O café estava vazio naquela manhã, exceto por Aurora. Desta vez, ela não trazia o livro de Dante, mas um caderno pequeno, usado, com a capa marcada pelo tempo e o cheiro antigo de páginas esquecidas. Sentada na mesma mesa de sempre, escrevia com intensidade, como se estivesse exorcizando seus demônios através da tinta. E, na verdade, era isso mesmo que fazia.
Na noite anterior, algo havia mudado. O som dos pesadelos cortou a tranquilidade ilusória que ela mantinha. Uma voz do passado grave, familiar, perigosa trouxe memórias que Aurora lutava para manter enterradas. Palavras ecoavam em sua mente desde então, desconexas, mas pesadas: "Você não pode fugir para sempre." E que problemas uma ruivinha, bailarina e bonitinha teria para lhe causar tantas aflições?
Todos lutamos contra nossos demônios, isso é uma realidade da vida, mas o preço das escolhas que você faz é o que vai definir o real peso dos seus problemas.
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Do outro lado da cidade, Peter começava a se aprofundar em outra investigação. O caso do agressor parecia resolvido, mas algo não encaixava completamente. Era como olhar para um quebra-cabeça montado com peças ligeiramente erradas – a imagem geral fazia sentido, mas os detalhes gritavam por atenção.
Transferências bancárias suspeitas surgiram de repente, e todas apontavam para um homem desaparecido há meses. Não era coincidência. O padrão era tão deliberado, tão meticulosamente calculado, que parecia um convite. Como se alguém quisesse que as peças fossem vistas, mas nunca tocadas. Peter sentia um desconforto crescente no peito, uma intuição aguda de que essa investigação o levaria a territórios perigosos. Algo que ele sempre dizia a si mesmo que não temia. Mas seria verdade?
Enquanto dirigia para o café, Peter percebeu que seus pensamentos frequentemente vagavam para Aurora, e isso era estranho. Mesmo sem querer, ele sempre a comparava a seus casos um mistério denso e fascinante, que ele nunca sabia se seria capaz de resolver. Ele não podia negar que havia algo nela que o intrigava além do que seria prudente para alguém como ele.
Quando Peter entrou no café, o sino na porta soou suave, interrompendo Aurora de sua concentração. Ele parou por um momento ao vê-la. A luz da manhã delineava seu rosto, mas não conseguia suavizar os traços de cansaço e a rigidez da sua postura. A caneta em sua mão parecia uma arma, escrevendo com um foco tão intenso que ele quase se sentiu culpado por interromper.
O caderno chamou sua atenção pequeno, desgastado, e claramente importante para ela. Ele sabia que perguntar sobre isso seria um erro. Aurora tinha a habilidade de transformar curiosidade inocente em uma barreira intransponível. Ele não sabe disso, mas certos detalhes são obvio que precisamos deixar que o outro conte por livre e espontanea vontade.
Com passos decididos, ele puxou uma cadeira, o som das pernas arrastando no chão ecoando no ambiente vazio. Ele sabia que a abordagem exigia leveza, então tentou com humor.
— Pensei que hoje fosse dia de Dante, não de reflexões profundas. — Ele disse, forçando um sorriso.
Aurora levantou os olhos, e Peter sentiu como se tivesse sido medido e pesado. Era mais do que uma troca de olhares era um exame. Ela estava decidindo algo. Ele tentou sustentar o olhar, mas era difícil não se sentir vulnerável diante da intensidade dela.
— Às vezes, nem só o inferno é suficiente para afastar os fantasmas. — A resposta veio sem hesitação, mas o tom carregava uma melancolia que ele nunca havia ouvido antes.
Antes que Peter pudesse replicar, ela fechou o caderno com firmeza e o guardou na bolsa. O gesto foi definitivo, como se ela estivesse encerrando não apenas a conversa, mas o acesso a uma parte de si mesma.
Peter arqueou uma sobrancelha, sentindo que algo estava errado. Aurora sempre fora enigmática, mas dessa vez parecia diferente. Como se ela estivesse carregando um fardo maior do que qualquer pessoa deveria suportar sozinha.
— Fantasmas, hein? — Ele comentou casualmente, tentando quebrar o gelo. — São do tipo legais ou do tipo que fazem a gente correr?
Aurora soltou um riso curto, quase involuntário.
— Um pouco dos dois, talvez.
O silêncio que se seguiu era pesado, mas não desconfortável. Era como um campo de batalha onde ambos esperavam o próximo movimento do outro. Para Peter, Aurora era como uma dessas transferências bancárias: um mistério que implorava para ser resolvido, mas com armadilhas espalhadas pelo caminho.
Por fim, ele optou por mudar a abordagem. Sabia que empurrá-la seria inútil . Aurora era como um passo de dança complicado, e ele ainda não sabia a coreografia. Afinal, se levar ao literal do pensamento, ele não sabe coreografia nenhuma.
— Você está bem? — Ele perguntou, a voz mais séria agora.
