CAPÍTULO 3 – ECOS DO PASSADO

O encontro com aqueles dois ainda martelava na mente da jovem enquanto ela caminhava pelo centro de Serra dos Riachos. A cidade estava desperta agora. O céu azul pálido se espalhava acima dos casarões coloniais, banhando as ruas de pedra em uma luz dourada. O som de passos apressados ecoava entre as vielas, mesclado ao barulho distante de sinos e ao murmúrio das primeiras conversas matinais.

Pequenos comércios abriam suas portas, e o cheiro de café fresco e pão recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que decoravam varandas e janelas. Serra dos Riachos parecia um lugar fora do tempo, lembrando um pouco a cidade de Petrópolis pela arquitetura. Mas havia algo estranho ali.

Era uma cidade pacata demais para a tensão que se sentia no ar, para a forma como os olhares se demoravam um pouco mais sobre ela do que o necessário. A sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada esquina.

Ela pegou o celular, ainda inquieta depois da confusão com as mensagens atrasadas. Tentou ligar para sua mãe novamente, mas ninguém atendia. O número chamava, mas não havia resposta. Seu coração deu um salto desconfortável no peito. Seus pais não ignorariam suas ligações, não depois de tanto tempo sem contato. A situação toda fazia aquela sensação incômoda voltar com força total.

Caminhou mais rápido, tentando pensar no que fazer. Não sabia exatamente onde seus pais e avós estavam hospedados, mas lembrava do nome Ricardo. Se ele foi a pessoa que chamou seus avós de volta, ele deveria saber onde estavam. Ricardo parecia ser a chave para encontrar respostas. Encontre Ricardo. Encontre sua família. Era isso que precisava focar.

Ao atravessar a rua, parou diante de uma pequena banca de jornal, onde uma senhora de cabelos grisalhos e óculos redondos empilhava revistas.

Respirou fundo antes de falar:

— Com licença.

A senhora levantou os olhos por cima dos óculos, a analisando rapidamente. Seu olhar parecia gentil, mas atento.

— Pois não, querida? — respondeu, arrumando uma pilha de jornais com calma, mas sem desviar os olhos.

— Estou procurando um homem chamado Ricardo. Ele mora aqui na cidade, certo? — perguntou gentilmente.

A pergunta parecia simples, mas, por um breve segundo, a expressão da senhora mudou. Não era medo, mas hesitação, como se estivesse avaliando até que ponto deveria falar.

— Ricardo? — repetiu, ajustando os óculos com os dedos enrugados, a voz carregada de cautela.

— Sim. Ele é amigo da minha família — afirmou, tentando soar confiante, embora não tivesse certeza do quanto isso era verdade.

Dessa vez, ela a olhou com mais atenção, apertando os olhos como se tentasse enxergar melhor.

— Você não é de Serra dos Riachos — constatou, com uma certeza que a incomodou. Ela suspirou, sentindo a impaciência crescer.

— Não. Mas estou tentando encontrar meus pais e meus avós. Pode me dizer onde encontrar o Ricardo?

O rosto da senhora suavizou um pouco, mas a hesitação ainda estava ali.

— Ricardo tem uma oficina perto da Praça dos Trovões — disse, por fim, ajeitando um bracelete de contas no pulso. — Se alguém souber de sua família, ele saberá.

— Valeu. — respondeu, mas ela já havia desviado o olhar, voltando a organizar as revistas como se a conversa tivesse terminado.

Embora fosse um alívio ter finalmente um destino claro, a jovem não se sentia tranquila. O jeito como a senhora demorou a responder, a maneira como o nome de Ricardo fez algo brilhar em seus olhos. Havia algo escondido naquela cidade e ela estava prestes a descobrir o quê.

A Praça dos Trovões fazia jus ao nome. Mesmo sob o céu limpo daquela manhã, o vento soprava mais forte ali, como se o lugar carregasse resquícios de uma tempestade que nunca se dissipava completamente. As árvores ao redor balançavam, folhas secas rodopiavam pelo chão de pedra. Ela passou por um grupo de crianças brincando perto da fonte e seguiu pela rua que a senhora havia indicado. Quando avistou a oficina, sentiu uma estranha pressão no peito.

O prédio era simples, com um telhado baixo e um grande portão de ferro entreaberto. O cheiro de óleo e ferrugem se misturava ao aroma fresco da vegetação ao redor. Ela se aproximou devagar.

Dentro, um homem robusto estava debruçado sobre o motor de um carro, murmurando algo para si mesmo enquanto mexia em uma peça com as mãos sujas de graxa. Ela limpou a garganta para chamar sua atenção, e ele ergueu o rosto, observando-a por um instante. Tinha cabelos grisalhos nas laterais e um olhar atento, como se estivesse sempre pronto para avaliar uma situação antes de reagir. Mas o que mais a chamou atenção foi a forma como seu rosto congelou assim que seus olhares se cruzaram, como se tivesse acabado de ver um fantasma. Ela ficou ainda mais tensa.

