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ATO 1 | 1 - A ORDEM DO CAPUZ VERMELHO

"O som alto e rítmico do machado ecoava por toda a floresta, espantando os animais que buscavam abrigo. Os musculosos braços do incansável guerreiro tremiam ante a força dos seus próprios golpes. E apesar de toda a sua truculência, a criatura permanecia imóvel, firme e aparentemente inabalável. O inimigo era gigante, muitas vezes maior e parecia ser bem mais forte. Era evidente que travava uma batalha desigual. Mas então alguns potentes golpes acompanhados de grunhidos pareceram surtir algum efeito. O monstro balançou, primeiro quase que imperceptivelmente. Mas mesmo aquela sutil fraquejada foi suficiente para que o guerreiro reunisse toda a força que lhe restava em um último golpe devastador. Foi o suficiente para seu imenso inimigo gemer e tombar vagarosamente como qualquer gigante que se preze. E então ele finalmente encontrou o chão, fazendo toda floresta tremer e os pássaros mais distantes partirem em revoada, sob o alto grito do vitorioso guerreiro:"

- MADEIRAAAA!!!

Apenas mais um dia de trabalho. Assim era para Honor Den’ador e seu afiado machado. Derrubar a árvore, cortar em tocos e reunir a lenha. Mas era só olhar para os olhos da pequena Ane, sentada confortavelmente a poucos metros entre as flores altas da floresta, para saber que aos olhos de sua filha as árvores eram mais do que um pedaço de madeira. Era um inimigo recém derrubado em uma batalha de vida ou morte. E o sorriso no rosto do lenhador vinha do fato de saber que neste “faz de conta” infantil ele era um grande herói.

- Mais um monstro vencido, filhote! – Alimentou a fantasia da garota enquanto se aproximava dela com um amontoado de lenha.

- Viva! Ninguém pode derrotar o papai! – A criança aplaudia sorridente.

Ane Den’Ador havia completado sua sétima primavera há poucos dias. Os cabelos negros e cumpridos permaneciam parcialmente amarrados com um laço vermelho, alvoroçados ao sopro da brisa primaveril como um fardo de trigo sacudido pelo vento. O vestido amarelo salpicado de flores vermelhas e com uma barra branca bailavam no ar enquanto a menina saltitava e girava, comemorando a vitória do seu imbatível guerreiro.

- Isso mesmo! Papai é invencível! – Bradou Honor afagando os cabelos da garota e quase soltando os poucos fios que o laço resistia em prender.

Cuidado, papai! – O repreendeu tentando sem sucesso ajeitar o cabelo e apertar o laço. – Mamãe disse que se eu perder outro laço vai cortar todo o meu cabelo.

De fato, Dora já havia perdido as contas de quantas tiras de tecido a criança perdera no trajeto de ida e volta junto ao pai. Advertira fortemente que aquela era a última tira. Pois “dadas as tantas perdidas, era bem capaz de encontrarem alguns pés-de-tiras-vermelhas brotados pelo caminho”, dizia em pura ironia. Mal sabia dona Dora que aquelas palavras foram tomadas por verdade pela pequena menina. Tanto que desde então, a cada dia em que ia e voltava, observava atentamente as árvores da floresta tentando encontrar o falado “pé-de-tira”, mencionado pela mãe. Chegou ao ponto de enterrar uma das tiras na inocência de que dali nascesse a famigerada árvore.

- É verdade, minha querida. – Respondeu o lenhador. – Amarra bem esta tira ou ficaremos sem almoço.

Enquanto tomavam o caminho de volta a menina esperançosa continuava a correr, de árvore em árvore. Pouco atrás seu pai a chamava sempre que a jovem se distanciava, tentando acompanha-la enquanto carregava o amarrado de lenhas e seu velho machado. Foi então que Alicia parou bem diante de uma das árvores. A cabeça erguida e os olhos arreglados voltados para sua copa. Apontou eufórica para o alto gritando pelo pai:

- Papai! Papai! Eu encontrei! – A euforia incontida evidenciava-se nos pulinhos. – Encontrei o pé-de-tiras-vermelhas!

