A fresta de luz que entrava pela porta aberta iluminava o corpo sem vida de Dora, fazendo cintilar a poça de sangue sob ele. Uma visão quase poeticamente bela, não fosse aquela sua esposa. Uma fúria crescente ascendia do peito do lenhador, que olhava fixamente seu inimigo.
Do outro lado, a criatura grotesca de pelugem negra emitia um crescente som cavernoso. Ergueu lentamente as garras, evidenciando o sangue da mulher que as banhava até encharcar os pelos das patas. Súbito uma gota escorreu projetando-se e morrendo ao chão, produzindo um som que precedeu o início da batalha.
emitindo um alto grito, Honor saltou contra o Lican com seu machado estendido, procurando-lhe o peito. A criatura avançou em confronto em uma velocidade surpreendente. Agarrou o aço afiado do machado despreocupado em cortar-se e com a outra garra desferiu um golpe que passou a milímetros do rosto do lenhador, tendo este desviado no último instante. Os reflexos de Honor também impressionaram o Lican, que após ter seu golpe esquivado, afastou-se contornando o homem para observá-lo melhor.
Os dois se entreolhavam a distância - se estudando, se analisando. Desta vez, porém, foi o Lican quem tomou a iniciativa atacando com ferocidade. As garras cruzaram o ar rumo à cabeça de Honor que, ao invés de recuar, correu na direção do monstro. Há poucos centímetros do impacto o Lenhador jogou-se ao chão, arrastando-se por sob as pernas da criatura que golpeou apenas o ar. Na passagem, Honor atingiu as penas do monstro com o machado em um forte golpe.
Um rosnado alto foi emitido pela fera que cambaleou surpreso e virou-se para seu agressor com os olhos ardendo em fúria. Sentiu o sangue escorrer através dos pelos negros. Do outro lado Honor já se recuperava, bufando de ódio enquanto erguia o machado e exibia na lâmina afiada o líquido viscoso que escorria.
Naquele momento a fúria do Lican pareceu fervilhar. Um brilho vermelho emanou dos olhos ao que os pelos ouriçaram, fazendo-o parecer ainda maior. Ele encheu o peito peludo e esvaziou-o projetando um urro alto e assustador que fez tremer as paredes da casa e acelerar o coração de Honor. E antes que o caçador pudesse perceber o monstro já estava sobre si, com um golpe tão rápido que lhe escapou da vista. Sem a menor chance de defesa, Honor recebeu o impacto sendo arremessado contra a parede. Sentiu algumas costelas rangerem e se partirem, causando uma dor excruciante. Antes mesmo que seu corpo caísse, as garras do inimigo atravessaram sua carne, arremessando seu corpo contra a parede do outro lado. As costelas que haviam sobrevivido ao primeiro impacto não resistiram ao segundo, aumentando o número de fraturas. Desta vez, por permissão do Lican, o corpo do lenhador foi ao chão inerte.
Honor se viu caído ao lado do corpo da mulher. Diferente dele, porém, o seu ainda se movia dolorido, lutando para respirar, para permanecer vivo - o corpo exigia descanso, merecido descanso. Ele já havia dado tudo de si. Havia feito seu melhor, mas seu melhor não fora suficiente. E quem diria o contrário? Era só fechar os olhos. Só fechar os olhos...
Ele seus olhos e as luzes azuis se apagaram. E antes disso o Lican já sabia que havia vencido. Caminharia até sua presa caída e levaria os corpos até sua tribo como dois troféus da aplacável vitória. Mas antes que pudesse dar ao lenhador o golpe de misericórdia, ele percebeu que algo estava errado. Sentiu na respiração do homem e no mover do seu corpo quebrado um resiliência incompreensível. Por algum motivo inexplicável ele se negava a morrer.
