Camélia nunca gostou de perguntas sem respostas, ela era do tipo que desvendava padrões, que lia entrelinhas e desconfiava de silêncios longos demais. Cresceu sendo a pessoa que resolvia problemas, que planejava antes de agir, que não gostava de sentir que estava sendo deixada de fora de algo.
E, naquele momento, algo não fazia sentido, a avó arrumando a mala com um olhar perdido. O avô mais silencioso do que o normal e o nome de uma cidade que nunca tinha ouvido antes: Serra dos Riachos. Desde pequena, Camélia sabia que sua família era diferente. Mas, em vez de histórias mirabolantes sobre o passado, havia apenas silêncio. Seu avô mudava de assunto quando questionado. Sua avó sempre dizia que o passado já havia ficado para trás. Seus pais também nunca pareceram curiosos sobre isso. Agora, aos vinte e cinco anos, Camélia percebia que aquilo nunca tinha sido normal. Seus pais, Flor e Gustavo, eram um casal equilibrado. Flor era mais reservada, dona de uma paciência invejável, mas Camélia sabia que, quando sua mãe tomava uma decisão, ninguém a fazia mudar de ideia. Já Gustavo era a calma em pessoa, com um sorriso fácil e um jeito de quem sempre sabia a coisa certa a dizer. Camélia e seu irmão, Cauã, cresceram nesse lar seguro, onde tudo parecia planejado e estável. Mas, agora, essa estabilidade estava desmoronando. E Camélia odiava não entender o motivo. Os avós nunca falavam sobre o passado. Por isso, quando Madalena e Júlio anunciaram que precisavam viajar imediatamente para sua cidade natal, Camélia estranhou. — Um parente ligou — explicou Madalena, enquanto separava roupas na mala. — A gente precisa ir até lá — O tom da avó era vago, como sempre. — Mas que parente? Vocês nunca citaram parente nenhum— insistiu Camélia, esperando que a sua avó lhe contasse mais alguma coisa. — Um amigo próximo — Respondeu Madalena, ainda sem deixar qualquer informação sair. O nome Ricardo foi mencionado uma única vez, e mesmo assim sem detalhes. Camélia e Cauã tentaram arrancar mais informações, mas os avós apenas repetiram que era um assunto importante. Naquela noite, Flor decidiu que precisava acompanhar os pais e Gustavo foi junto para dar suporte — Só ficaremos por um tempinho, pra não deixar eles irem sozinhos— Flor garantiu com a voz doce, enquanto segurava as mãos da filha. — Vocês ficam aqui e tomam conta das coisas, certo? — Pera, que? Mas vocês nem conhecem essa cidade! — protestou Camélia receosa da escolha que os pais e os avós estavam tomando. — E vocês menos ainda ué. — Gustavo sorriu e afagou a cabeça da filha mais nova. — Por isso, fiquem e confiem na gente, vai dar tudo certo. Camélia e Cauã não estavam convencidos, mas não tiveram escolha. Assistiram os pais partirem e ficaram com um pressentimento estranho no peito. Como se algo estivesse prestes a mudar. A estrada para Serra dos Riachos era sinuosa, cercada por florestas densas e riachos cristalinos. O vento passava por entre as árvores como se estivesse contando segredos antigos, e o céu parecia sempre coberto por uma névoa leve, como um véu entre dois mundos. Flor e Gustavo chegaram ao entardecer e, imediatamente, sentiram uma estranha sensação de familiaridade, o silêncio da cidade era diferente. Não era vazio, era cheio. Cheio de sussurros de folhas, de água corrente, de cheiros e de algo que parecia observá-los. — Que lugar é esse? — murmurou Gustavo admirado olhando ao redor. Flor estava inquieta e não respondeu ao marido, sentia um formigamento no pulso, uma sensação que não conseguia explicar. Era como se algo estivesse tentando chamar sua atenção e ela não conseguia entender o que era aquilo. A profecia tinha começado sem eles darem conta e entenderem sobre o assunto. Na primeira semana, eles conseguiram manter contato com os filhos e ligavam todas as noites, contando sobre os avós, sobre como a cidade era pequena e peculiar, mas sem entrar em muitos detalhes, pois nem eles entendiam muito do que estava acontecendo. As ligações eram demoradas, apresentando a cidade aos filhos, mostrando a cultura e contando o