- Não pode ser verdade! – Honor esboçou um sorriso incrédulo. – Deixa-me ver!

O homem chegou junto a filha, largou as lenhas e prendeu o machado em sua cintura enquanto observava o alto da árvore.

- Veja se não é verdade! – Exclamou cofiando sua barba escura e espessa. – Quem poderia imaginar? Nasceu mesmo um pé-de-tiras-vermelhas!

No alto da árvore frondosa, pendendo entre os galhos verdes, era possível observar claramente uma enorme quantidade de tiras vermelhas a sacudirem ao vento junto das folhas largas. O vermelho das tiras misturava-se ao verde, encantando a menina que saltitava alegre.

- Peque uma, papai! – Gritou a menina enquanto puxava o macacão que o homem vestia. – Vamos levar uma para a mamãe!

- Não sei se podemos arrancá-las antes de amadurecerem, filha. – Respondeu o homem ainda observando ao alto. – Acho que ainda estão verdes.

- Não seja bobo, papai. – Retrucou a menina. – Não vê que estão vermelhas.

O homem gargalhou e, após muita insistência, retirou da árvore uma fita e entregou para a filha.

Os dois percorriam felizes o caminho de volta para casa. A pequena Ane feliz por sua árvore de fitas. E seu pai satisfeito por seu feito acertado. Certamente fora trabalhoso sair na noite anterior enquanto a filha dormia e amarrar todas aquelas fitas na árvore, mas ver a alegria de sua pequena fazia qualquer esforço valer a pena.

Já na entrada da floresta, pai e filha já podiam ver ao longe sua casa. Encrustada em meio ao verde da relva projetava-se uma construção de madeira muito bem projetada. As paredes de grossas tábuas castigadas pelo tempo carregavam um envelhecer sadio de aparente robustez. Apesar do aspecto velho, seu bom projeto era resistente e ainda duraria muitos anos. No alto o telhado firme abria espaço para uma chaminé protuberante que cuspia uma fumaça densa arrastada pelo vento, carregando consigo o aroma apetitoso do almoço que os esperava.

Por alguma insistência Ane conseguiu, como sempre, uma carona no ombro do pai. Não tinha como desagrado o suor do homem cansado, muito menos o cheiro típico do odor de uma manhã de trabalho pesado. Antes, atinha-se apenas a sua fita vermelha, erguida ao ar pela mão esticada que oscilava viva embalada pela refrescante brisa.

Honor parou um instante para tomar fôlego quando repentinamente um grito estridente alertou seus sentidos. Grito vindo de sua casa, no timbre de sua esposa. Alicia, que também ouvira, gelou segurando fortemente o pescoço do pai:

- Mamãe... – Sussurrou a menina assustada.

Imediatamente o homem a desceu dos seus ombros, largou a lenha e abaixou-se encarando a menina:

- Ane, eu quero que me espere aqui. Não saia daqui até que eu volte! – Ordenou enquanto empunhava seu machado. E o aceno positivo da menina foi o suficiente para que ele disparasse a largas passadas.

O lenhador parou diante da casa. O punho firme de dedos calejados envolvia fortemente o cabo do machado. Os cabelos longos de fios dourados e uns poucos grisalhos cobriam parcialmente seu rosto. Os olhos de um verde faiscante perscrutavam cada detalhe, procurando o que pudesse justificar o grito de horror de sua esposa. O silêncio, porém, permitia que apenas sua respiração ofegante e seu coração acelerado pudessem ser ouvidos, enquanto sentia suas veias saltarem e seus instintos gritarem: “Há algo de errado”.

Honor caminhou lentamente até a porta da entrada, encontrando-a arrombada com talhos de garras cruzando a madeira. Seu raciocínio ágil buscava as possibilidades do que teria provocado aquelas marcas. “Grandes demais até mesmo para um urso”, pensou enquanto empurrava a porta buscando a visão de sua amada. Encontrou-a caída, para seu desespero, imóvel sobre uma poça de sangue recém-formada.

