Se pudesse descrever Peter, talvez ele fosse um clichê ambulante de alguém que acredita na justiça acima de tudo. Formado em direito, mas com alma de policial, ele jamais aceitaria se trancar em um escritório e viver à base de processos e audiências. Não, o cara precisava de ação, precisava sentir que fazia diferença, mesmo que isso significasse ganhar menos e carregar as marcas de sua escolha na pele. Para ele, o trabalho era mais que um emprego; era uma forma de garantir que ninguém passasse pelo que Clara e Luna, as pessoas que ele mais amou, sofreram. E se isso não soa nobre o suficiente, então você claramente não o conhece.
Agora, veja só o destino: Peter estava voltando para sua cidade natal. Isso mesmo, aquele lugar que ele fugiu durante anos e que agora o acolheria novamente, mas com um detalhe intrigante. Ele havia pedido a transferência. Por quê? Nem ele sabia ao certo. Talvez fosse nostalgia, ou talvez uma necessidade de encarar os fantasmas do passado. Seja qual fosse o motivo, ele estava prestes a descobrir.
Claro, isso não aconteceu sem as inevitáveis piadinhas de Jeff, o amigo mais irritantemente intrometido e leal que Peter poderia ter. Enquanto ajudava a encaixotar as coisas, Jeff fez a pergunta mais aleatória possível:
— E o que vai fazer com o cachorro? — Como assim, o que fazer com o cachorro? Max, o pequeno lobinho de 25 quilos, era praticamente a sombra de Peter.
— Vou levar comigo, é claro. O que mais eu faria? — Peter respondeu, chamando Max, que prontamente pulou em suas pernas como se dissesse: “Está vendo? Eu sou indispensável!”. E era mesmo.
Jeff, sempre o engraçadinho, sorriu de lado.
— Solteiro, boa pinta e com um cachorro fofo. Vai conquistar a mulherada! Isso se tiver alguma mulher com menos de 60 anos naquele fim de mundo! — disse, arrancando uma risada breve de Peter.
Mas o assunto ficou sério logo em seguida. Jeff sempre tinha algo sábio a dizer, mesmo que fosse entre piadas e provocações.
— Se permita conhecer alguém, cara. Você vive fechado no passado, mas a vida não espera. Bons momentos merecem ser compartilhados com quem a gente ama. — As palavras ecoaram mais fundo do que Peter gostaria de admitir. Afinal, Clara e Luna eram exatamente isso: os amores que ele perdeu e que ainda doíam como se fosse ontem.
Era impossível não sorrir ao lembrar das duas. E ao mesmo tempo, impossível não sentir a pontada de tristeza. Peter sabia que precisava seguir em frente, mas algumas coisas são difíceis de abandonar.
Ah, os dias passaram tão rápido que foi só piscar e Peter já estava na nova casa, recebendo visitas. Não deu nem tempo de esquentar o sofá e lá estavam os vizinhos — uns ajudando a desfazer as caixas, outros trazendo "misturas", ou seja, comida. Misturas! Alguém lembra a última vez que o pobre Peter teve uma refeição feita com tanto cuidado? Nem ele. Mas ali estava, num redemoinho de boas-vindas, que só cidade pequena sabe fazer.
— Detetive, você já conhecia a cidade? — Um rapaz de olhar curioso perguntou enquanto Peter tentava organizar uma pilha de livros.
— Essa vila não, mas vivi na cidade quando era criança. — respondeu com um sorriso contido, enquanto segurava Max, que tentava arrancar um pedaço da caixa.
— Você vai adorar o lugar! Temos reunião de moradores na próxima semana, vai ser uma oportunidade de conhecer o pessoal e saber como andam as coisas. — Uma senhora falante interrompeu, parecendo ser a embaixadora não oficial da vila.
Peter acenou educadamente, mas, no fundo, sua mente viajava para outro lugar. Clara e Luna adorariam conhecer essas pessoas, pensou ele. As duas tinham um dom especial para fazer amigos como se amizade fosse um esporte olímpico e elas fossem medalhistas. Ele lembrou da última conversa que tiveram, da empolgação delas em viajar pela primeira vez com os amigos da escola. Ah, essas lembranças… elas sempre vinham embaladas com um toque de saudade e aquele peso no peito que nunca ia embora por completo.
Lá fora, a chuva fraca tocava o telhado, criando a trilha sonora perfeita para suas reflexões. Peter, por sua vez, começou a falar com o cachorro como se estivesse desabafando em um diário. Porque, sejamos sinceros, Max nunca o julgaria. E isso era mais do que podia dizer sobre qualquer ser humano. Depois de uma cerveja e um banho quente, ele se preparou para dormir, com Max enrolado aos seus pés, como uma almofada peluda e fiel.
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No dia seguinte, Peter estava no café, pronto para começar a ronda. Ele se sentou no balcão e começou a observar o movimento. Pessoas entrando, saindo, conversando, e então... ela. Uma ruiva de cabelos curtos, sentada perto da janela. Seus olhos cor de mel tinham um brilho tão encantador que, por um momento, o mundo ao redor de Peter ficou em segundo plano. Ela retirou um livro de dentro de uma bolsa laranja e, logo depois, o dono do café trouxe o pedido dela. Os dois riram de algo, e Peter, bem, ele só conseguia admirar a cena. Bonito demais para ser ignorado, não é?
