Kael soube que ela estava ali antes mesmo de Júlio abrir a porta. O perfume doce e inconfundível de flor de laranjeira invadiu o ambiente antes do som da madeira sendo batida. E então, ela surgiu. A garota da praça.
Kael manteve o rosto impassível enquanto via Júlio e Madalena a abraçarem, mas por dentro, uma irritação crescente o dominava. Ela não era apenas uma forasteira. Ela estava ligada à família Alencar, talvez neta de Júlio e Madalena. Isso não dissipava seu interesse, mas aumentava. Ela era bonita de um jeito perturbador. Os olhos dela, cinzentos como o céu antes da tempestade, avaliavam tudo ao redor, como se quisessem decifrar cada detalhe. Eles carregavam uma tempestade silenciosa, e Kael não sabia se queria fugir ou ser levado junto. Ela parecia mais preocupada com a família do que com ele. — O que aconteceu? — Camélia perguntou, sua voz carregada de preocupação. O silêncio tomou conta, a tensão no ar se tornando palpável. Júlio pigarreou, surpreso pela chegada repentina. — Estamos bem. O que está fazendo aqui? Era para continuar no Rio, cuidando das coisas como pedimos — disse ele, meio sem jeito. Camélia arqueou uma sobrancelha, nada convencida. — Continuar no Rio? Estivemos incomunicáveis por semanas, e quando finalmente chego aqui, é isso que me diz? — Ah, minha menina, está tudo bem! Seu avô está ótimo, como pode ver. Ficamos sem sinal na cidade, por isso não conseguimos falar com você. — Mas nós não sabíamos de nada, só que ele estava no hospital e depois disso, nada. — Você sempre chega assim, fazendo perguntas antes de sequer se apresentar, Lobinha? — Kael perguntou, sem saber se sentia irritação ou diversão. Os olhos dela se fixaram nele, afiados como lâminas. — Lobinha? E você sempre aparece onde não é chamado? Kael ergueu uma sobrancelha, lembrando-se de que ele mesmo dissera isso para ela antes. — Você chegou depois de mim, lembra? — disse Kael. Camélia entreabriu os lábios, como se fosse rebater, mas hesitou e sorriu, um sorriso irônico. Pela primeira vez, Kael sentiu algo diferente, algo que não deveria estar ali. Ela o avaliou de cima a baixo, como se tentasse decidir algo sobre ele. — Sim, mas essa aqui é a minha família. Você é só… quem mesmo? Júlio interveio. — Essa é Camélia, nossa neta. E ele é Kael, um novo amigo da família. Não seja tão ríspida, Camélia. Demonstre mais respeito. Ela suspirou, cruzando os braços. — Claro. Porque tudo aqui faz muito sentido. E por que eu deveria respeitar alguém que nem conheço e que me desrespeitou primeiro? Kael reprimiu um sorriso. Ela era atrevida, e ele não deveria achar isso interessante. Mas achou, e ele não sabia o que era pior: a forma como ela bagunçava seus sentidos ou o fato de que ela já o fazia reagir. Ele desviou o olhar, cerrando o maxilar. Seus ombros estavam tensos, o cheiro dela ainda no ar. Júlio e Madalena trocaram um olhar discreto, como se vissem algo que os dois ainda não percebiam. Ricardo, apoiado casualmente no batente da porta, soltou uma risada baixa. — Bom, parece que a neta de vocês tem personalidade forte. Isso vai ser interessante. Kael lançou um olhar de advertência para ele, mas Ricardo apenas ergueu as mãos em rendição, sorrindo. Enquanto isso, a energia na casa parecia diferente, como se a presença de Camélia mexesse com algo além dos presentes. O cheiro dela estava mais forte, ou talvez fosse impressão de Kael. Mas ele sentia que algo havia mudado desde sua entrada. Camélia suspirou, claramente contrariada, mas sem argumentos. Kael sentiu um impulso de prolongar a conversa, mas se conteve. Era melhor ir embora. — Acho que já me demorei demais — disse ele, ajeitando o casaco. Kael se despediu brevemente de Júlio e Madalena. Ao passar por Camélia, sentiu o cheiro dela de novo, mais forte. Ela seria um problema. O cheiro de terra molhada estava no ar, e as primeiras gotas de chuva caíam pesadas. Kael se dirigia ao carro quando ouviu passos atrás de si. — Dia