- Dora! – Gritou antes que pudesse pensar em temer por qualquer risco que ainda estivesse ali. Um instinto afetuoso sobrepôs a auto preservação, fazendo com que o homem corresse para o corpo de sua esposa. Debruçou-se sobre ela, erguendo a parte superior do dorso e acomodando-a em seu colo.

- Oh, Deus! Por favor, não! Dora! Dora! – Sacudia a mulher que com muito esforço abriu os olhos. O rosto descorado e os lábios roxos, trêmulos e vagarosos balbuciando algo.

- Não fale, meu amor! Você vai ficar bem!

Honor não podia dizer, àquela altura, se estava tentando convencer a esposa ou a si mesmo. Havia olhado seus ferimentos: o dorso rasgado por um único e profundo golpe pelo qual o sangue vertia em profusão, como um frasco quebrado a derramar seu precioso líquido. Então ele soube que ela não ficaria bem. Já havia sangrado animais demais pela floresta para saber que um ferimento daquele era mortal. Ainda que tentasse conter o sangramento com um tecido caído por perto, no fundo sabia que sua esposa não tinha muito tempo de vida.

Os lábios, tantas vezes delicadamente beijados, agora esforçavam-se a mover na tentativa de proferir algo abafado demais enquanto as forças da mulher esvaiam. Ele então aproximou o ouvido agarrando-se á tentativa de ouvir o que sabia, seriam suas últimas palavras.

- Pro-teja... Proteja... Ane...

As palavras fizeram os olhos já marejados derramarem as lágrimas que escorreram quentes pelo rosto do homem, misturando-se com o suor e perdendo-se entre os fios de sua barba.

- Eu juro, meu amor! Juro que a protegerei com minha vida! – As frases saíram embargadas pelo choro retido na garganta. Ela sorriu, confortada pela promessa que naquele momento, era seu último acalento. Então ele viu o último sorriso desfazer-se a medida que a vida esvaia dos olhos ainda abertos. Abraçou-a com força, o corpo tremendo em um soluço incontido. E enquanto apertava-a contra seu corpo sentiu o grito crescer dentro de si até finalmente eclodir, ecoando pelas paredes afora. Um grito cheio de dor e de raiva. Um urro que atingiu toda a floresta como um trovão, fazendo as aves próximas voarem para longe.

Foi somente quando o grito cessou e o silêncio retornou que o lenhador sentiu que não estava sozinho. O cheiro de pelo molhado como um cachorro sujo saído da chuva denunciou sua presença. Mas não era um cachorro, nem mesmo um urso. Ele já havia sentido aquele cheiro antes, impregnado pelas árvores mais distantes da floresta como que um aviso para que aventureiros não fossem adiante. Os olhos percorreram primeiro para o machado, deixado ao chão longe de si. Então buscaram a origem daquele baixo rosnado e assim, pela primeira vez, pôde observar aquela monstruosa e gigantesca criatura. Parado envolto pelas sombras que enegreciam um dos cantos da casa estava aquele que era não apenas um Lican – o predador lobo-hominídio mais temido de toda a Fábula – mas também o assassino de sua amada esposa.

Consciente de que havia sido finalmente notado o Lican caminhou lentamente para fora das trevas que o encobriam. Sua pelugem negra ostentava respingos vermelhos do sangue da mulher caída entre eles. A criatura era imensa, quase atingindo o teto. As garras, longas e afiadas, gotejavam o espesso líquido vermelho. Os olhos amarelos e furiosos fitavam o homem enquanto mostrava suas presas, emitindo um rosnado que começava a aumentar.

Honor parecia letargo, incomodamente calmo. Ergueu-se devagar, sem ainda encarar seu inimigo. Caminhou lentamente até seu machado, abaixou-se e envolveu-o em suas mãos, apertando-o com tanta força que parecia querer quebra-lo em pedaços. Virou-se novamente para a criatura, mantendo os olhos fixos no corpo da esposa, já sem vida aos seus pés. E ainda a olhando proferiu em tom firme, porém baixo:

- Espero que de alguma forma possa entender minhas palavras. Eu juro que este metal clamará de ti o sangue que ousou derramar. Gota por gota.

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