que eles tinham visto na cidade desde que chegaram. No entanto, tudo mudou no meio da segunda semana, Júlio sofreu um acidente e Camélia e Cauã receberam a notícia por telefone. — Ele estava voltando de algum lugar e o carro dele perdeu o controle, seu avô sofreu um acidente. Não se preocupem, ele esta estável e assim que conseguirmos mais noticias a gente fala com vocês. Ainda não consegui visitar ele, somente a mamãe e ela me garantiu que ele estava bem, só não podia receber mais visitas — foi a única coisa que a mãe deles conseguiu dizer, parecendo abalada. Depois disso, as chamadas ficaram cada vez mais curtas e distantes. E então, do nada, o contato cessou. Os telefones não chamavam mais. As mensagens não eram entregues. O silêncio foi absoluto. Camélia tentou de tudo, mas era como se os pais e os avós tivessem simplesmente desaparecido. O tempo parecia passar de uma forma estranha desde que sua família havia partido para Serra dos Riachos. No início, tudo estava normal, eles estavam se adaptando a nova rotina na empresa da família e bem ocupados com tudo. Era difícil para os irmãos assumirem responsabilidades que não eram suas, porém ambos estavam determinados em manter tudo funcionando como deveria. Eles já conheciam bem o trabalho, só não era a função deles. Os primeiros dias foram um verdadeiro caos. Relatórios inacacabados, reuniões que tiveram que se preparar da noite para o dia e clientes impacientes. Porém, aos poucos, foram encontrando o ritmo. Enquanto Camélia se ocupava com a parte administrativa da empresa, que já era uma parte conhecida de seu trabalho. Cauã que antes participava somente da parte administrativa junto com ela, precisou lidar com os clientes e fornecedores, garantindo que tudo corresse bem, além de ajuda-la nas revisões dos contratos. Era exaustivo, pois eles estavam com funções além das deles, mas eles haviam prometido aos pais que cuidariam de tudo até o retorno deles. O problema é que o retorno não veio. Inicialmente eles não deram tanta importância, acharam que era um problema de sinal passageiro na cidade e que tudo ia ficar bem logo. Torciam para que o avô houvesse se recuperado bem do acidente. Eles já estavam acostumados aos pais demorarem a responder. Mas, conforme os dias iam se passando e as chamadas continuavam não chegando ao destino e as ligações indo direto pra caixa postal, o silêncio começou a incomodar. – Você acha que tá tudo bem com eles? Tanto tempo sem contato, ja estou ficando preocupada. — Camélia perguntou certa noite soltando o celular na mesa em que estava depois de mais uma tentativa falha de ligação para os pais. Cauã não ergueu os olhos do papel que estava analisando e respondeu com pouca convicção: – Eles talvez ainda estejam sem sinal? A cidade é pequena, lembra? Camélia virou a cabeça refletindo e mordeu os lábios em preocupação com a resposta do irmão. Pensou um pouco e disse: — Mas a gente já conseguiu falar com eles outras vezes, não faz sentido que agora o sinal tenha sumido de vez, sei que mais um pouco e fico louca com tudo isso.— Ela respondeu inquieta e com a preocupação clara na voz. — Vamos esperar mais um pouco, é o que temos que fazer, ainda mais que estamos cuidando da empresa. Se algo de grave tivesse acontecido, já saberíamos, Meli. Camélia assentiu querendo acreditar. Querendo ignorar o nó crescente no peito, que fazia com que ela checasse o celular a cada dez minutos. Porém os dias foram virando semanas e a inquietação se aprofundou. As mensagens não entregues continuavam se acumulando, as ligações sempre caindo na caixa postal. E Cauã, mesmo tentando manter a calma para tranquilar a irmã, já não conseguia mais esconder o semblante franzido quando tentava se comunicar com os pais sem sucesso. Eles tentaram outras formas de contato, tentando ligar para estabelecimentos da cidade que encontraram na Internet, procurando sobre notícias sobre a cidade. Não havia nada, nenhuma notícia estranha que explicasse esse tempo todo de silêncio. A angústia de Camélia foi aumentando, ela já não conseguia dormir direito, se revirando na cama até conseguir pegar no sono, apenas para despertar pouco tempo depois. E Cauã que antes tentava transmitir tranquilidade, começou a ficar mais inquieto. Eles estavam perdendo tempo. Passaram-se dois meses sem que Camélia e seu irmão conseguissem qualquer contato com a família. Dois meses de ligações que não completavam, de mensagens sem resposta, de uma angústia crescente que se recusava a deixá-la em paz. Quando o silêncio se arrastou por tempo demais, a decisão foi inevitável. — A gente vai até lá, é isso, não dá mais não, sem condição de esperar mais um minuto.