Mas o tempo não para para quem se distrai com ruivas. Ele percebeu que estava quase atrasado e saiu apressado. A manhã passou num piscar de olhos, tranquila como raramente é para um policial. Na hora do almoço, encontrou um restaurante simples e aconchegante, onde pôde comer em paz enquanto o noticiário passava na televisão.
Próximo a ele, uma conversa chamou sua atenção. Uma garota falava animadamente para as amigas:
— Eu lembro de uma série que assisti. Era um dorama perfeito! A mulher era uma detetive, investigava um caso de assassinato em série, e todas as pistas indicavam que o criminoso era o marido dela. O problema era que o cara parecia perfeito, ninguém imaginaria. Fiquei angustiada junto com a protagonista. Já imaginou descobrir que a pessoa que você ama é um assassino? No futuro, eu vou ser uma investigadora tão boa quanto ela!
As amigas riram, e a conversa mudou de rumo. Peter balançou a cabeça, sorrindo. Jovens e suas ideias! Na vida real, é bem diferente. Esconder algo assim de alguém com quem você vive? Improvável. Especialmente se a pessoa for uma investigadora de verdade.
Mais tarde, com o sol se pondo e o clima agradavelmente fresco, Peter decidiu caminhar com Max. O cachorro, corria feito louco, como se tivesse ficado preso por dias. No parque, Max fez o que sabia fazer de melhor: socializar. Convidou as crianças para brincarem, porque, claro, ele era o cão mais sociável da vila. E enquanto Max espalhava alegria, Peter aproveitou para respirar fundo, sentindo a tranquilidade daquele momento simples. Ele ainda estava se ajustando, mas algo naquela cidade, talvez as pessoas, talvez o ritmo fazia parecer que, finalmente, as coisas estavam no lugar certo.
Corpos em sincronia, num ritmo intenso. Sobe, desce, rebola devagar... uma mistura de esforço e leveza, dor e prazer. Não, antes que alguém se apresse a pensar besteiras, estamos falando de dança! E não qualquer dança, mas uma aula de contemporâneo liderada por Aurora, uma mulher que parecia encarnar a arte em cada movimento. Hoje era um dia especial: a turma havia finalizado pela primeira vez uma sequência inteira das músicas para o festival do bairro. Um marco, diga-se de passagem, considerando que algumas alunas estavam ali havia poucos meses e outras, menos de trinta dias.Aurora, formada em dança e balé clássico, vivia para momentos como esse. Quando dançava, parecia flutuar. Era como se, por alguns instantes, nada pudesse abalar sua paz, como se o mundo inteiro se dissolvesse e tudo que restasse fosse o ritmo e sua liberdade. Porque dançar é isso: muito mais do que mexer o corpo em um palco, é encontrar um jeito de gritar em silêncio, transmitir sentimentos com movimentos singel
O café estava como sempre: um santuário para os amantes do silêncio e dos aromas reconfortantes de grãos torrados. Peter já havia transformado aquele lugar em uma extensão de sua rotina. Mesa de canto, café preto, olhar para o movimento sem compromisso. Mas, naquele dia, algo mudou.Aurora estava lá.Claro, ela costumava estar, mas hoje parecia diferente. Não era apenas sua presença, mas o modo como seus olhos estavam concentrados em um livro que repousava sobre a mesa. Ele reconheceu a capa imediatamente uma edição antiga de A Divina Comédia. Aquele livro não era algo que se encontrava por acaso, e menos ainda algo que muitas pessoas leriam casualmente, como quem lesse uma comédia romântica da autora Jéssica Luz.“Interessante,” pensou Peter, enquanto esperava seu café. Seu olhar voltava a ela repetidamente, como se a cena exigisse atenção. Aurora parecia tão absorta que não percebeu os olhares discretos que ele lançava em sua direção. “Uma mulher tão jovem, tão bonita, lendo Dante?
