A fúria esvaiu do peito do Lican junto daquele estrondoso uivo, deixando o silêncio e o dissabor amargo de uma vergonhosa derrota que o corpo sem vida da Capuz Negro não era capaz de aplacar. Nada justificava sua falha, sua única falha que ele sabia, seria como uma farpa em sua mente. Uma mancha indelével em sua impecável jornada de caçadas perfeitas. Nunca havia falhado e por certo não gostou nem um pouco daquela angustiante sensação. Como pôde permitir que sua autoconfiança sobrepusesse a tarefa?
Não havia o que fazer. Sua presa, a infeliz distração de vermelho e as corjas guerreiras das sombras já haviam fugido com a recompensa. Obtiveram sucesso onde ele fracassara miseravelmente.
Fenrir olhou para o corpo ainda quente sob ele: Um amontoado de retalho negro, mesclado de vermelho. Afogou a culpa do erro no troféu descomedido que seria apresentar a gue
A Clareira do Desafio não mudara nem um pouco desde aquele fatídico dia em que Fenrir perdeu seu pai. O cheiro de terra úmida misturado com a relva verde que a margeava era exatamente o mesmo, jorrando-lhe memórias em bicas. Foi o que atraiu seu olhar para a trilha que subia o barranco ao longe, margeada de árvores e plantas, local por onde, há alguns invernos, Fenrir e Rokah desceram e o Lican viu seu pai ser derrotado por aquela mesma figura que agora o enfrentaria.Enquanto a multidão formava um círculo o uivador aproximou-se, indo até o centro onde Fenrir e Ragnar se encaravam. As palavras eram substituídas pelos olhares trocados entre os três, cada um muito certo de como funcionava o desafio.Inclinando o focinho para o alto, mirando Luna redonda no meio do céu estrelado, o uivador proferiu alto dois uivos curtos seguidos de um longo. Este indicava para toda a tribo exatamente do qu
De todas as casas da tribo, rústicas e sem padrão algum em suas construções desleixadas de todo tipo de material possível, a maior e mais destacada era a do Grande Lobo. As paredes de bambu revestidos por argila dura e betume, resistiam bravamente às intempéries climáticas. Grande o suficiente para abrigar a família do líder da tribo, era passada por todos aqueles que empossavam o título maior da tribo.A sombra da Lican precedeu seu corpo cinza e gracioso, invadindo o ambiente que, se tornara sua morada desde que seu pai assumiu o Thronus. E mesmo tendo passado tantos invernos, era impossível para ela não sentir o cheiro inebriante do Fenrir, cada vez que adentrava.Caminhou até um dos cantos do grande cômodo, absorta em seus pensamentos. De tão distraída não percebeu o vulto que se avolumou atrás de si até que a sombra dele a enco
O toque das buzinas misturou-se aos uivos, preenchendo a madrugada fria com o som da batalha. Banhados pela prata de Luna, tocados pelo frio do inverno, a improvável Alcateia dos nove Licans avançava ligeiramente rumo a aldeia diante deles. Mesmo que a Ordem do Capuz estivesse sendo protegida por todas as guerreiras, aquela seria uma luta difícil. Mas com a maior parte delas em missão, as chances de vencer aquela batalha eram muito pequenas. E Zi’Za sabia muito bem disso.– Vá proteger as crianças! – A agora Capuz Branco gritou para sua ex pupila, já apanhando sua espada e se preparando para o confronto – Leve-as para o esconderijo.– Não vou deixa-la sozinha! – Foi a resposta de Ni’La que firmou sua posição ao lado da outra.– Não se preocupe! – A voz veio de uma das aprendizes que já se apressava rumo às casas. &