O lenhados abriu os olhos e viu, diante dele, os olhos vazios a lhe fitar, como que cobrando a promessa recente. Um azul já sem brilho que pareciam, memso sem vida, exigir que ele se lembrasse da pequena menina que jurou proteger. Honor não podia morrer. Não ainda. Sorriu por dentro ao pensar na amada que sempre lhe conferiu força. A mesma força que o fazia levantar a cada manhã, erguer seu machado e sentir como se fosse capaz de derrubar todas as árvores da floresta. E mesmo sem vida aqueles olhos lhe deram a força que precisava novamente. A força para ignorar a dor e se reerguer. E para a surpresa do Lican ele se moveu. Os braços trêmulos esticaram-se. Os dedos calejados tocaram o cabo do machado e trouxeram-no para junto do corpo que, levantando lentamente em seguida. Cada costela rasgava-lhe a carne. Cada ferida expurgava um pouco de sua vida em sangue e dor. Ainda assim ele se ergueu e sentiu como se pudesse derrubar não cada árvore daquela floresta, mas aquele monstro que arrancara seu sol, seu céu... sua vida.
O Lican olhou incrédulo para aquela figura, embora tão frágil, incrivelmente resistente. Não entendia como ele ainda podia estar de pé. Já havia enfrentado tantos outros como ele, guerreiros que caíram por muito menos do que ele havia suportado. Como um ser tão fraco ainda conseguia se erguer? De fato, aquele oponente merecia seu respeito. E foi só então que passou a encará-lo, não como presa, mas como um digno combatente.
A luta que seguiu não foi deveras longa. Os dois trocaram mais alguns golpes, travando uma troca de garras e lâmina, mordidas e arremessos. Mas apesar de mostrar uma resistência sem igual, finalmente Honor caiu. A força do arremesso fez com que atravessasse a parede de madeira da casa, caindo do lado de fora em frente ao jardim. E por mais que sua mente ainda quisesse erguer-se e lutar, o corpo já não respondia. Ele havia ido muito além do seu limite e quele era o fim.
O Lican o seguiu caminhando porta à fora. Lentamente se aproximou, sabendo que a batalha finalmente terminara. Foi então que sentiu o cheiro. Um cheiro doce, bem diferente das flores do campo. Cheiro de um medo primitivo, misturado com algo entre o ódio e a surpresa. Os olhos buscaram a fonte daquele odor estimulante e encontraram, encolhida num canto perto da janela, o filhote do lenhador. A menina assustada encarava seu pai caído, quase sem vida. Fitou-a ali tremendo, arrebatada e imóvel e aquele cheiro de presa fresca o fez salivar entre as presas. Logo esquecera o lenhador semimorto e voltou sua atenção para algo mais interessante para brincar.
Já avançaria contra a garota quando sentiu algo agarrar-lhe os pelos da pata. Ouviu o homem gritar algo, ele não parava de impressioná-lo. Como, a beira da morte, ele ainda encontrava forçar para tentar detê-lo?
Honor gritou com as últimas forças que tinha. Precisava de alguma forma impedir que a criatura destruísse o que restara de sua família:
- Corra para a floresta! – Gritou o lenhador. – Vá para a casa da vovó! Agora!
O Lican viu então sua nova presa correr em disparada, como que desperta pelos gritos do seu pai. Um sorriso largo lhe tomou a face; afinal o prazer da caçada era mais saboroso que o abater da presa. Permitiu que a distância entre eles se tornasse maior enquanto observava atentamente a diminuta criatura avançar contra a relva verde rumo á floresta.
Em dado momento julgou ser o bastante e, sem muito custo, desvencilhou-se do lenhador que ainda tentava detê-lo para disparar em sua nova caçada.
Ane corria o máximo que suas curtas perninhas lhe permitiam. Sentia o mato alto cortar seu rosto, afiado como navalha naquela pele macia. Caiu algumas vezes, tropeçando pelo caminho. Ofegante, não ousava olhar para trás. A imagem de seu pai, seu herói derrotado, ainda imprimia pavor o de vê-lo como nunca havia visto. Pavor da criatura que lhe roubava o sono, encarnada das histórias que ouvia antes de dormir. E em desespero esqueceu-se de tantas vezes que seu pai havia falado sobre que caminho tomar. Perdida se desesperou ainda mais. Se escondeu então atrás de uma das árvores e fechou os olhinhos com força sussurrando em pensamento o nome do pai, torcendo para que tivesse sido rápida o bastante. Quieta e encolhida, tudo que ouvia era seu acelerado coração, tamborilando em seu peito agitado. Quisera ela não ouvir nenhum outro som. Quisera ela.