— Ela disse decidida fechando o notebook e encarando o irmão. — Tem certeza? — Ele perguntou mesmo já sabendo qual seria a resposta. – Já esperamos tempo demais, dois meses sem nenhuma resposta. — Ela cruzou os braços. — Não dá mais, isso não é normal! Vamos marcar uma reunião para decidir o que fazer na empresa enquanto estivermos fora, a gente dá um jeito, sei lá, mas temos que fazer algo. — Vou comprar as passagens, você vai primeiro e eu termino de ajeitar o que for preciso com a empresa, você tá certa. Foi o bastante, Camélia sentiu um frio na barriga, como se eles estivessem prestes a cruzar uma barreira que mudaria tudo para eles.A primeira passagem que encontrou foi comprada sem pensar duas vezes por Cauã. Camélia arrumou suas coisas rapidamente, a tensão aumentando a cada minuto que se passava. A viagem pareceu interminável. Cada quilômetro percorrido apenas reforçava sua certeza de que algo estava errado, de que estavam atrasados para algo que ainda não compreendiam. Quando a aeronave finalmente pousou, ainda de manhã cedo, ela inalou profundamente o ar fresco, notando como ele parecia diferente. Mais puro, carregado com o frescor da vegetação e o perfume das flores espalhadas pelo vento. A névoa fina dançava entre as montanhas, como um véu separando dois mundos. O ar gelado da manhã a envolveu assim que saiu do avião, um abraço aconchegante depois de horas abafadas dentro da cabine. O cheiro de terra e grama molhada entrou em seus pulmões, como uma brisa suave e bem-vinda. Porém, algo a fez hesitar. Camélia sentiu que estava pisando em um território que carregava mistérios, e ela não sabia o porquê. Tam
O encontro com aqueles dois ainda martelava na mente da jovem enquanto ela caminhava pelo centro de Serra dos Riachos. A cidade estava desperta agora. O céu azul pálido se espalhava acima dos casarões coloniais, banhando as ruas de pedra em uma luz dourada. O som de passos apressados ecoava entre as vielas, mesclado ao barulho distante de sinos e ao murmúrio das primeiras conversas matinais.Pequenos comércios abriam suas portas, e o cheiro de café fresco e pão recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que decoravam varandas e janelas. Serra dos Riachos parecia um lugar fora do tempo, lembrando um pouco a cidade de Petrópolis pela arquitetura. Mas havia algo estranho ali.Era uma cidade pacata demais para a tensão que se sentia no ar, para a forma como os olhares se demoravam um pouco mais sobre ela do que o necessário. A sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada esquina.Ela pegou o celular, ainda inquieta depois da confusão
Kael soube que ela estava ali antes mesmo de Júlio abrir a porta. O perfume doce e inconfundível de flor de laranjeira invadiu o ambiente antes do som da madeira sendo batida. E então, ela surgiu. A garota da praça. Kael manteve o rosto impassível enquanto via Júlio e Madalena a abraçarem, mas por dentro, uma irritação crescente o dominava. Ela não era apenas uma forasteira. Ela estava ligada à família Alencar, talvez neta de Júlio e Madalena. Isso não dissipava seu interesse, mas aumentava. Ela era bonita de um jeito perturbador. Os olhos dela, cinzentos como o céu antes da tempestade, avaliavam tudo ao redor, como se quisessem decifrar cada detalhe. Eles carregavam uma tempestade silenciosa, e Kael não sabia se queria fugir ou ser levado junto. Ela parecia mais preocupada com a família do que com ele. — O que aconteceu? — Camélia perguntou, sua voz carregada de preocupação. O silêncio tomou conta, a tensão no ar se tornando palpável. Júlio pigarreou, surpreso pela chegada repent
