Capítulo 4 Máscara

“E rompe através do silêncio

Tudo o que sobrou é tudo o que eu escondo.”

Despertei na cama, estava encharcada de suor, as batidas na porta pararam. “Eu sonhei tudo?”, pensou aturdida, tais pensamentos jamais haviam passado por minha mente. Uma forte dor de cabeça me atingiu assim que me pus de pé, afastei a cortina de bambu, notei que ainda não havia amanhecido. Descalça fui até a cozinha, Laura estava sentada à

mesa tomando uma xícara de café com leite.

— Bom dia! — cumprimentou-me sorrindo. — Como passou a

noite? Desmaiou antes da sobremesa?

— Bom dia, me desculpe. A verdade é que nunca havia bebido

antes, então acho que o vinho era mais forte do que aparentava —

confessei, juntando-me a professora para o desjejum.

Um copo de café preto sem açúcar, e meio pão francês cortado

foram o suficiente para me despertar de minha primeira ressaca.

— Devia ter tirado uma foto sua dormindo sentada, enquanto a

pequena Mimi mexia em seu cabelo.

— Não me lembro de nada disso, que sensação estranha. A única

coisa que lembro é de começar a tirar os pratos do jantar — expliquei envergonhada e, claro, nada mencionei sobre o sonho com Marcos.

Laura riu alto, divertindo-se com a situação.

— Pois é, se você bebe frequentemente criará certa tolerância, ou

pode nunca mais beber, isso fica a seu critério — aconselhou, depois de

beber o último gole de café. — Agora se arrume que, provavelmente,

Barbie já deve estar no centro de pesquisas, ela madruga sempre.

***

Barbie estava digitando algo quando, Laura e eu entraramos na

sala.

— Bom dia, gatas! — recepcionou-nos, sorrindo. — Melhorou? A

ressaca foi pesada!

— Estou melhor, obrigada.

Bárbara usava um jaleco branco sobre um vestido justo na altura

dos joelhos, scarpin pretos aveludados. Seus cabelos soltos, na altura dos

ombros.

— Esse é um dos motivos pelos quais todos aqui a chamam de

Barbie — explicou Laura apontando para os trajes da colega.

— Eu sei, eu sei, estou maravilhosa, obrigada. Não sou só um

rostinho bonito, meu bem, sabe a fila pela qual passou lá fora? São

pacientes dispostos a utilizar o composto que desenvolvemos, a notícia se

espalhou rápido e quando vocês chegaram estava digitando um e-mail para marcar uma reunião diretamente com Robert Pipermen — defendeu- se em tom indignado.

Ouvia as boas notícias, mas seus pensamentos ainda giravam em

torno de Marcos, a foto que havia sobre a mesa de Barbie, tornava mais

difícil esquecê-lo. “Concentre-se, o único objetivo aqui é a pesquisa. Deus,

por favor, remova esses pensamentos impuros”, pensei.

— Você ainda não parece bem, Ana, precisamos de sua atenção

total aqui. Tome isso aqui — disse Barbie tirando dois comprimidos do

jaleco e deixou sobre a mesa.

— O que é isso? — indagou curiosa.

— Metilfenidato, não é nada pesado, pode confiar em mim —

assegurou ela. — A partir de hoje, ele fará parte da sua rotina.

Laura foi até a lousa de vidro e notou que haviam modificado suas

últimas anotações, apanhei as pequenas cápsulas sobre a mesa e as

engoli. O relógio na parede marcava sete e trinta. Após quase uma hora,

já me sentia mais disposta, determinada, os estudos e pesquisas me

envolveram durante horas a fio.

— Almoça comigo? — Barbie surgiu ao lado de Ana que

manuseava com cuidado dois tubos de ensaio.

Éramos as mais jovens de um grupo composto por químicos e

biomédicos. Notou os olhares invejosos assim que a nova colega

pendurou seu jaleco, olhares tão óbvios quanto os de desejo, porém

Bárbara ignorou ambos.

