais. Meu padrasto não confiava muito no homem cheio da grana que bateu em nossa porta me oferecendo uma bolsa de estudos. Ele só o convenceu
RAOULOuço as batidas leves na porta. Uma batida. Duas seguidas e logo três seguidas. É o código. A porta se abre e Carmine entra, caminhando a passos rápidos até a cama, onde joga a mochila e se joga bufando.— Chega pra lá, idiota!— Seu jeito carinhoso é o que mais me encanta — digo me afastando para ela se deitar ao meu lado. — Isso não é cara de quem gozou.— Ainda sou a virgem imaculada. Ele terminou comigo. Disse que sou cega e que vai voltar pra Minas. Ah, e disse que me ama.— Nessa ordem?Ela encara o teto enquanto diz:— Sei lá. Nunca mais me deixa namorar nenhum babaca. Já decidi: serei a tia dos seus filhos. Nunca mais vou namorar.A imito, encarando o teto.— E quem disse que terei filhos? Pode parar de me incluir em seus planos furados.— Que péssimo amigo você é.— Termina comigo então.— Babaca! — bate de leve no meu braço. — Você devia me consolar.— Humm não. Já faço demais por você.— Faz porra nenhuma. — Senta na cama. — Eu é que faço demais te aturando.— Vem aqu
CARMINE— Está melhor do termino? — Raoul pergunta distraído enquanto andamos para fora do colégio.Como sempre, sob olhares dos outros alunos, principalmente do sexo feminino.Tenho quase certeza que essas garotas matariam alguém que namorasse o Raoul. Elas fazem de tudo para chamar a atenção dele. Algumas até mesmo sobem a saia do uniforme para mostrar mais.Nosso uniforme é de saia e sapatos na cor preta e blusa branca e o dos rapazes é de calça e sapatos na cor preta e terno preto com gravata, por cima da camisa branca. Às vezes me sinto em uma série de TV quando chego no colégio. O problema é que essas roupas não combinam com o clima da nossa cidade. Tenho até pena dos garotos.Voltando as garotas assanhadas... Eu não ligaria se fosse apenas isso, se elas apenas dessem mole para ele, mas elas me hostilizam por causa dele, têm raiva por sermos tão próximos e ele não se aproximar delas, mesmo tendo comido a maioria.As ignoro, como sempre.— Sim. Comi um monte de bolo de chocolate
Reviro os olhos enquanto entrego o suco deles e bebo um pouco do meu.— Namora esse daqui. Pelo menos eu sei que ter meu chocolate é garantido. — Vovó continua com sua falta de senso.— Que a senhora nem pode comer muito — rebato.Ela bufa.— A Carmine só namora babacas, vovó. Eu não me encaixo nessa categoria. — Raoul atiça. Quando esses dois estão juntos, não sei quem é mais chato.— Porque você é frouxo e não pegou ela de jeito.— Vovó! — quase cuspo o suco. Hoje ela está inspirada.Raoul ri e me encara com sua melhor cara de safado.— Devo te pegar de jeito, Chapeuzinho?Porra de apelido ridículo.Devolvo seu olhar na mesma medida e digo:— Por que não pega um pau grande e grosso e chupa?A risada dele vira gargalhada e minha avó do mal o acompanha.— Vocês serão um casal barulhento. Ainda mais quando vier os filhos.— Ignora isso, Raoul. Pelo amor de God. — Me viro para minha vó. — Se a senhora continuar me empurrando pra ele, meu amigo nunca mais vai querer te visitar, sua velha
