A primeira passagem que encontrou foi comprada sem pensar duas vezes por Cauã. Camélia arrumou suas coisas rapidamente, a tensão aumentando a cada minuto que se passava. A viagem pareceu interminável. Cada quilômetro percorrido apenas reforçava sua certeza de que algo estava errado, de que estavam atrasados para algo que ainda não compreendiam.
Quando a aeronave finalmente pousou, ainda de manhã cedo, ela inalou profundamente o ar fresco, notando como ele parecia diferente. Mais puro, carregado com o frescor da vegetação e o perfume das flores espalhadas pelo vento. A névoa fina dançava entre as montanhas, como um véu separando dois mundos. O ar gelado da manhã a envolveu assim que saiu do avião, um abraço aconchegante depois de horas abafadas dentro da cabine. O cheiro de terra e grama molhada entrou em seus pulmões, como uma brisa suave e bem-vinda. Porém, algo a fez hesitar. Camélia sentiu que estava pisando em um território que carregava mistérios, e ela não sabia o porquê. Tampouco conseguia entender a sensação de pertencimento que a dominou. Após pegar sua mala e atravessar o pequeno aeroporto, entrou no carro que a levaria até Serra dos Riachos. O Sol nascente tingia a névoa que circulava a cidade de dourado, fazendo com que raios de luz refletissem sobre ela no carro. Somente então percebeu que seu celular estava desligado. Com pressa, conectou-o ao carregador portátil e, assim que a tela acendeu, o celular começou a vibrar. Primeiro uma notificação, depois uma avalanche de chamadas e mensagens perdidas de sua mãe. O coração de Camélia disparou, e seu estômago revirou. Seus dedos deslizaram com pressa, lendo cada uma delas. As mensagens que antes não haviam sido entregues estavam todas ali. As que ela havia enviado e, principalmente, as que sua mãe tentara mandar. Foram muitas, uma após a outra, como se o universo estivesse zombando dela, esfregando em sua cara o tempo que havia se passado. As primeiras mensagens eram calmas, detalhando sobre a saúde de seu avô, que, mesmo após o acidente, havia melhorado magicamente. Um alívio imediato a invadiu, mas, logo depois, o tom mudou. Camélia conseguia sentir a crescente inquietação de sua mãe em cada uma das mensagens. A desconfiança que ela sentia pela cidade, os olhares que recebia e, depois, a preocupação em não conseguir mais contato com os filhos. Até que chegou a mensagem que fez sua boca secar: Se você receber essa mensagem, não venha pra cá, algo estranho está acontecendo. Vamos tentar dar um jeito de entrar em contato novamente com vocês. O estômago de Camélia revirou, e a sensação incômoda que a acompanhava há meses agora era uma confirmação. Algo realmente estava errado, e eles haviam demorado tempo demais para perceber. O Sol ainda estava baixo no céu quando o carro a deixou no centro da cidade. A luz tingia os casarões coloniais com tons dourados e avermelhados. As ruas de pedra, úmidas pelo orvalho da manhã, refletiam pequenos feixes de luz. Bandeiras coloridas tremulavam entre as vielas, e o som distante de sinos se misturava ao farfalhar das folhas. Ao descer do carro, ela sentiu o peso do silêncio. Apesar da cidade já estar movimentada pelo horário, aquilo era diferente do que ela estava acostumada no Rio de Janeiro. Não era uma calmaria tranquila—era como se algo estivesse a observando. O som dos sinos de vento soava vindo de várias direções diferentes, ecoando entre as construções antigas, e por um instante, Camélia pensou que aquilo poderia ser um aviso. Havia algo naquele lugar, algo que fazia sua pele formigar e a sensação de ser observada era forte e inexplicável. A estranha familiaridade com o ambiente a deixou inquieta, como se já conhecesse aquele lugar, mesmo sem nunca ter estado ali. Respirando fundo, seguiu em frente, tentando se localizar. Foi então que ouviu as vozes baixas, afiadas, como pequenas agulhas deslizando pelo ar. Não precisou se aproximar muito para sentir a tensão. Dois homens discutiam. A tensão entre os dois era palpável, carregada como uma tempestade prestes a eclodir. Nenhum deles