— Depois você continua os testes com os ratos, agora você precisa

comer — disse convencendo-me.

Obedecendo a colega, vedei os tubos e guardei-os.

O almoço com Bárbara foi agradável, cada uma comeu uma fatia

de pizza, em um quiosque e Barbie decidiu fazer um pequeno desvio, ao

passar em frente ao Boticário.

— Podemos dar uma paradinha? Preciso de um novo delineador —

implorou ela balançando Ana, como uma criança pedindo um brinquedo a

mãe.

— Tudo bem — cedi ao pedido quase infantil.

Uma miscelânea de odores adocicados, frascos de diferentes

tamanhos, cores e formas. Uma consultora com maquiagem perfeita

abordou-as. A jovem negra vestia uma baby look e calças na cor preta,

um lenço dourado de cetim, adornava seu pescoço enquanto sombras em

um tom azul harmonizavam seu olhar. Observei os detalhes com atenção,

admirando a exótica jovem à sua frente.

— Isa, querida! Preciso de um delineador a prova d’água, pó

compacto tom pêssego, blush, batom “sorrisos” e outro “surpresa” —

solicitou de imediato.

— Certo, um instante, por favor — pediu licença e saiu.

Bárbara virou-se para mim e indagou, curiosa.

— Você nunca usa maquiagem?

— É... não tenho muito jeito para isso. — respondeu passando uma

mecha atrás da orelha, não havia motivo para falar sobre o

conservadorismo de minha mãe. “Certamente seria motivo de riso”. —

Esta não está entre minhas habilidades. Desde que me lembro, meu foco

foram números.

Ela sorriu, mexeu no celular dentro da bolsa e olhou as horas.— Temos tempo, só preciso de cinco minutos — anunciou Barbie

me colocando em uma cadeira. — A graça do ser humano é a capacidade de mudar e adaptar-se ao seu meio, você é uma graça, querida, mas tem algo em você, uma insegurança, um medo que a cerca, que realmente me intriga. — Enquanto falava, segurou o rosto de Ana e passou uma leve camada de pó... — Nós mulheres sentimo-nos muito mais ambientadas, quando nossa confiança está nas alturas. Agora não pisque. — Passou o rímel com agilidade. — Quero que saiba que pode contar comigo, viu?! Delicada, mas sem cara lavada.

Olhei-me no grande espelho à sua frente, e sorri.

— É, ficou bom — confessei a ela.

A consultora sinalizou, mostrando que o pedido estava pronto.

Barbie levou mais alguns itens em uma cesta e foi até o caixa fazer o

pagamento.

— Vamos? — anunciou ela, segurando duas pequenas sacolas.

Caminhamos apressadas, à uma hora de intervalo estava

chegando ao fim. Antes que entrassem no laboratório, entregou uma das

sacolas para mim.

— Inteligentes e belas.

Lhe abraçei e agradeci o presente sentindo-se mal pelo sonho que

tive com Marcos.

Uma senhora de cabelos grisalhos se aproximou e abordou-as.

— Moças, este é o laboratório que está dando os comprimidos?

Nós a acompanhamos até o laboratório para que preenchessem os

formulários. Horas mais tarde, Laura e eu ouvimos os gritos de Barbie,

que entrou na porta saltitando.

— O que aconteceu? — indagou Laura curiosa.

— A secretária de Pipermen ligou, informando que ele tem um

horário disponível para hoje, às dezoito horas. Ao que parece, um grupo

de empresários não conseguiu chegar a tempo, então ela nos encaixou.

— E isso é bom? — questionei, sem entender a magnitude da

empresa.

— Claro, se conseguirmos o apoio deles, teremos uma das maiores

empresas farmacêuticas do nosso lado — explicou Barbie entusiasmada.

— Venha, tenho um tailleur reserva na minha sala, deve servir em você.

Eu a encarei, incrédula.

