Aurora estava sentada no mesmo café, à mesma mesa próxima à janela. A cena parecia uma reprise do dia anterior, mas a energia era diferente. Talvez fosse o modo como Peter a observava ou algo na postura dela, uma mulher imóvel no meio de uma cidade pequena e sempre em movimento. Mas ela estava ali novamente, absorta em seu ritual silencioso.
O livro, A Divina Comédia, repousava aberto no meio da mesa. E, mais uma vez, era o Purgatório que prendia sua atenção. Um detalhe curioso, talvez até desconcertante, dependendo do ponto de vista. Normalmente, é o Inferno que fascina. Chamas, castigos, gritos de desespero – a humanidade parece irresistivelmente atraída pelo grotesco. Já o Paraíso, com sua luz infinita, evoca uma aspiração sublime, mesmo que distante. Mas o Purgatório? Este é o espaço que poucos escolhem habitar, muito menos explorar com tamanha dedicação como Aurora fazia.
Por que alguém se fixaria tanto nesse lugar intermediário? Um espaço de incerteza, onde as almas penam, mas ainda nutrem esperança? A resposta estava na própria Aurora, ainda que ela talvez não a admitisse nem a si mesma. O Purgatório era um reflexo de quem ela era ou, ao menos, de como se via. Uma mulher tentando equilibrar suas falhas e esperanças, buscando um sentido entre dois extremos. Uma dançarina tentando acertar o passo depois de tropeços.
Peter entrou no café com passos firmes, mas lentos. Tinha aprendido, ao longo dos anos, que observar era tão importante quanto agir. Antes de sentar, varreu o ambiente com o olhar. Um hábito profissional, claro, mas também uma forma de proteger as próprias costas – ou talvez fosse só um vício da profissão. Quando seus olhos encontraram Aurora, ele sabia que era ali que queria estar.
Ela não parecia notar a presença dele, mas Peter sabia que isso era só parte da coreografia. Ela o havia notado desde o momento em que ele cruzara a porta; o leve ajuste na posição de sua cabeça entregava isso. Ele aproximou-se com a segurança de quem já havia ensaiado mentalmente aquele momento várias vezes.
— Posso sentar? — perguntou, com um leve sorriso.
Aurora levantou os olhos do livro. Seu olhar era avaliador, mas não hostil. Ela assentiu, fechando o livro como quem encerra uma cena de um espetáculo.
— Parece que temos um padrão aqui. — Ele comentou, apontando para o livro. — Outro dia, outro café, e Dante ainda te acompanhando.
Ela sorriu. Um sorriso pequeno, mas sincero.
— Alguns padrões não precisam ser quebrados, detetive. — Aurora respondeu, cruzando as pernas com a elegância de quem tinha plena consciência de seu corpo. — E você? Veio investigar o café ou é só coincidência?
Peter soltou uma risada curta, surpreso com o tom provocativo.
— Investigação faz parte da minha vida, mas hoje sou só um cliente comum. — Ele inclinou-se ligeiramente para frente. — Ou quase. Não resisti à oportunidade de falar com você de novo.
Aurora arqueou as sobrancelhas, surpresa com a sinceridade dele.
— Então você também é um homem de padrões?
— Talvez. — Peter admitiu. — Mas no meu trabalho, padrões podem significar perigo ou solução. Então, estou sempre atento.
Ela inclinou a cabeça, o observando com um interesse crescente.
— E o que acha do meu padrão? — Aurora perguntou, com um leve tom de desafio.
Peter hesitou. Ele sabia que estava entrando em território complicado.
— Acho que é intrigante. Você parece alguém que valoriza o equilíbrio, mas também gosta de testar os limites. Estou certo?
Aurora riu baixinho, uma risada que lembrava o aplauso contido de um público ao final de uma apresentação.
— Talvez. Mas não é isso que todos fazemos? Testar até onde podemos ir sem perder o controle?
Peter assentiu. Era uma observação que fazia sentido, especialmente no mundo dele.
— Talvez. Mas no meu mundo, perder o controle pode significar a diferença entre a vida e a morte.
Aurora apoiou o queixo na mão, pensativa.
— E no meu, pode significar destruir uma apresentação inteira. O público só vê a superfície. Eles não sabem o que está por trás de cada movimento errado.
A analogia o impressionou.
— Parece que temos mais em comum do que eu imaginava. — Peter disse, intrigado. — Tanto no ballet quanto na polícia, cada passo conta.