O som das folhas secas que seguiram indicava que o lobo rondava por perto. Ane mordeu os lábios para não gritar quando ouviu o fungar alto daquelas narinas enormes. As grandes presas da criatura rangiam, arrastando umas nas outras enquanto salivava. Ele estava mais perto. Ela sentiu as garras enormes arranharem a árvore em que se escondia e então seu sangue gelou. Mas de repente o silêncio. Não havia mais som algum, além do seu coração acelerado. E na quietude, aliviada por não ter sido encontrada, Ane abriu os olhos. Seu grito ecoou pela floresta quando viu, bem diante de si, os enormes olhos do lobo mau. Saciado com o fim da caçada o Lican ergueu as garras, pronto para abater a presa e dar fim a caçada. Ao menos era o que ele imaginava.
Um raio cintilante cruzou o céu, rasgando a cortina celeste onde nuvens pesadas e negras se projetavam. Um trovão fez o solo tremer, ecoando longe. Ane ergueu o rosto. Os olhos úmidos refletiram o monstro acima dela. As garras em riste a rasgariam ao meio, cada uma do tamanho da sua pequena cabeça. O peito da menina inflou e paralisou, retendo o ar. Os olhos percorreram os pelos alvoroçados, presas afiadas, olhos famintos e continuaram, rumo ao alto. Então viu algo planando descendente: Uma faixa vermelha caindo serena, dançando no ar. As mãos da menina tatearam a árvore onde se recostava. Sentiu a carapaça, rígida como uma armadura. Então seus olhos viram. No alto, bem no alto, cada fita vermelha estava lá. Jogadas ao vento, tentavam se desprender da árvore. Da sua árvore.- Papai... – sussurrou a menina.“Papai mentiu. Papai não era invenc&iacut
Pouco se sabe sobre o quando e menos ainda sobre o porquê. Mas sabe-se, e isto é pouco do que se dão a muito falar, que a Ordem do Capuz tem um único e derradeiro propósito: caçar e destruir os monstros chamados "Lican"! Para isto vivem e apenas para isto. E tudo o que fazem leva a este objetivo.A Ordem é formada apenas por mulheres, reclusas em algum lugar da densa floresta. Poucas já foram avistadas perambulando entre cidades e reinos, raras vezes ao caçar algum Lican que se atreveu a cruzar tais lugares. Mas sua história é conhecida por todos, quais heroínas e protetoras. Diz-se que entre elas há uma hierarquia de poder, mas a verdade é que há:No topo está a tríade matriarca, também chamadas de Capuz Branco.Juízas de autoridade suprema, ditam e fazem ser respeitadas as regras. Sua palavra é lei, cuja autoridade
Um uivo longo rasgou a noite, estendendo-se pela densa floresta. Seu timbre e força impressionantes tornavam claro: O uivador anunciava o Ko-Klave. Antes que o fôlego terminasse todos os outros Lican o acompanharam em uníssono, fazendo o solo tremer e qualquer animal desavisado, que por ventura caminhasse por perto, correr e se esconder.- Me espera, Fenrir!O filhote tentava acompanhar seu primo, correndo o mais rápido que podia através do atribulado caminho mata à dentro. Bem à frente, quase a perder de vista, o pequeno Fenrir corria apressado, evidenciando uma maestria maior que a do amigo.- Vamos, Rukah! – Gritou Fenrir sem desacelerar. – Não quero perder o início do Ko-Klave.O Ko-Klave era um rito de desafio, invocado contra o Grande-Lobo, o líder de toda a tribo. Um ritual que definia quem teria direito a liderança, resultando em banimento ou morte para o perde
A fúria esvaiu do peito do Lican junto daquele estrondoso uivo, deixando o silêncio e o dissabor amargo de uma vergonhosa derrota que o corpo sem vida da Capuz Negro não era capaz de aplacar. Nada justificava sua falha, sua única falha que ele sabia, seria como uma farpa em sua mente. Uma mancha indelével em sua impecável jornada de caçadas perfeitas. Nunca havia falhado e por certo não gostou nem um pouco daquela angustiante sensação. Como pôde permitir que sua autoconfiança sobrepusesse a tarefa?Não havia o que fazer. Sua presa, a infeliz distração de vermelho e as corjas guerreiras das sombras já haviam fugido com a recompensa. Obtiveram sucesso onde ele fracassara miseravelmente.Fenrir olhou para o corpo ainda quente sob ele: Um amontoado de retalho negro, mesclado de vermelho. Afogou a culpa do erro no troféu descomedido que seria apresentar a gue