se movia, mas estavam rígidos, como se soubessem que um único movimento poderia transformar as palavras afiadas em algo muito mais físico. O maxilar do homem mais alto estava travado, os punhos cerrados ao lado do corpo numa calma controlada, como um predador à espreita. Já o outro homem parecia desejar o confronto, seus músculos tensos como cordas prestes a arrebentar, o olhar faiscando em um desafio aberto. O primeiro exalava domínio. Alto, ombros largos, e uma presença que não precisava de palavras para ser respeitada. Sua pele tinha um tom quente e uniforme, contrastando com os olhos intensos e calculistas. O cabelo escuro caía em ondas levemente desalinhadas, mas não havia nada de descuidado nele. Ele parecia alguém que nunca perdia o controle. O segundo homem era diferente. Se o primeiro era controle e poder silencioso, ele era pura provocação. O rosto trazia marcas de batalhas antigas, incluindo uma cicatriz que cortava o canto da boca, dando-lhe um sorriso eternamente debochado. Os cabelos curtos apenas reforçavam sua postura rígida, quase militar. Mas o que mais chamava atenção não era sua força física. Era o brilho afiado nos olhos—um brilho de quem sabia exatamente como jogar com as fraquezas dos outros. A cidade ao redor parecia ignorar a cena, como se já estivesse acostumada com esse tipo de confronto. Mas Camélia não. Algo naquela troca de olhares parecia antigo, não uma rixa recente, mas uma batalha contínua e sem solução. Sem entender o porquê, seus pés se moveram antes que pudesse se impedir. — Posso saber o que tá contecendo aqui? — Sua voz soou firme, cortando o ar denso. Os dois homens pararam e a encararam. O olhar do primeiro encontrou o dela e, naquele instante, sem que soubesse o motivo, Camélia sentiu como se tivesse acabado de cometer um erro. O segundo homem, o mais agressivo, foi o primeiro a reagir. — Quem diabos é você? — ele rosnou, avançando um passo. Camélia não hesitou. Cruzou os braços e respondeu com firmeza. — Alguém que quer saber por que dois adultos estão prestes a resolver algo caindo na porrada no meio da rua. O homem com a cicatriz bufou, seus punhos apertados, e Camélia percebeu que estava desafiando algo muito maior do que imaginava. O primeiro homem, o de olhos intensos, continuava em silêncio, mas seus olhos a observavam com um interesse peculiar. — Se toca, isso não é da sua conta. – o homem com a cicatriz respondeu, desprezando-a. — Talvez seja — ela rebateu, mantendo o olhar fixo. Ela não sabia bem o que a fazia agir daquela forma. Talvez fosse o desconforto que sentia desde que chegou ali, ou talvez fosse a presença daquele homem de olhos intensos, algo nele que não deixava ela simplesmente se afastar. O primeiro homem finalmente falou, sua voz profunda e imponente. — Já chega. O outro homem ainda estava irritado, mas cedeu. — Isso ainda não acabou — ele disse, apertando a mandíbula. — Até parece que eu não sei disso. — o primeiro homem respondeu, com um tom frio. Os dois se encararam, medindo-se, até que o homem com a cicatriz se virou e foi embora, seus passos pesados ecoando pela rua de pedra. Camélia suspirou, aliviada, mas logo percebeu que o olhar do outro homem ainda estava sobre ela, estudando cada movimento seu. — Quem é você? — ele perguntou finalmente. A voz dele era imponente, mas havia algo desconfiado nela, como se estivesse tentando entender quem ela realmente era. Camélia cruzou os braços e respondeu: — Eu poderia perguntar o mesmo. Ele ergueu uma sobrancelha, observando-a atentamente. — Você não é daqui, né? — disse ele, com a certeza de quem conhece cada canto daquele lugar. — E como sabe disso? — ela questionou, seus olhos fixos nos dele. — Porque eu conheço cada pessoa desta cidade e nunca vi você por aqui — respondeu, seu tom fazendo Camélia se irritar levemente. — Talvez seja hora de conhecer gente nova, então — ela disse, com um sorriso provocador. O homem não parecia nem um pouco afetado pela resposta dela, mas Camélia não se importou. Ele apenas a observou com mais intensidade antes de falar novamente. — O