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De volta à delegacia, Peter mergulhou no caso que vinha ocupando sua atenção: uma série de agressões aparentemente sem ligação. Todas em áreas próximas, sempre em horários improváveis, mas com vítimas que não conseguiam descrever o agressor. A última testemunha havia sido vaga: “Havia algo... estranho nele. Como se ele estivesse brincando.”
Ele revisou o relatório com cuidado, buscando padrões. Um relógio quebrado sobre a mesa o lembrou de seu treinamento. “Cada movimento importa,” dissera um instrutor. “Quando a dança parece errada, talvez seja o que não está visível que importa.”
Uma ligação do hospital interrompeu sua linha de pensamento. Mais uma vítima acabara de dar entrada.
Peter sabia que ainda estava longe de respostas. Mas, como em uma dança, ele sabia que os primeiros movimentos nunca revelam a coreografia completa.
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Os dias passaram, e Peter mal teve tempo de pensar em outra coisa além do caso. A delegacia fervilhava de atividade, mas a pressão recaía sobre ele como o peso de uma coreografia mal ensaiada. Enquanto ele reconstruía cada detalhe dos ataques em sua mente, uma sensação persistente dizia que o agressor estava cada vez mais perto de ser encontrado.
Do outro lado da cidade, Aurora ajustava o coque diante do espelho do estúdio. O espaço era iluminado por luzes suaves, refletidas nas longas barras de madeira e no chão impecavelmente polido. Naquela noite, o ensaio era diferente. As alunas mais velhas estavam reunidas para praticar pela última vez antes do festival do bairro, um evento anual que sempre trazia uma mistura de nervosismo e excitação para todos os envolvidos.
— Mais uma vez, meninas. E lembrem-se, o público não vai ver o que vocês fazem quando acertam. Eles vão lembrar de como vocês se recuperam quando erram. — Aurora dizia enquanto andava pelo espaço, ajustando a postura de uma das alunas e corrigindo o giro de outra.
A música ecoava pelas paredes, preenchendo o ar com cada nota cuidadosa. Aurora sentia-se conectada a esse momento, mas uma parte dela estava distante, perdida em pensamentos que a perseguiam, como os movimentos de um passo que ela tentava aperfeiçoar sem sucesso.
Após o ensaio, as meninas mais velhas insistiram em uma pequena comemoração. Era uma tradição não oficial, um brinde com vinho barato e risadas soltas. Aurora cedeu, bebendo um pouco e ouvindo as conversas leves, mas algo dentro dela continuava inquieto.
Quando se despediu do grupo, a noite estava fresca e silenciosa. Aurora caminhava pelas ruas do bairro, absorta, quando avistou Peter ao longe. Ele estava sem o terno habitual, mas ainda com o ar determinado de quem havia passado horas em uma perseguição.
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Peter acabara de sair da delegacia. O caso do agressor havia finalmente chegado ao fim, mas não sem um esforço intenso. Após noites de análise, uma pista crucial surgiu: uma câmera de segurança que capturou a imagem de um homem com um andar peculiar.
O trabalho foi meticuloso. Ele cruzou dados, redesenhou padrões no mapa e liderou a equipe em uma operação tática que culminou na captura de James Baker, um ator frustrado com histórico de violência.
A perseguição tinha sido rápida e direta, mas o interrogatório revelara algo mais profundo. James não era apenas um criminoso; ele era um homem que transformava seu fracasso pessoal em uma performance macabra, uma peça onde as vítimas eram meros adereços.
— Por que você faz isso? — Peter perguntou, direto.
James riu, uma risada fria e sem humor.
— Porque eu posso. Porque vocês nunca iriam me pegar.
Peter inclinou-se para frente.
— Você não contava com uma coisa.
— E o que seria?
— Que eu sou bom no que faço. — Ele respondeu com firmeza.
James ficou em silêncio, como quem odeia a vida, mas Peter sabia que ele não tinha mais escapatória.
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Peter refletiu sobre o caso. A resolução trouxe alívio, mas também um certo vazio que sempre vinha depois. Ele tinha parado mais uma ameaça, mas sabia que, o mal nunca acaba. Agora, enquanto caminhava, Peter sentia o cansaço tomar conta. O peso do dia estava nos seus ombros, mas também havia uma satisfação silenciosa. Ele resolvera o caso, e isso bastava por enquanto.
Foi então que ele a viu.
Aurora caminhava em sua direção, e a visão dela era tão inesperada quanto a leve brisa que soprava. Ela carregava os sapatos de dança na mão, o coque um pouco desalinhado e um leve sorriso nos lábios.
— Detetive. — Aurora o cumprimentou, surpresa, mas não desconfortável.