Camélia permaneceu imóvel enquanto a porta se fechava atrás de Kael. O cheiro de chuva, ainda em sua pele, misturava-se ao perfume amadeirado da casa. Ela inspirou profundamente, tentando dissipar a sensação inquietante que ele deixava. Por que ele mexia tanto com ela? A pergunta martelava em sua mente enquanto se dirigia até a janela. Mordendo o lábio, inquieta, não gostava da forma como seu corpo reagia sem permissão. — Ele te incomodou? — A voz calma de Madalena a trouxe de volta. Camélia se virou, encarando a avó com uma mistura de confusão e relutância. — Não. — Hesitou. — Quer dizer, sim. Mas não do jeito que você pensa. Madalena inclinou a cabeça, um brilho curioso nos olhos. — O que há entre vocês não pode ser ignorado. Só quero que esteja pronta para o que isso significa. Camélia tentou aliviar a tensão com uma risada curta, mas o peso das palavras da avó a incomodava. — Eu sei me cuidar, vó. Não temos nada, o conheci hoje. Antes que Madalena pudesse responde
Foi então que Ricardo surgiu ao lado de Júlio, com as mãos nos bolsos e um sorriso relaxado. — E eu achando que ia precisar caçar vocês pela cidade. — Ricardo brincou, olhando para Camélia e Cauã. — Finalmente temos a família Alencar em Serra dos Riachos, esse é o neto mais velho de vocês? O olho cinza não nega. — Ricardo! — Júlio sorriu e deu um tapinha no ombro do amigo. — Você já conhece Flor e Gustavo, é sim! Esse é o Cauã, não liga muito não, ele é um rapaz bem desconfiado de tudo. Esse aqui é um amigo de longa data, meu braço direito. Cauã estreitou os olhos de leve, analisando Ricardo antes de apertar sua mão. – Prazer, que engraçado ouvir que você é o braço direito dele, nunca ouvi falar de Ricardo e bem de Serra dos Riachos. — ele falou zombeteiro. — Mas, bom te conhecer. — Ah, acontece! Mas agora vocês estão aqui, não é? — Ricardo respondeu com um sorriso divertido. — Vocês já tem algum plano? O que acham de irmos almoçar
A respiração de Kael estava acelerada quando abriu os olhos. Seu peito subia e descia de forma irregular, como se tivesse corrido uma longa distância. O quarto ao redor permanecia imóvel, mas o ar parecia denso, abafado. A única luz vinha da lua, filtrada pelas cortinas entreabertas.Tânia era sua predestinada. O destino deles estava traçado. Mas tudo o que sentia agora era o toque de Camélia.Kael levantou-se de súbito, irritado. Seu corpo clamava por ação, por qualquer coisa que silenciasse aquela inquietação. O cheiro dela impregnava o ambiente, como se quisesse dominá-lo. Seu lobo reagia, inquieto, mas ele se recusava a ouvir. Passou as mãos pelo rosto, afastando o incômodo. Não podia se dar ao luxo de distrações.Como Alfa Supremo, sua responsabilidade ia além da matilha. Cada líder o via como referência. Até os que o desafiavam precisavam respeitá-lo. Ele precisava manter a ordem em Serra dos Riachos.— Isso não é sobre você, Kael — murmurou
Serra dos Riachos não era uma cidade qualquer, era viva e pulsava sob os pés dos que passavam, sussurrava através das árvores, escondia segredos no reflexo dos riachos, era uma cidade que respirava. Aqui, o mundo visível e o invisível se entrelaçavam. Aqui, lendas não eram apenas lendas. Safira foi a primeira a ouvir o aviso, nas águas calmas do Bosque da Névoa, onde as guardiãs buscavam refúgio para se centralizarem, criarem amuletos e discutirem o destino da cidade. Em um desses momentos, a profecia veio até ela como um sussurro no vento, como se a própria Serra dos Riachos se materializasse. A noite estava densa, o ar carregado com o peso de algo que não podia ser visto, apenas sentido. A lua cheia pairava alta no céu, derramando sua luz prateada sobre a floresta silenciosa, que servia como testemunha de segredos antigos. No centro da clareira, um círculo de guardiãs permanecia imóvel, como se aguardassem algo. No meio delas, Safira ergueu o rosto, seu olhar intenso refletindo o