Kael inspirou fundo antes de bater na porta dos Alencar. Ele sabia que Camélia abriria. O cheiro de flor de laranjeira o atingiu em cheio. Seus olhos deslizaram rapidamente pelo rosto dela, e, por um momento, sentiu o rubor subir à pele, lembrando-se do sonho que tivera com ela. Idiota, pensou, forçando-se a manter a postura firme.
Camélia o encarava com confusão e desconfiança. Antes que alguém falasse, Júlio se adiantou, apertando a mão de Kael e chamando todos para dentro.— Que bom que você veio, Kael. Entre.Kael notou como Júlio e Camélia reagiam a ele. O homem parecia desconfiado, enquanto Camélia estava inquieta. Eles pareciam ignorar o que ele representava, como se não soubessem das lendas da cidade. Aquilo o pegou de surpresa. Eles realmente não sabiam?Cauã, de braços cruzados, o observava com evidente antipatia.— Quem você pensa que é para falar assim? — disse ele.Júlio levantou a mão, impedindo que qualquer um falaO caminho de volta para casa foi mais longo do que deveria. Kael caminhava sem pressa, os pensamentos pesando como pedras em seus ombros. O cheiro de flor de laranjeira ainda impregnava sua pele, mesmo que ele tentasse ignorar. Mesmo que tentasse se convencer de que não importava.Liderar sua matilha já era uma responsabilidade enorme, mas ser o Alfa Supremo exigia mais. Todas as matilhas da cidade, cada uma com seus próprios costumes e conflitos, dependiam dele para manter a ordem.Alguns líderes confiavam nele, outros apenas toleravam sua posição. Mas, nos últimos meses, ele começou a sentir algo diferente no ar: dúvida.Matilhas antes neutras estavam hesitantes, e rumores de insatisfação começavam a circular.As luzes estavam acesas quando ele entrou, e o aroma de chá dominava o ambiente. Lorena estava sentada no sofá, um livro aberto em sua mão e uma xícara de chá na mesinha de centro a sua frente. Seus olhos, sempre afiados, se ergueram as
Camélia estava em seu quarto, sentada na beira da cama, mexendo distraidamente na borda do cobertor enquanto tentava organizar seus pensamentos. Algo dentro dela se agitava, uma sensação incômoda, como se algo a estivesse puxando para um lugar que ela não conseguia compreender.O quarto estava iluminado apenas pelo abajur ao lado da cama, lançando sombras suaves nas paredes de madeira. Cauã estava encostado na porta, os braços cruzados e a expressão fechada. Ele não era de demonstrar facilmente suas emoções, mas Camélia sabia que ele estava preocupado.— Você tá estranha. — Ele finalmente quebrou o silêncio, seu tom baixo, mas firme. — Desde que chegamos aqui, você tem agido diferente.Camélia soltou um suspiro, inclinando a cabeça para trás e encarando o teto. Como ela poderia explicar algo que nem ela mesma entendia?— Eu não sei, Cauã. — Ela passou a mão pelos cabelos, frustrada. — É como se… tivesse algo me puxando pra cá. Algo que eu não
Serra dos Riachos não era uma cidade qualquer, era viva e pulsava sob os pés dos que passavam, sussurrava através das árvores, escondia segredos no reflexo dos riachos, era uma cidade que respirava. Aqui, o mundo visível e o invisível se entrelaçavam. Aqui, lendas não eram apenas lendas. Safira foi a primeira a ouvir o aviso, nas águas calmas do Bosque da Névoa, onde as guardiãs buscavam refúgio para se centralizarem, criarem amuletos e discutirem o destino da cidade. Em um desses momentos, a profecia veio até ela como um sussurro no vento, como se a própria Serra dos Riachos se materializasse. A noite estava densa, o ar carregado com o peso de algo que não podia ser visto, apenas sentido. A lua cheia pairava alta no céu, derramando sua luz prateada sobre a floresta silenciosa, que servia como testemunha de segredos antigos. No centro da clareira, um círculo de guardiãs permanecia imóvel, como se aguardassem algo. No meio delas, Safira ergueu o rosto, seu olhar intenso refletindo o
Camélia nunca gostou de perguntas sem respostas, ela era do tipo que desvendava padrões, que lia entrelinhas e desconfiava de silêncios longos demais. Cresceu sendo a pessoa que resolvia problemas, que planejava antes de agir, que não gostava de sentir que estava sendo deixada de fora de algo. E, naquele momento, algo não fazia sentido, a avó arrumando a mala com um olhar perdido. O avô mais silencioso do que o normal e o nome de uma cidade que nunca tinha ouvido antes: Serra dos Riachos. Desde pequena, Camélia sabia que sua família era diferente. Mas, em vez de histórias mirabolantes sobre o passado, havia apenas silêncio. Seu avô mudava de assunto quando questionado. Sua avó sempre dizia que o passado já havia ficado para trás. Seus pais também nunca pareceram curiosos sobre isso. Agora, aos vinte e cinco anos, Camélia percebia que aquilo nunca tinha sido normal. Seus pais, Flor e Gustavo, eram um casal equilibrado. Flor era mais reservada, dona de uma paciência invejável, mas