Peter sorriu, exausto, mas genuíno.
— Aurora. Você sempre anda por aqui?
Ela deu de ombros, apontando para o estúdio de dança do outro lado da rua.
— Ensaios. Festival do bairro. Mas, e você? Não parece o tipo de lugar para um detetive aparecer.
Peter riu, balançando a cabeça.
— Só terminei um caso difícil. Achei que uma caminhada poderia ajudar a clarear a mente.
— Caso resolvido, então? — Ela perguntou, inclinando a cabeça com curiosidade.
— Sim. — Ele respondeu, simples, mas o olhar carregava um peso que ela percebeu imediatamente.
Aurora o estudou por um momento.
— Você parece cansado.
Peter deu uma risada curta.
— Parte do trabalho. E você? Parece que acabou de sair de um palco.
Ela ergueu os sapatos na mão e sorriu.
— Não exatamente. Apenas do estúdio. Mas sabe, detetive, na dança, na polícia, na vida, cada passo importa.
— É, e se errar o passo? — Ele perguntou, genuinamente interessado.
— Então você improvisa. — Aurora respondeu, seus olhos brilhando com um misto de desafio e compaixão.
Peter assentiu. Era uma resposta que fazia sentido. Ele sentia que havia mais por trás das palavras dela, mas não sabia o que. Não ainda.
O café estava vazio naquela manhã, exceto por Aurora. Desta vez, ela não trazia o livro de Dante, mas um caderno pequeno, usado, com a capa marcada pelo tempo e o cheiro antigo de páginas esquecidas. Sentada na mesma mesa de sempre, escrevia com intensidade, como se estivesse exorcizando seus demônios através da tinta. E, na verdade, era isso mesmo que fazia. Na noite anterior, algo havia mudado. O som dos pesadelos cortou a tranquilidade ilusória que ela mantinha. Uma voz do passado grave, familiar, perigosa trouxe memórias que Aurora lutava para manter enterradas. Palavras ecoavam em sua mente desde então, desconexas, mas pesadas: "Você não pode fugir para sempre." E que problemas uma ruivinha, bailarina e bonitinha teria para lhe causar tantas aflições?Todos lutamos contra nossos demônios, isso é uma realidade da vida, mas o preço das escolhas que você faz é o que vai definir o real peso dos seus problemas. ---------Do outro lado da cidade, Peter começava a se aprofundar em out
Era uma daquelas noites em que o mundo parecia respirar mais devagar. As luzes da cidade, embora constantes, pareciam se apagar e acender de forma compassada, acompanhando o ritmo de corações inquietos. Peter e Aurora caminhavam em silêncio pela calçada, o som dos passos preenchendo os espaços entre as palavras que nenhum dos dois parecia ter coragem de dizer.Se fosse mais direto, poderia afirmar que Peter estava apenas sendo educado ao acompanhá-la até o estúdio. Mas isso seria uma mentira. A verdade era que ele sentia uma necessidade quase protetora, um instinto que ele não conseguia explicar, mas que crescia toda vez que ela desviava o olhar, como se carregasse algo muito pesado para compartilhar.E Aurora… ah, Aurora. Ela era uma enigma ambulante, envolta em véus de mistério
Peter passou o início da tarde em sua rotina habitual. A delegacia da pequena cidade nunca era exatamente movimentada, mas, naquele dia, havia uma pilha de relatórios o aguardando. Nada fora do comum, pequenas disputas de vizinhos, denúncias anônimas que raramente levavam a algo sério. Mas, enquanto preenchia os papéis, seus pensamentos vagavam.Aurora.Ele se pegava pensando nela com uma frequência que começava a incomodá-lo. Havia algo em seus olhos que parecia esconder segredos, mais que isso havia muito tempo que ele não pensava tanto em outra mulher, o trauma passado com a sua namorada da juventude não deixava. Essa curiosidade e vontade extrema de ver a moca o deixava em alerta, mas, ao mesmo tempo, o puxava de um jeito que era difícil resistir.— Ei, Peter! — Chamou um dos colegas. — Você vai no show de talentos hoje?Peter levantou os olhos do relatório.— show?— No ginásio comunitário. Parece que até a professora de balé do bairro vai se apresentar com as alunas. — O tom do