Como que atingido por um raio, Fenrir sentiu uma onda de tremor percorrer seu corpo. Os pelos ouriçaram e, imóvel, tentava assimilar aquela informação absurdamente improvável. Uma irmã humana? Como aquilo seria possível? A mente fervilhava enquanto tentava negar, mas de alguma forma, seus instintos diziam que tal aterradora informação era verdade. De alguma forma o cheiro, o olhar ou algo no aspecto familiar dela sempre o incomodou, desde que a conhecera. Uma familiaridade até então inexplicável que agora fazia algum sentido, mesmo parecendo completamente absurdo.– Fenrir! – O grito de Hemi soou repetitivo e irritado. – O que está fazendo? Acabe logo com elas!A Lican o trouxe de volta à realidade. Olhou para o lado e viu a outra quebrar parte da lança que lhe traspassou o ombro e lutar com apenas uma das patas. E ainda assim ela era formidá
Era final de outono. As folhas precipitavam-se das arvores ao menor dos ventos, preenchendo o ambiente de tons quentes que variavam do laranja ao marrom. E o vento estava forte naquele fim de tarde. As copas semidesnudas das altas árvores permitiam observar o céu laranja do crepúsculo vespertino.Nodi ainda era um jovem Lican, recém empossado ao Thronus por seu moribundo pai, que seguiu o "Caminho do Ancião Guerreiro", a última peregrinação de um Lican que vive o bastante para não conseguir mais lutar. Para não se tornar um fardo para a tribo, este se impõe um autoexílio, buscando seus últimos atos de glória. Mesmo com sua grande experiência em combate e caçada, desde a época em que ainda era um Alpha da principal Alcateia da sua tribo, o Lican não percebeu que a presa que estava perseguindo queria que ele a perseguisse. E quando se deu conta já
Alguns segredos são impronunciáveis. O mero sussurro poria em ameaça a sociedade como é conhecida. Outros segredos ficam ocultos por tanto tempo que se tornam mitos inacreditáveis, piadas risíveis, histórias repassadas entre gerações para entreter quem ouve. Onde esta história se encaixa fica a seu critério julgar. Cabe a mim apenas revelar o que me foi passado com a responsabilidade de impedir que seja esquecida. Pois um dia a verdade cobrará sua dívida daquelas que empenham suas vidas a enterrar seu passado.Há muito muito tempo, em um planeta cuja tecnologia era extremamente desenvolvida, um grupo de cientistas formado por sete mulheres radicais se reunia às escuras e com seus rostos encobertos a fim de desenvolver suas pesquisas secretas e proibidas.O grupo, que acabou se tornando uma sociedade secreta, ficou conhecido entre seus membros como A Ordem do Capuz,
– Eu juro que este metal frio roubará de ti o que ousaste roubar de mim. Gota por gota.Palavras ao vento. Uma promessa não cumprida. Honor não foi capaz de proteger sua esposa. Não foi capaz de proteger sua filha como prometera. E por fim não foi forte o bastante para vinga-las.– Corra para a floresta! Para a casa da vovó! Corra agora!Uma última instrução. Não foi capaz de aplacar a sensação de que havia falhado como marido e pai. Incapaz, só pôde observar aquela criatura grotesca perseguir a menina pelo campo como se seus pesados olhos pudessem guia-la em segurança. E por fim os olhos pesados se fecharam sem que pudesse ver o desenrolar daquela injusta caçada.***– O-oque...O lenhador sentiu algo tocar-lhe. Sem forças para conseguir enxergar, apenas um gemido indicou que ainda estava vivo. Algo o sacud
– Papai! Me ajude! Papai! Papai!Em um sobressalto, ofegante a suado, Honor ergueu seu tronco buscando ao redor a pequena que clamava por sua ajuda. A mente confusa ainda reestabelecia sua consciência, até que se deu conta de que a filha estava apenas em seu pesadelo, "único lugar onde ela ainda vivia e para sempre viveria", pensou. Súbito, o pensamento de sua incapacidade deu lugar a uma preocupação mais emergente: Onde ele estava e como fora parar ali? Aliás, onde era "ali"?Só então a última lembrança despontou em sua mente: Um Lican! Ele fora capturado por um Lican! Os olhos buscaram o machado, mas só encontraram um cômodo escuro e bem decorado – ele estava em um quarto. A cama onde estava deitado parecia improvisada, um amontoado de palha com uma pele escura e quente do que um dia fora um urso. Sobre uma mesa no canto, um candelabro com algumas velas acesas ilumina