A primeira passagem que encontrou foi comprada sem pensar duas vezes por Cauã. Camélia arrumou suas coisas rapidamente, a tensão aumentando a cada minuto que se passava. A viagem pareceu interminável. Cada quilômetro percorrido apenas reforçava sua certeza de que algo estava errado, de que estavam atrasados para algo que ainda não compreendiam. Quando a aeronave finalmente pousou, ainda de manhã cedo, ela inalou profundamente o ar fresco, notando como ele parecia diferente. Mais puro, carregado com o frescor da vegetação e o perfume das flores espalhadas pelo vento. A névoa fina dançava entre as montanhas, como um véu separando dois mundos. O ar gelado da manhã a envolveu assim que saiu do avião, um abraço aconchegante depois de horas abafadas dentro da cabine. O cheiro de terra e grama molhada entrou em seus pulmões, como uma brisa suave e bem-vinda. Porém, algo a fez hesitar. Camélia sentiu que estava pisando em um território que carregava mistérios, e ela não sabia o porquê. Tam
O encontro com aqueles dois ainda martelava na mente da jovem enquanto ela caminhava pelo centro de Serra dos Riachos. A cidade estava desperta agora. O céu azul pálido se espalhava acima dos casarões coloniais, banhando as ruas de pedra em uma luz dourada. O som de passos apressados ecoava entre as vielas, mesclado ao barulho distante de sinos e ao murmúrio das primeiras conversas matinais.Pequenos comércios abriam suas portas, e o cheiro de café fresco e pão recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que decoravam varandas e janelas. Serra dos Riachos parecia um lugar fora do tempo, lembrando um pouco a cidade de Petrópolis pela arquitetura. Mas havia algo estranho ali.Era uma cidade pacata demais para a tensão que se sentia no ar, para a forma como os olhares se demoravam um pouco mais sobre ela do que o necessário. A sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada esquina.Ela pegou o celular, ainda inquieta depois da confusão
Kael soube que ela estava ali antes mesmo de Júlio abrir a porta. O perfume doce e inconfundível de flor de laranjeira invadiu o ambiente antes do som da madeira sendo batida. E então, ela surgiu. A garota da praça. Kael manteve o rosto impassível enquanto via Júlio e Madalena a abraçarem, mas por dentro, uma irritação crescente o dominava. Ela não era apenas uma forasteira. Ela estava ligada à família Alencar, talvez neta de Júlio e Madalena. Isso não dissipava seu interesse, mas aumentava. Ela era bonita de um jeito perturbador. Os olhos dela, cinzentos como o céu antes da tempestade, avaliavam tudo ao redor, como se quisessem decifrar cada detalhe. Eles carregavam uma tempestade silenciosa, e Kael não sabia se queria fugir ou ser levado junto. Ela parecia mais preocupada com a família do que com ele. — O que aconteceu? — Camélia perguntou, sua voz carregada de preocupação. O silêncio tomou conta, a tensão no ar se tornando palpável. Júlio pigarreou, surpreso pela chegada repent
Camélia permaneceu imóvel enquanto a porta se fechava atrás de Kael. O cheiro de chuva, ainda em sua pele, misturava-se ao perfume amadeirado da casa. Ela inspirou profundamente, tentando dissipar a sensação inquietante que ele deixava. Por que ele mexia tanto com ela? A pergunta martelava em sua mente enquanto se dirigia até a janela. Mordendo o lábio, inquieta, não gostava da forma como seu corpo reagia sem permissão. — Ele te incomodou? — A voz calma de Madalena a trouxe de volta. Camélia se virou, encarando a avó com uma mistura de confusão e relutância. — Não. — Hesitou. — Quer dizer, sim. Mas não do jeito que você pensa. Madalena inclinou a cabeça, um brilho curioso nos olhos. — O que há entre vocês não pode ser ignorado. Só quero que esteja pronta para o que isso significa. Camélia tentou aliviar a tensão com uma risada curta, mas o peso das palavras da avó a incomodava. — Eu sei me cuidar, vó. Não temos nada, o conheci hoje. Antes que Madalena pudesse responde