que você estava fazendo aqui? — ele perguntou ignorando o deboche dela. — Andando. Olhando a cidade — Camélia respondeu com calma, mas seu tom desafiador não desapareceu. — Até me deparar com dois idiotas arrumando encrenca na rua. Ele a encarou, aparentemente sem se impressionar com a atitude dela. — Não te ensinaram a não se meter onde não é chamada? — disse ele, sem emoção. — E você deveria aprender a ser mais educado — ela respondeu, erguendo o queixo. O homem não disse mais nada. Ficou ali, observando-a, como se estivesse tentando decifrar algo que ela ainda não estava pronta para revelar. Camélia, cansada de ficar no meio daquela troca silenciosa, levantou as mãos, como se entregasse a situação. — Bom, já interrompi o seu momento selvagem do dia — disse, virando-se para sair. — Acho que posso ir agora. —Já estava na hora. — ele respondeu, balançando os dedos como se se despedisse dela. Ela revirou os olhos e foi embora, mas ao caminhar, percebeu algo: ela não fazia ideia de quem eram aqueles dois homens. E, mais importante, não sabia o que aquele encontro significava para ela. O silêncio que pairava entre ela e o homem alto com os olhos sombrios era mais pesado do que parecia. Algo no ar dizia que aquele não seria o último encontro entre eles.O encontro com aqueles dois ainda martelava na mente da jovem enquanto ela caminhava pelo centro de Serra dos Riachos. A cidade estava desperta agora. O céu azul pálido se espalhava acima dos casarões coloniais, banhando as ruas de pedra em uma luz dourada. O som de passos apressados ecoava entre as vielas, mesclado ao barulho distante de sinos e ao murmúrio das primeiras conversas matinais.Pequenos comércios abriam suas portas, e o cheiro de café fresco e pão recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que decoravam varandas e janelas. Serra dos Riachos parecia um lugar fora do tempo, lembrando um pouco a cidade de Petrópolis pela arquitetura. Mas havia algo estranho ali.Era uma cidade pacata demais para a tensão que se sentia no ar, para a forma como os olhares se demoravam um pouco mais sobre ela do que o necessário. A sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada esquina.Ela pegou o celular, ainda inquieta depois da confusão
Kael soube que ela estava ali antes mesmo de Júlio abrir a porta. O perfume doce e inconfundível de flor de laranjeira invadiu o ambiente antes do som da madeira sendo batida. E então, ela surgiu. A garota da praça. Kael manteve o rosto impassível enquanto via Júlio e Madalena a abraçarem, mas por dentro, uma irritação crescente o dominava. Ela não era apenas uma forasteira. Ela estava ligada à família Alencar, talvez neta de Júlio e Madalena. Isso não dissipava seu interesse, mas aumentava. Ela era bonita de um jeito perturbador. Os olhos dela, cinzentos como o céu antes da tempestade, avaliavam tudo ao redor, como se quisessem decifrar cada detalhe. Eles carregavam uma tempestade silenciosa, e Kael não sabia se queria fugir ou ser levado junto. Ela parecia mais preocupada com a família do que com ele. — O que aconteceu? — Camélia perguntou, sua voz carregada de preocupação. O silêncio tomou conta, a tensão no ar se tornando palpável. Júlio pigarreou, surpreso pela chegada repent
Camélia permaneceu imóvel enquanto a porta se fechava atrás de Kael. O cheiro de chuva, ainda em sua pele, misturava-se ao perfume amadeirado da casa. Ela inspirou profundamente, tentando dissipar a sensação inquietante que ele deixava. Por que ele mexia tanto com ela? A pergunta martelava em sua mente enquanto se dirigia até a janela. Mordendo o lábio, inquieta, não gostava da forma como seu corpo reagia sem permissão. — Ele te incomodou? — A voz calma de Madalena a trouxe de volta. Camélia se virou, encarando a avó com uma mistura de confusão e relutância. — Não. — Hesitou. — Quer dizer, sim. Mas não do jeito que você pensa. Madalena inclinou a cabeça, um brilho curioso nos olhos. — O que há entre vocês não pode ser ignorado. Só quero que esteja pronta para o que isso significa. Camélia tentou aliviar a tensão com uma risada curta, mas o peso das palavras da avó a incomodava. — Eu sei me cuidar, vó. Não temos nada, o conheci hoje. Antes que Madalena pudesse responde