— O quê? Sou uma mulher prevenida. Agora vamos que Pipermen

tem fama de quem não está acostumado a esperar.

Os preparativos foram rápidos, em poucos minutos nós já

estavamos no carro, a caminho do edifício La Cerda, o trajeto demoraria

menos de vinte minutos, mas deslocar-se no centro de Porto Alegre,

naquele horário, prolongou o percurso. Laura olhava o relógio

constantemente, enquanto agitava o braço esquerdo, com gesto

obscenos, amaldiçoando o engarrafamento infernal. Barbie lia alguns

papéis em voz baixa ensaiando um discurso, quase improvisado. Dênis

estava sentado ao lado de Ana, distraído em seu smartphone jogando

Sudoku. Passei as mãos pelas coxas. “M*****a meia-calça”, pensei

sentindo-se desconfortável com a coceira. “Não passe as unhas na meia-

calça, isso puxa fio que é uma maravilha e você não vai querer parecer

uma puta pobre, não é mesmo?”, Barbie aconselhou enquanto se

arrumavam. Notei que a atenção de Dênis estava voltada para minhas

pernas, então pigarreou:

— Então, Dênis, vi a foto de sua esposa e filha em sua mesa. São

realmente lindas, parabéns pela família.

Dênis engoliu em seco, passando a mão pela careca deslizando os

poucos fios que resistiram para o lado e respondeu:

— Obrigado. — Voltou a olhar para o jogo.

***

— Boa tarde, viemos para a reunião com o Sr. Pipermen, ficamos

presas no trânsito — explicou Laura, justificando o atraso de quinze

minutos.

— Boa tarde, senhora Laura Campos, um instante por favor,

informarei ao Sr. Pipermen sobre a sua chegada.

Eu e Barbie trocamos olhares, nossos pensamentos em sintonia,

impressionadas com a exótica beleza da jovem ruiva.

— Sr. Pipermen, Sra. Laura Campos e as representantes do

Conselho chegaram. — A ruiva de olhos azuis intensos parecia ter saído

diretamente do catálogo da Victoria Secrets, usava um vestido cinza

escuro, contrastando com sua pele alva. — Sim, o horário da reunião era

meia hora atrás, mas... — A ruiva fez uma pausa, e acatou as ordens de

seu chefe. — entendo perfeitamente. Certo, Sr. Pipermen, como desejar.

A ruiva colocou o telefone no gancho, escolheu as palavras com

cuidado ao notar o nervosismo da professora Laura.

— Infelizmente o senhor Robert não poderá atendê-los, mas

solicitou que reagendasse sua reunião para fevereiro.

“Nós estamos em novembro, três meses de protelação por alguns

minutos de atraso”, pensou Ana, indignada.

— A apresentação será rápida, por favor, precisamos de alguns

minutos apenas, entendemos como a agenda do Sr. Pipermen é, mas isso

envolve vidas, 12,7 milhões de pessoas são diagnosticadas com câncer

por ano e 7,6 milhões não sobrevivem, conseguimos desenvolver um

medicamento único que...

A ruiva a interrompeu:

— Por favor, senhora Laura, o Sr. Pipermen já tomou sua decisão.

A agenda para fevereiro inicia a partir do dia 25.

Eu não podia acreditar no que acabara de ouvir, senti uma estranha

febre se apoderar de meu corpo, não podia ouvir mais nada daquilo, sabia

o quanto Laura havia se dedicado para essa pesquisa. “Sete milhões e

seiscentas mil pessoas” a imagem desse número descomunal, corpos

enfileirados de crianças e adultos a perder de vista lhe vieram à mente. Eu

precisava fazer algo! Caminhei em direção à porta, ignorando as súplicas

da secretária:

— Por favor, senho...

Não dei ouvidos, empurrei as pesadas portas com as duas mãos,

precisava conseguir “alguns minutos”.

Robert Pipermen estava ao celular, olhando pela janela quando

surgi, invadindo sua sala como um vendaval.

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