CARMINEOdeio menstruação.Estou com cólica e dor de cabeça. Justo hoje que é o dia de assistir A pequena sereia. Não, eu não sou muito romântica, gosto de filmes de ação, fantasia e terror, mas tenho essa queda por produções da Disney. Vejo tudo que lançam.Quando piso o pé no portão da escola, começo a desejar dar meia volta e voltar para minha cama.Raoul faltou, o que não é novidade.Agradeço ao segurança e ao motorista dos Seven que me levam mesmo quando ele falta e entro nesse mar de adolescentes.— Oi, amiga. Sozinha hoje? — Nick, uma das minhas colegas de classe e minha amiga, comenta me dando o braço.— Pois é. Tem gente que não precisa estudar como os meros mortais.— Aquele deus grego tem tudo. — Ela suspira. — Você é uma sortuda.— Não sou... — antes que eu termine de falar sinto uma mão agarrar meu cabelo e puxar com força para trás.Os cachos estão soltos. Me acostumei com eles assim depois de desistir de brigar com Raoul por sempre soltá-los.A pessoa puxa como se quise
RAOULO celular toca o alarme do despertador e eu simplesmente desligo e volto a dormir.Não quero ir ao colégio hoje. As aulas do último ano parecem sempre repetitivas. Posso adivinhar cada explicação dos professores. Isso é um saco.O celular toca novamente.Quando estou prestes a desligar definitivamente, meus olhos encontram a sacola sobre a mesa de cabeceira.— Droga! Não posso faltar hoje. — Saio da cama resmungando.Os chocolates na sacola é a prova que minha amiga está nos dias em que matar um se torna possível para ela. Carmine precisa dos seus remédios.Quando saio do castelo em direção aos carros estacionados, vejo que o carro que nos leva já não está mais aqui. Claro que não. Estou atrasado, a obrigação do motorista é garantir a carona da minha amiga, mesmo que eu não esteja.Não demora para um motorista se oferecer para me levar quando me vê no uniforme ridículo do colégio. O fato de todos se vestirem iguais é tedioso.— Acelera — ordeno quando entro no carro.O homem obe
Finalmente Carmine dormiu. Tive que ouvir muito hoje por causa de uma vadia que nem sei quem é direito. Ela não falou o que a garota alegou para atacá-la, preferiu me xingar com todo seu estoque de palavrões. Mas eu vou descobrir. Assim que colocar as mãos na pessoa que teve a ousadia de machucar minha Chapeuzinho, ela vai me dizer até o que eu não perguntar. Sei que as merdas que aquelas alunas disseram não passa disso: merdas.O pescoço da minha amiga está arranhado. E ela teve que tomar remédio para dor por causa dos puxões no cabelo.Um braço quebrado é mínimo que aquele idiota merece por ter dado uma de maluco. Ao invés de separar as duas, ele aproveitou para machucá-la. Tenho certeza que foi pelo fora que ela deu nele pouco antes de começar a namorar o sonso do Diego.E realmente foi injusto culparem apenas ela. Tenho que ligar para o meu pai e pedir que interfira, ou terei que incendiar aquela escola.Saio devagar da cama para não acordá-la. Deixo os livros e caderno no mesmo l
RAOULDepois de tudo que aconteceu hoje, estou mais que disposto a um pouco de ação. Só espero que Henry realmente me mostre um pouco disso. Porque se ele vier com alguma negociação verbal será nele que vou descontar minha frustação.Seguimos até um lugar relativamente deserto. É um galpão em uma parte da cidade que parece abandonada. Pelo caminho ele me conta que vamos encontrar um policial corrupto que anda extorquindo pequenos comerciantes. Um deles é uma senhora que foi uma das primeiras a lavar dinheiro para nossa família. Pelo menos é o que fiquei sabendo.Quando chegamos, Henry me deixa com o verme que permanece covardemente ajoelhado.Fico olhando para ele sem interesse. Até que uma voz me chama:— Ei, garoto! — Olho e vejo uma velha meio curvada, com cabelos totalmente brancos e um vestido florido brega, tanto quanto a bolsa enorme que também tem estampas florais. Ela se aproxima.Não falo nada. Sua presença não é problema meu.Ela para ao meu lado e aponta o verme.— Aquele