Aurora hesitou. A pergunta a desarmou por um segundo, mas ela rapidamente recuperou o controle. Não podia ser honesta, não com Peter. Não com ninguém. Afinal, não era honesta com ela mesma.
— Estou, sim. — Sua resposta veio rápida demais, como um reflexo, o que só reforçou a dúvida em Peter.
Ele sabia que havia mais ali, algo que ela não estava pronta para compartilhar. Mas também sabia que, com Aurora, a paciência era sua melhor aliada.
— Bem, se precisar de um fantasma para assustar os seus, estou à disposição. — Ele brincou, erguendo uma sobrancelha em um sorriso travesso.
Dessa vez, Aurora riu de verdade. Não era apenas um riso educado, mas algo mais genuíno, embora breve. Algo dentro de Peter relaxou. Ele sentiu que, pelo menos naquele momento, havia conseguido o que ela precisava: uma pausa, um alívio.
Mas, enquanto conversavam, Peter percebeu algo sutil: a forma como Aurora o observava. Não era apenas cautela ou desconfiança havia um calor discreto ali, uma vulnerabilidade que ela tentava esconder. Era o tipo de olhar que fazia o coração dele bater um pouco mais rápido, mesmo que ele tentasse não admitir. Afinal, nem sempre se admite uma paixão a primeira vista.
Quando Aurora desviou o olhar para a janela, o momento se quebrou. O sorriso dela desapareceu, e seus olhos se perderam na paisagem. Peter não sabia o que ela estava vendo, mas estava claro que ela estava em outro lugar talvez em outro tempo.
Naquele caderno que ela guardava com tanto cuidado, estavam escritas não apenas palavras, mas confissões. Linhas que falavam de um passado que Aurora queria esquecer, mas que, como todas as verdades sombrias, se recusava a permanecer enterrado.
E, no fundo, Aurora sabia que era apenas questão de tempo até que Peter entrasse nesse turbilhão. Afinal, ele já estava mais envolvido do que imaginava e, quando descobrisse, seria tarde demais para voltar atrás.
Era uma daquelas noites em que o mundo parecia respirar mais devagar. As luzes da cidade, embora constantes, pareciam se apagar e acender de forma compassada, acompanhando o ritmo de corações inquietos. Peter e Aurora caminhavam em silêncio pela calçada, o som dos passos preenchendo os espaços entre as palavras que nenhum dos dois parecia ter coragem de dizer.Se fosse mais direto, poderia afirmar que Peter estava apenas sendo educado ao acompanhá-la até o estúdio. Mas isso seria uma mentira. A verdade era que ele sentia uma necessidade quase protetora, um instinto que ele não conseguia explicar, mas que crescia toda vez que ela desviava o olhar, como se carregasse algo muito pesado para compartilhar.E Aurora… ah, Aurora. Ela era uma enigma ambulante, envolta em véus de mistério
Peter passou o início da tarde em sua rotina habitual. A delegacia da pequena cidade nunca era exatamente movimentada, mas, naquele dia, havia uma pilha de relatórios o aguardando. Nada fora do comum, pequenas disputas de vizinhos, denúncias anônimas que raramente levavam a algo sério. Mas, enquanto preenchia os papéis, seus pensamentos vagavam.Aurora.Ele se pegava pensando nela com uma frequência que começava a incomodá-lo. Havia algo em seus olhos que parecia esconder segredos, mais que isso havia muito tempo que ele não pensava tanto em outra mulher, o trauma passado com a sua namorada da juventude não deixava. Essa curiosidade e vontade extrema de ver a moca o deixava em alerta, mas, ao mesmo tempo, o puxava de um jeito que era difícil resistir.— Ei, Peter! — Chamou um dos colegas. — Você vai no show de talentos hoje?Peter levantou os olhos do relatório.— show?— No ginásio comunitário. Parece que até a professora de balé do bairro vai se apresentar com as alunas. — O tom do
A manhã já era diferente do que se espera de uma cidade pequena e pacata. Um assassinato na madrugada reuniu os investigadores da região. A cena do crime estava inquietantemente silenciosa, exceto pelo som de passos sobre a terra seca e murmúrios entre os agentes. Zé Castor, um nome que carregava medo e ameaça, agora jazia imóvel na saída da cidade. Peter observava o corpo, tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça que ainda nem tinha bordas claras.A perfuração no peito era fatal, mas limpa. Não havia bagunça, não havia luta. Apenas a rosa vermelha repousando ao lado, como um lembrete silencioso de que aquilo não era obra do acaso.— Lembra alguma coisa, não acha? — Disse um dos agentes da perícia, mostrando a rosa com cuidado, sem tocá-la diretamente.Peter franziu o cenho. Claro que lembrava. Há meses, outro homem com um histórico sombrio fora encontrado morto em circunstâncias quase idênticas. Na época, a falta de pistas havia encerrado o caso antes mesmo de começar. Mas ago