A Clareira do Desafio não mudara nem um pouco desde aquele fatídico dia em que Fenrir perdeu seu pai. O cheiro de terra úmida misturado com a relva verde que a margeava era exatamente o mesmo, jorrando-lhe memórias em bicas. Foi o que atraiu seu olhar para a trilha que subia o barranco ao longe, margeada de árvores e plantas, local por onde, há alguns invernos, Fenrir e Rokah desceram e o Lican viu seu pai ser derrotado por aquela mesma figura que agora o enfrentaria.Enquanto a multidão formava um círculo o uivador aproximou-se, indo até o centro onde Fenrir e Ragnar se encaravam. As palavras eram substituídas pelos olhares trocados entre os três, cada um muito certo de como funcionava o desafio.Inclinando o focinho para o alto, mirando Luna redonda no meio do céu estrelado, o uivador proferiu alto dois uivos curtos seguidos de um longo. Este indicava para toda a tribo exatamente do qu
De todas as casas da tribo, rústicas e sem padrão algum em suas construções desleixadas de todo tipo de material possível, a maior e mais destacada era a do Grande Lobo. As paredes de bambu revestidos por argila dura e betume, resistiam bravamente às intempéries climáticas. Grande o suficiente para abrigar a família do líder da tribo, era passada por todos aqueles que empossavam o título maior da tribo.A sombra da Lican precedeu seu corpo cinza e gracioso, invadindo o ambiente que, se tornara sua morada desde que seu pai assumiu o Thronus. E mesmo tendo passado tantos invernos, era impossível para ela não sentir o cheiro inebriante do Fenrir, cada vez que adentrava.Caminhou até um dos cantos do grande cômodo, absorta em seus pensamentos. De tão distraída não percebeu o vulto que se avolumou atrás de si até que a sombra dele a enco
O toque das buzinas misturou-se aos uivos, preenchendo a madrugada fria com o som da batalha. Banhados pela prata de Luna, tocados pelo frio do inverno, a improvável Alcateia dos nove Licans avançava ligeiramente rumo a aldeia diante deles. Mesmo que a Ordem do Capuz estivesse sendo protegida por todas as guerreiras, aquela seria uma luta difícil. Mas com a maior parte delas em missão, as chances de vencer aquela batalha eram muito pequenas. E Zi’Za sabia muito bem disso.– Vá proteger as crianças! – A agora Capuz Branco gritou para sua ex pupila, já apanhando sua espada e se preparando para o confronto – Leve-as para o esconderijo.– Não vou deixa-la sozinha! – Foi a resposta de Ni’La que firmou sua posição ao lado da outra.– Não se preocupe! – A voz veio de uma das aprendizes que já se apressava rumo às casas. &
Como que atingido por um raio, Fenrir sentiu uma onda de tremor percorrer seu corpo. Os pelos ouriçaram e, imóvel, tentava assimilar aquela informação absurdamente improvável. Uma irmã humana? Como aquilo seria possível? A mente fervilhava enquanto tentava negar, mas de alguma forma, seus instintos diziam que tal aterradora informação era verdade. De alguma forma o cheiro, o olhar ou algo no aspecto familiar dela sempre o incomodou, desde que a conhecera. Uma familiaridade até então inexplicável que agora fazia algum sentido, mesmo parecendo completamente absurdo.– Fenrir! – O grito de Hemi soou repetitivo e irritado. – O que está fazendo? Acabe logo com elas!A Lican o trouxe de volta à realidade. Olhou para o lado e viu a outra quebrar parte da lança que lhe traspassou o ombro e lutar com apenas uma das patas. E ainda assim ela era formidá