Aurora estava sentada no mesmo café, à mesma mesa próxima à janela. A cena parecia uma reprise do dia anterior, mas a energia era diferente. Talvez fosse o modo como Peter a observava ou algo na postura dela, uma mulher imóvel no meio de uma cidade pequena e sempre em movimento. Mas ela estava ali novamente, absorta em seu ritual silencioso.O livro, A Divina Comédia, repousava aberto no meio da mesa. E, mais uma vez, era o Purgatório que prendia sua atenção. Um detalhe curioso, talvez até desconcertante, dependendo do ponto de vista. Normalmente, é o Inferno que fascina. Chamas, castigos, gritos de desespero – a humanidade parece irresistivelmente atraída pelo grotesco. Já o Paraíso, com sua luz infinita, evoca uma aspiração sublime, mesmo que distante. Mas o Purgatório? Este é o espaço que poucos escolhem habitar, muito menos explorar com tamanha dedicação como Aurora fazia.Por que alguém se fixaria tanto nesse lugar intermediário? Um espaço de incerteza, onde as almas penam, mas a
O café estava vazio naquela manhã, exceto por Aurora. Desta vez, ela não trazia o livro de Dante, mas um caderno pequeno, usado, com a capa marcada pelo tempo e o cheiro antigo de páginas esquecidas. Sentada na mesma mesa de sempre, escrevia com intensidade, como se estivesse exorcizando seus demônios através da tinta. E, na verdade, era isso mesmo que fazia. Na noite anterior, algo havia mudado. O som dos pesadelos cortou a tranquilidade ilusória que ela mantinha. Uma voz do passado grave, familiar, perigosa trouxe memórias que Aurora lutava para manter enterradas. Palavras ecoavam em sua mente desde então, desconexas, mas pesadas: "Você não pode fugir para sempre." E que problemas uma ruivinha, bailarina e bonitinha teria para lhe causar tantas aflições?Todos lutamos contra nossos demônios, isso é uma realidade da vida, mas o preço das escolhas que você faz é o que vai definir o real peso dos seus problemas. ---------Do outro lado da cidade, Peter começava a se aprofundar em out
Era uma daquelas noites em que o mundo parecia respirar mais devagar. As luzes da cidade, embora constantes, pareciam se apagar e acender de forma compassada, acompanhando o ritmo de corações inquietos. Peter e Aurora caminhavam em silêncio pela calçada, o som dos passos preenchendo os espaços entre as palavras que nenhum dos dois parecia ter coragem de dizer.Se fosse mais direto, poderia afirmar que Peter estava apenas sendo educado ao acompanhá-la até o estúdio. Mas isso seria uma mentira. A verdade era que ele sentia uma necessidade quase protetora, um instinto que ele não conseguia explicar, mas que crescia toda vez que ela desviava o olhar, como se carregasse algo muito pesado para compartilhar.E Aurora… ah, Aurora. Ela era uma enigma ambulante, envolta em véus de mistério
Peter passou o início da tarde em sua rotina habitual. A delegacia da pequena cidade nunca era exatamente movimentada, mas, naquele dia, havia uma pilha de relatórios o aguardando. Nada fora do comum, pequenas disputas de vizinhos, denúncias anônimas que raramente levavam a algo sério. Mas, enquanto preenchia os papéis, seus pensamentos vagavam.Aurora.Ele se pegava pensando nela com uma frequência que começava a incomodá-lo. Havia algo em seus olhos que parecia esconder segredos, mais que isso havia muito tempo que ele não pensava tanto em outra mulher, o trauma passado com a sua namorada da juventude não deixava. Essa curiosidade e vontade extrema de ver a moca o deixava em alerta, mas, ao mesmo tempo, o puxava de um jeito que era difícil resistir.— Ei, Peter! — Chamou um dos colegas. — Você vai no show de talentos hoje?Peter levantou os olhos do relatório.— show?— No ginásio comunitário. Parece que até a professora de balé do bairro vai se apresentar com as alunas. — O tom do
A manhã já era diferente do que se espera de uma cidade pequena e pacata. Um assassinato na madrugada reuniu os investigadores da região. A cena do crime estava inquietantemente silenciosa, exceto pelo som de passos sobre a terra seca e murmúrios entre os agentes. Zé Castor, um nome que carregava medo e ameaça, agora jazia imóvel na saída da cidade. Peter observava o corpo, tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça que ainda nem tinha bordas claras.A perfuração no peito era fatal, mas limpa. Não havia bagunça, não havia luta. Apenas a rosa vermelha repousando ao lado, como um lembrete silencioso de que aquilo não era obra do acaso.— Lembra alguma coisa, não acha? — Disse um dos agentes da perícia, mostrando a rosa com cuidado, sem tocá-la diretamente.Peter franziu o cenho. Claro que lembrava. Há meses, outro homem com um histórico sombrio fora encontrado morto em circunstâncias quase idênticas. Na época, a falta de pistas havia encerrado o caso antes mesmo de começar. Mas ago
A noite estava silenciosa no pequeno quarto que Rose chamava de lar. A única iluminação vinha da chama trêmula de uma vela, lançando sombras dançantes nas paredes. Sobre a mesa, uma rosa vermelha descansava dentro de um pequeno copo d'água, como um prêmio cuidadosamente escolhido.Rose segurava uma caneta, rabiscando em um caderno de capa preta. Cada página continha anotações organizadas, meticulosas, e, ao mesmo tempo, quase poéticas. Ela escreveu devagar, como se cada palavra fosse um ritual. Em outra página, havia recortes de jornais, manchetes sobre crimes que pareciam desconexos para os investigadores, mas que, para ela, seguiam um padrão. As fotos das vítimas estavam marcadas com círculos vermelhos, cada um indicando um ato necessário.No canto do quarto, uma caixa de madeira fechada por um cadeado continha algo que ninguém jamais deveria encontrar. Rose a olhou por um momento, mas não se aproximou. Não ainda. A rosa na mesa era a única companhia que ela precisava naquele moment