interessante, hein? Kael suspirou e se virou. Ricardo estava encostado na varanda, sorrindo de canto. — O que foi? — Kael finalmente soltou. — Você está tenso. Mais do que o normal. Kael bufou. — Óbvio. Passei o dia lidando com Davi, com suspeitas sobre o acidente de Júlio e agora… — Ele parou. Ricardo ergueu uma sobrancelha. — Agora? Kael não respondeu, apenas segurou com mais força o guidão da moto. — Ah, cara, eu estou me divertindo com isso. — Ricardo riu. — Você nunca foi de esconder as coisas. Eu vi como olhava para a garota. Kael não precisou que o nome fosse dito. Ele sabia exatamente de quem se tratava. — Não faço ideia do que você está falando. Ricardo o estudou antes de continuar. — Você já não tem uma possível predestinada? A irritação de Kael se transformou em algo mais pesado. — Você acha que eu não sei disso? — Acho que seu corpo parece estar ignorando esse detalhe. Boa sorte com isso, Braga. Kael acelerou e saiu dali antes que Ricardo pudesse dizer mais. Ele passou a mão pela nuca ao se despedir, sentindo o peso do dia. Assim que deixou a casa de Júlio e Madalena, voltou às suas responsabilidades como Líder Supremo. Mas sua mente não estava ali. Desde que Camélia entrou, algo dentro dele mudara. Ele tentou ignorar. Se afundou em trabalho. Se distraiu. Mas o perfume dela ainda pairava no ar, impregnado em sua pele, como uma lembrança insistente. Quando a noite finalmente caiu, Kael dirigiu de volta para casa. O céu estava carregado, as nuvens pesadas escondendo a lua. O cheiro de chuva pairava no ar. O vento começou a soprar com mais força assim que Kael parou o carro ma frente de sua casa. A chuva já havia cessado quando ele estacionou na entrada de sua casa. Antes mesmo de abrir a porta, já sabia que sua mãe ainda estava acordada, Lorena Braga nunca dormia cedo. Assim que entrou, encontrou a cozinha ainda iluminada, e o cheiro de ervas frescas dominava o ambiente. — Demorou. A voz dela veio do corredor, calma, mas atenta, Kael soltou um suspiro, cumprimentando sua mãe e tirar os sapatos. — Aconteceu muita coisa hoje. Lorena cruzou os braços, avaliando-o. — Davi?— Kael assentiu. — Ele com toda certeza está armando algo. Ela não precisou falar mais nada. Apenas esperou, Kael passou a mão pelos cabelos molhados, tentando afastar a tensão do dia. — Eu acho que ele esteve envolvido no acidente de Júlio. Lorena manteve a expressão neutra, mas seu olhar ficou mais afiado. — Mas tem outra coisa te incomodando. — Hoje, conheci uma pessoa nova na cidade. —Ele desviou o olhar por um segundo, irritado consigo mesmo — Ela apareceu no meio da minha discussão com Davi. E depois descobri que ela é neta dos Alencar. Lorena franziu levemente o cenho. — E isso te irritou? —Kael bufou. — Me incomodou. Ela sorriu de canto, tomando um gole do chá que segurava. — Vou dormir. — Disse ele se aproximando e depositando um beijo na testa de sua mãe. — Boa noite, meu filho. — retribuiu ela com um sorriso gentil. Ele subiu as escadas lentamente, o cansaço se arrastando pelo corpo. Jogou a jaqueta sobre a poltrona, desabotoou a camisa e passou a mão pelo rosto antes de se jogar na cama, exausto, mas não encontrou descanso. O sonho começou como um sussurro. O calor da pele dela contra a sua, um toque que era ao mesmo tempo suave e urgente. Camélia, ela estava ali. Kael sentiu o perfume de flor de laranjeira antes de vê-la. Quando a encontrou, estava perto demais. Seus olhos cinzentos estavam carregados de algo indescifrável: desafio, desejo, caos. Camélia deslizou os dedos por sua nuca, um toque leve que fez seu corpo inteiro reagir. — Você não pode fugir disso. — Sua voz era um sussurro quente contra seus lábios. Ele tentou falar, mas ela não deu espaço. Aproximou-se ainda mais, até não haver mais distância entre eles. Seus corpos se alinharam perfeitamente, a respiração dela misturando-se à sua. As mãos dela exploravam seu peito com a intensidade de quem queria marcar cada linha de