— Você é Ricardo? — perguntou, mantendo o tom firme, apesar da estranha sensação de que ele já sabia quem ela era.

Ele a encarou por um momento antes de limpar as mãos no pano velho que segurava.

— Sou — respondeu, com uma voz carregada de algo que ela não soubera identificar.

Ela cruzou os braços, estreitando os olhos.

— Ótimo. Porque parece que você tem algumas explicações para me dar.

O silêncio entre eles se alongou.

Ricardo passou a mão pelo rosto, soltando um suspiro pesado, como se estivesse tentando encontrar as palavras certas.

— Você é a neta da Madalena e do Júlio — afirmou, sem qualquer dúvida.

— Sim. — Ela assentiu, sentindo a tensão aumentar.

— Então você finalmente chegou. — Ele soltou uma risada baixa, balançando a cabeça levemente.

— Tá querendo dizer o que com isso? — Sua testa franziu.

Ricardo estudou seu rosto por um instante, como se avaliasse o quanto deveria contar.

— Sua família está te esperando, menina. Mas antes… — Ele estreitou os olhos, a expressão carregada de significado. — Acho que você tem muitas coisas para descobrir.

Um arrepio percorreu sua espinha, a forma como ele disse aquilo, a cidade, o silêncio das pessoas, as mensagens não entregues. Tudo parecia interligado, e de alguma forma, ela fazia parte daquela história muito antes de chegar ali. Ricardo jogou o pano sobre a bancada e caminhou até a porta da oficina. Virou-se para ela e indicou a rua com a cabeça.

— Vem comigo — disse, como se estivesse lhe dando uma escolha, mas seu olhar deixava claro que essa escolha já estava feita.

Ela engoliu em seco, sentindo um peso estranho no peito, mas deu o primeiro passo e o seguiu. A cidade parecia se moldar ao redor dela enquanto caminhava ao lado de Ricardo. Cada esquina escondia algo que ela não sabia se queria entender. Havia história em tudo: nos casarões, nas árvores que se curvavam sobre as calçadas, nas vozes baixas que pareciam acompanhá-la. Ricardo era um guia silencioso, com as mãos nos bolsos e o olhar atento, como se estivesse esperando algo ou talvez testando sua paciência.

— Serra dos Riachos tem muitas histórias — ele começou, sem olhá-la.

— Tá falando sobre as lendas? — perguntou, repetindo o que ele havia dito antes.

— Histórias que nunca foram apenas lendas. — Ele sorriu de canto, a forma como disse isso fez com que ela estremecesse levemente. Ela passou a língua nos lábios, incerta.

— Então me conta uma delas.

Ele parou por um instante, como se escolhesse as palavras.

— Você sabia que, antigamente, esse lugar era chamado de Vale das Duas Luas?

— Duas luas? — Ela franziu o cenho.

— É. Dizem que, há muito tempo, duas luas iluminavam o céu daqui. Uma prateada e uma dourada. A prateada era associada as guardiãs da cidade, a dourada àqueles que protegiam o equilíbrio do espírito. — Um arrepio percorreu sua nuca.

— E o que aconteceu com a segunda lua?

Ricardo suspirou e, após uma pequena pausa, respondeu.

— A cidade mudou. As pessoas esqueceram.

Ela esperou mais, mas ele não disse nada, como se estivesse testando sua curiosidade. E estava funcionando. Continuaram andando, a rua ficava mais isolada, e foi ali que ela sentiu. A cidade tinha cheiro, não um cheiro comum, mas um que parecia atravessar os sentidos. Uma mistura de terra úmida, flores silvestres e algo levemente amadeirado. Era estranho, familiar. Era a mesma sensação que teve ao pisar ali pela primeira vez.

Antes que ela pudesse comentar, Ricardo parou em frente a uma casa de madeira, com janelas de vidro ondulado e um alpendre envolto por trepadeiras floridas.

— Chegamos. — Ele falou.

Ela o olhou.

— Que lugar é esse?

Ricardo a encarou por um longo instante antes de dizer, simplesmente:

— Sua casa.

O som das palavras ecoou dentro dela. Sua casa? A informação não fazia sentido. Ela cresceu no Rio. Aquela casa nunca foi sua, mas antes que pudesse questioná-lo, Ricardo bateu na porta, o som ecoando pelo silêncio da rua. E, naquele momento, seu coração começou a bater mais forte. Ela não sabia exatamente o que estava prestes a descobrir, mas algo lhe dizia que, a partir daquele momento, sua vida nunca mais seria a mesma.

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