Foi então que Ricardo surgiu ao lado de Júlio, com as mãos nos bolsos e um sorriso relaxado. — E eu achando que ia precisar caçar vocês pela cidade. — Ricardo brincou, olhando para Camélia e Cauã. — Finalmente temos a família Alencar em Serra dos Riachos, esse é o neto mais velho de vocês? O olho cinza não nega. — Ricardo! — Júlio sorriu e deu um tapinha no ombro do amigo. — Você já conhece Flor e Gustavo, é sim! Esse é o Cauã, não liga muito não, ele é um rapaz bem desconfiado de tudo. Esse aqui é um amigo de longa data, meu braço direito. Cauã estreitou os olhos de leve, analisando Ricardo antes de apertar sua mão. – Prazer, que engraçado ouvir que você é o braço direito dele, nunca ouvi falar de Ricardo e bem de Serra dos Riachos. — ele falou zombeteiro. — Mas, bom te conhecer. — Ah, acontece! Mas agora vocês estão aqui, não é? — Ricardo respondeu com um sorriso divertido. — Vocês já tem algum plano? O que acham de irmos almoçar
A respiração de Kael estava acelerada quando abriu os olhos. Seu peito subia e descia de forma irregular, como se tivesse corrido uma longa distância. O quarto ao redor permanecia imóvel, mas o ar parecia denso, abafado. A única luz vinha da lua, filtrada pelas cortinas entreabertas.Tânia era sua predestinada. O destino deles estava traçado. Mas tudo o que sentia agora era o toque de Camélia.Kael levantou-se de súbito, irritado. Seu corpo clamava por ação, por qualquer coisa que silenciasse aquela inquietação. O cheiro dela impregnava o ambiente, como se quisesse dominá-lo. Seu lobo reagia, inquieto, mas ele se recusava a ouvir. Passou as mãos pelo rosto, afastando o incômodo. Não podia se dar ao luxo de distrações.Como Alfa Supremo, sua responsabilidade ia além da matilha. Cada líder o via como referência. Até os que o desafiavam precisavam respeitá-lo. Ele precisava manter a ordem em Serra dos Riachos.— Isso não é sobre você, Kael — murmurou
Serra dos Riachos não era uma cidade qualquer, era viva e pulsava sob os pés dos que passavam, sussurrava através das árvores, escondia segredos no reflexo dos riachos, era uma cidade que respirava. Aqui, o mundo visível e o invisível se entrelaçavam. Aqui, lendas não eram apenas lendas. Safira foi a primeira a ouvir o aviso, nas águas calmas do Bosque da Névoa, onde as guardiãs buscavam refúgio para se centralizarem, criarem amuletos e discutirem o destino da cidade. Em um desses momentos, a profecia veio até ela como um sussurro no vento, como se a própria Serra dos Riachos se materializasse. A noite estava densa, o ar carregado com o peso de algo que não podia ser visto, apenas sentido. A lua cheia pairava alta no céu, derramando sua luz prateada sobre a floresta silenciosa, que servia como testemunha de segredos antigos. No centro da clareira, um círculo de guardiãs permanecia imóvel, como se aguardassem algo. No meio delas, Safira ergueu o rosto, seu olhar intenso refletindo o
Camélia nunca gostou de perguntas sem respostas, ela era do tipo que desvendava padrões, que lia entrelinhas e desconfiava de silêncios longos demais. Cresceu sendo a pessoa que resolvia problemas, que planejava antes de agir, que não gostava de sentir que estava sendo deixada de fora de algo. E, naquele momento, algo não fazia sentido, a avó arrumando a mala com um olhar perdido. O avô mais silencioso do que o normal e o nome de uma cidade que nunca tinha ouvido antes: Serra dos Riachos. Desde pequena, Camélia sabia que sua família era diferente. Mas, em vez de histórias mirabolantes sobre o passado, havia apenas silêncio. Seu avô mudava de assunto quando questionado. Sua avó sempre dizia que o passado já havia ficado para trás. Seus pais também nunca pareceram curiosos sobre isso. Agora, aos vinte e cinco anos, Camélia percebia que aquilo nunca tinha sido normal. Seus pais, Flor e Gustavo, eram um casal equilibrado. Flor era mais reservada, dona de uma paciência invejável, mas