sua pele. O toque a fez queimá-lo por dentro. Kael a puxou para mais perto, o corpo dela se moldando ao seu. O primeiro beijo foi lento, carregado de tensão. Ele aprofundou o contato, deslizando os dedos pelos cabelos cacheados dela. Camélia gemeu contra sua boca, as mãos apertando seus ombros. Era viciante, como se tivessem sido feitos para aquilo. A língua dela provocava, testava seus limites. Kael a segurou pela nuca, dominando o beijo, explorando-a com uma intensidade que não sabia ser capaz de sentir. As mãos dela arranharam sua pele, arrancando-lhe um suspiro rouco. Queria mais, queria perder-se naquele momento. De repente, o calor sumiu. O toque desapareceu. Ele acordou, com o peito acelerado e o corpo ainda tenso. A respiração estava descompassada, os lábios formigando, como se o beijo tivesse sido real. Merda. Isso estava errado. Nunca sonhara com Tânia assim. O destino já estava traçado para ele, certo? Então por que, ao fechar os olhos, tudo o que sentia era o gosto de Camélia, a garota que acabara de conhecer?Camélia permaneceu imóvel enquanto a porta se fechava atrás de Kael. O cheiro de chuva, ainda em sua pele, misturava-se ao perfume amadeirado da casa. Ela inspirou profundamente, tentando dissipar a sensação inquietante que ele deixava. Por que ele mexia tanto com ela? A pergunta martelava em sua mente enquanto se dirigia até a janela. Mordendo o lábio, inquieta, não gostava da forma como seu corpo reagia sem permissão. — Ele te incomodou? — A voz calma de Madalena a trouxe de volta. Camélia se virou, encarando a avó com uma mistura de confusão e relutância. — Não. — Hesitou. — Quer dizer, sim. Mas não do jeito que você pensa. Madalena inclinou a cabeça, um brilho curioso nos olhos. — O que há entre vocês não pode ser ignorado. Só quero que esteja pronta para o que isso significa. Camélia tentou aliviar a tensão com uma risada curta, mas o peso das palavras da avó a incomodava. — Eu sei me cuidar, vó. Não temos nada, o conheci hoje. Antes que Madalena pudesse responde
Foi então que Ricardo surgiu ao lado de Júlio, com as mãos nos bolsos e um sorriso relaxado. — E eu achando que ia precisar caçar vocês pela cidade. — Ricardo brincou, olhando para Camélia e Cauã. — Finalmente temos a família Alencar em Serra dos Riachos, esse é o neto mais velho de vocês? O olho cinza não nega. — Ricardo! — Júlio sorriu e deu um tapinha no ombro do amigo. — Você já conhece Flor e Gustavo, é sim! Esse é o Cauã, não liga muito não, ele é um rapaz bem desconfiado de tudo. Esse aqui é um amigo de longa data, meu braço direito. Cauã estreitou os olhos de leve, analisando Ricardo antes de apertar sua mão. – Prazer, que engraçado ouvir que você é o braço direito dele, nunca ouvi falar de Ricardo e bem de Serra dos Riachos. — ele falou zombeteiro. — Mas, bom te conhecer. — Ah, acontece! Mas agora vocês estão aqui, não é? — Ricardo respondeu com um sorriso divertido. — Vocês já tem algum plano? O que acham de irmos almoçar
A respiração de Kael estava acelerada quando abriu os olhos. Seu peito subia e descia de forma irregular, como se tivesse corrido uma longa distância. O quarto ao redor permanecia imóvel, mas o ar parecia denso, abafado. A única luz vinha da lua, filtrada pelas cortinas entreabertas.Tânia era sua predestinada. O destino deles estava traçado. Mas tudo o que sentia agora era o toque de Camélia.Kael levantou-se de súbito, irritado. Seu corpo clamava por ação, por qualquer coisa que silenciasse aquela inquietação. O cheiro dela impregnava o ambiente, como se quisesse dominá-lo. Seu lobo reagia, inquieto, mas ele se recusava a ouvir. Passou as mãos pelo rosto, afastando o incômodo. Não podia se dar ao luxo de distrações.Como Alfa Supremo, sua responsabilidade ia além da matilha. Cada líder o via como referência. Até os que o desafiavam precisavam respeitá-lo. Ele precisava manter a ordem em Serra dos Riachos.— Isso não é sobre você, Kael — murmurou