A noite estava silenciosa no pequeno quarto que Rose chamava de lar. A única iluminação vinha da chama trêmula de uma vela, lançando sombras dançantes nas paredes. Sobre a mesa, uma rosa vermelha descansava dentro de um pequeno copo d'água, como um prêmio cuidadosamente escolhido.Rose segurava uma caneta, rabiscando em um caderno de capa preta. Cada página continha anotações organizadas, meticulosas, e, ao mesmo tempo, quase poéticas. Ela escreveu devagar, como se cada palavra fosse um ritual. Em outra página, havia recortes de jornais, manchetes sobre crimes que pareciam desconexos para os investigadores, mas que, para ela, seguiam um padrão. As fotos das vítimas estavam marcadas com círculos vermelhos, cada um indicando um ato necessário.No canto do quarto, uma caixa de madeira fechada por um cadeado continha algo que ninguém jamais deveria encontrar. Rose a olhou por um momento, mas não se aproximou. Não ainda. A rosa na mesa era a única companhia que ela precisava naquele moment
A pequena cidade parecia um palco em constante murmúrio. As conversas nos mercados e nos bares giravam em torno dos assassinatos, mas o tom não era de preocupação genuína, e sim de curiosidade mórbida. A falta de simpatia pelas vítimas fazia com que o burburinho tivesse um tom quase cínico. Era como se os moradores preferissem tratar os crimes como histórias de terror contadas ao anoitecer, e não como tragédias reais.No entanto, na delegacia, a atmosfera era completamente diferente. Peter e sua equipe estavam mergulhados na análise do caso. Havia detalhes demais para ignorar e lacunas que precisavam ser preenchidas.— Não é que eles não se importem — Álvaro comentou durante a reunião matinal. — É que, para eles, essa pessoa está fazendo o que ninguém teve coragem de fazer.Peter não respondeu. Ele entendia o raciocínio, mas isso não diminuía sua preocupação. O perfil do assassino era meticuloso e, em muitos sentidos, assustador. Ele sabia que, quanto mais sucesso a pessoa tivesse, ma
A noite havia se transformado em algo mais do que uma simples diversão. O ambiente em torno de Aurora e Peter estava carregado de algo que ambos sentiam, mas ainda não nomeavam. Eles se entreolharam enquanto a música ainda ecoava pela rua, mas foi o silêncio crescente entre eles que realmente falou. Não era mais sobre o que diziam, mas o que estava por vir.Chegaram à casa de Peter e, assim que a porta se fechou atrás deles, o calor que se espalhou no ar parecia palpável. Aurora, ainda ofegante, não tirou os olhos de Peter, que a observava com a intensidade de quem sabia exatamente o que queria. Max correu ao redor deles, mas isso foi apenas um detalhe passageiro. O que importava ali era a proximidade crescente entre os dois.Peter tomou a iniciativa, puxando-a para mais perto, e ela não hesitou, não tinha motivos. O toque dele era firme, mas não agressivo, como se tivesse total controle sobre a situação. Mas Aurora sabia que, naquele momento, não havia controle. Ela se entregava, se
O por do sol já abraçava a cidade quando Peter recebeu a ligação.— Temos outro corpo.O terceiro assassinato solidificava um padrão. A vítima era um empresário local, dono de uma imobiliária, envolvido em polêmicas e fraudes. Muitos o consideravam manipulador, outros o chamavam de predador financeiro. Mas, independentemente da reputação, alguém decidira que ele merecia morrer.A cena do crime, em um galpão abandonado, seguiu o mesmo padrão: estrangulamento, corpo posicionado cuidadosamente e a assinatura do assassino — uma rosa vermelha sobre o peito.Peter sentiu um arrepio frio na espinha. Era metódico. Precisão cirúrgica.— Isso não é um crime impulsivo. — comentou, enquanto estudava a cena.Álvaro, ao lado dele, assentiu.— É organizado. O assassino tem controle sobre o local e a vítima. Sem sinais de luta, sem vestígios.Peter olhou para a rosa.— E essa maldita assinatura…A equipe começou a traçar um perfil mais sólido:Método: Drogas, direto, silencioso, exige proximidade.As
Aurora, era uma presença forte e acolhedora que vinha ocupando a mente de Peter de maneira constante. Mas havia algo que antes o impedia de se entregar completamente. Algo que, na verdade, ele carregava consigo há anos e que nunca havia sido verdadeiramente confrontado.Era o passado, um passado que ele mantinha guardado, trancado, temendo que qualquer lembrança o fizesse perder o controle. Mas o afeto crescente por Aurora o estava forçando a olhar para aquilo que ele tentava evitar.Clara e Luna. As lembranças de Clara e Luna haviam se tornado uma parte dolorosa e inseparável de Peter. A morte delas não era algo que ele poderia simplesmente deixar para trás. Clara, com seu sorriso brincalhão e jeito protetor, sempre foi a irmã que o acompanhava em todos os momentos, desde a infância até aquele ponto sombrio de sua vida. Luna, com seu olhar terno e sua risada suave, era o tipo de mulher que ele acreditava ser sua alma gêmea. Juntas, as duas formavam um laço que parecia inquebrável. E