Serra dos Riachos não era uma cidade qualquer, era viva e pulsava sob os pés dos que passavam, sussurrava através das árvores, escondia segredos no reflexo dos riachos, era uma cidade que respirava. Aqui, o mundo visível e o invisível se entrelaçavam. Aqui, lendas não eram apenas lendas. Safira foi a primeira a ouvir o aviso, nas águas calmas do Bosque da Névoa, onde as guardiãs buscavam refúgio para se centralizarem, criarem amuletos e discutirem o destino da cidade. Em um desses momentos, a profecia veio até ela como um sussurro no vento, como se a própria Serra dos Riachos se materializasse. A noite estava densa, o ar carregado com o peso de algo que não podia ser visto, apenas sentido. A lua cheia pairava alta no céu, derramando sua luz prateada sobre a floresta silenciosa, que servia como testemunha de segredos antigos. No centro da clareira, um círculo de guardiãs permanecia imóvel, como se aguardassem algo. No meio delas, Safira ergueu o rosto, seu olhar intenso refletindo o
Camélia nunca gostou de perguntas sem respostas, ela era do tipo que desvendava padrões, que lia entrelinhas e desconfiava de silêncios longos demais. Cresceu sendo a pessoa que resolvia problemas, que planejava antes de agir, que não gostava de sentir que estava sendo deixada de fora de algo. E, naquele momento, algo não fazia sentido, a avó arrumando a mala com um olhar perdido. O avô mais silencioso do que o normal e o nome de uma cidade que nunca tinha ouvido antes: Serra dos Riachos. Desde pequena, Camélia sabia que sua família era diferente. Mas, em vez de histórias mirabolantes sobre o passado, havia apenas silêncio. Seu avô mudava de assunto quando questionado. Sua avó sempre dizia que o passado já havia ficado para trás. Seus pais também nunca pareceram curiosos sobre isso. Agora, aos vinte e cinco anos, Camélia percebia que aquilo nunca tinha sido normal. Seus pais, Flor e Gustavo, eram um casal equilibrado. Flor era mais reservada, dona de uma paciência invejável, mas
A primeira passagem que encontrou foi comprada sem pensar duas vezes por Cauã. Camélia arrumou suas coisas rapidamente, a tensão aumentando a cada minuto que se passava. A viagem pareceu interminável. Cada quilômetro percorrido apenas reforçava sua certeza de que algo estava errado, de que estavam atrasados para algo que ainda não compreendiam. Quando a aeronave finalmente pousou, ainda de manhã cedo, ela inalou profundamente o ar fresco, notando como ele parecia diferente. Mais puro, carregado com o frescor da vegetação e o perfume das flores espalhadas pelo vento. A névoa fina dançava entre as montanhas, como um véu separando dois mundos. O ar gelado da manhã a envolveu assim que saiu do avião, um abraço aconchegante depois de horas abafadas dentro da cabine. O cheiro de terra e grama molhada entrou em seus pulmões, como uma brisa suave e bem-vinda. Porém, algo a fez hesitar. Camélia sentiu que estava pisando em um território que carregava mistérios, e ela não sabia o porquê. Tam
O encontro com aqueles dois ainda martelava na mente da jovem enquanto ela caminhava pelo centro de Serra dos Riachos. A cidade estava desperta agora. O céu azul pálido se espalhava acima dos casarões coloniais, banhando as ruas de pedra em uma luz dourada. O som de passos apressados ecoava entre as vielas, mesclado ao barulho distante de sinos e ao murmúrio das primeiras conversas matinais.Pequenos comércios abriam suas portas, e o cheiro de café fresco e pão recém-saído do forno se misturava ao perfume das flores que decoravam varandas e janelas. Serra dos Riachos parecia um lugar fora do tempo, lembrando um pouco a cidade de Petrópolis pela arquitetura. Mas havia algo estranho ali.Era uma cidade pacata demais para a tensão que se sentia no ar, para a forma como os olhares se demoravam um pouco mais sobre ela do que o necessário. A sensação de estar sendo observada a acompanhava a cada esquina.Ela pegou o celular, ainda inquieta depois da confusão