A manhã já era diferente do que se espera de uma cidade pequena e pacata. Um assassinato na madrugada reuniu os investigadores da região. A cena do crime estava inquietantemente silenciosa, exceto pelo som de passos sobre a terra seca e murmúrios entre os agentes. Zé Castor, um nome que carregava medo e ameaça, agora jazia imóvel na saída da cidade. Peter observava o corpo, tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça que ainda nem tinha bordas claras.A perfuração no peito era fatal, mas limpa. Não havia bagunça, não havia luta. Apenas a rosa vermelha repousando ao lado, como um lembrete silencioso de que aquilo não era obra do acaso.— Lembra alguma coisa, não acha? — Disse um dos agentes da perícia, mostrando a rosa com cuidado, sem tocá-la diretamente.Peter franziu o cenho. Claro que lembrava. Há meses, outro homem com um histórico sombrio fora encontrado morto em circunstâncias quase idênticas. Na época, a falta de pistas havia encerrado o caso antes mesmo de começar. Mas ago
A noite estava silenciosa no pequeno quarto que Rose chamava de lar. A única iluminação vinha da chama trêmula de uma vela, lançando sombras dançantes nas paredes. Sobre a mesa, uma rosa vermelha descansava dentro de um pequeno copo d'água, como um prêmio cuidadosamente escolhido.Rose segurava uma caneta, rabiscando em um caderno de capa preta. Cada página continha anotações organizadas, meticulosas, e, ao mesmo tempo, quase poéticas. Ela escreveu devagar, como se cada palavra fosse um ritual. Em outra página, havia recortes de jornais, manchetes sobre crimes que pareciam desconexos para os investigadores, mas que, para ela, seguiam um padrão. As fotos das vítimas estavam marcadas com círculos vermelhos, cada um indicando um ato necessário.No canto do quarto, uma caixa de madeira fechada por um cadeado continha algo que ninguém jamais deveria encontrar. Rose a olhou por um momento, mas não se aproximou. Não ainda. A rosa na mesa era a única companhia que ela precisava naquele moment
A pequena cidade parecia um palco em constante murmúrio. As conversas nos mercados e nos bares giravam em torno dos assassinatos, mas o tom não era de preocupação genuína, e sim de curiosidade mórbida. A falta de simpatia pelas vítimas fazia com que o burburinho tivesse um tom quase cínico. Era como se os moradores preferissem tratar os crimes como histórias de terror contadas ao anoitecer, e não como tragédias reais.No entanto, na delegacia, a atmosfera era completamente diferente. Peter e sua equipe estavam mergulhados na análise do caso. Havia detalhes demais para ignorar e lacunas que precisavam ser preenchidas.— Não é que eles não se importem — Álvaro comentou durante a reunião matinal. — É que, para eles, essa pessoa está fazendo o que ninguém teve coragem de fazer.Peter não respondeu. Ele entendia o raciocínio, mas isso não diminuía sua preocupação. O perfil do assassino era meticuloso e, em muitos sentidos, assustador. Ele sabia que, quanto mais sucesso a pessoa tivesse, ma
A noite havia se transformado em algo mais do que uma simples diversão. O ambiente em torno de Aurora e Peter estava carregado de algo que ambos sentiam, mas ainda não nomeavam. Eles se entreolharam enquanto a música ainda ecoava pela rua, mas foi o silêncio crescente entre eles que realmente falou. Não era mais sobre o que diziam, mas o que estava por vir.Chegaram à casa de Peter e, assim que a porta se fechou atrás deles, o calor que se espalhou no ar parecia palpável. Aurora, ainda ofegante, não tirou os olhos de Peter, que a observava com a intensidade de quem sabia exatamente o que queria. Max correu ao redor deles, mas isso foi apenas um detalhe passageiro. O que importava ali era a proximidade crescente entre os dois.Peter tomou a iniciativa, puxando-a para mais perto, e ela não hesitou, não tinha motivos. O toque dele era firme, mas não agressivo, como se tivesse total controle sobre a situação. Mas Aurora sabia que, naquele momento, não havia controle. Ela se entregava, se
O por do sol já abraçava a cidade quando Peter recebeu a ligação.— Temos outro corpo.O terceiro assassinato solidificava um padrão. A vítima era um empresário local, dono de uma imobiliária, envolvido em polêmicas e fraudes. Muitos o consideravam manipulador, outros o chamavam de predador financeiro. Mas, independentemente da reputação, alguém decidira que ele merecia morrer.A cena do crime, em um galpão abandonado, seguiu o mesmo padrão: estrangulamento, corpo posicionado cuidadosamente e a assinatura do assassino — uma rosa vermelha sobre o peito.Peter sentiu um arrepio frio na espinha. Era metódico. Precisão cirúrgica.— Isso não é um crime impulsivo. — comentou, enquanto estudava a cena.Álvaro, ao lado dele, assentiu.— É organizado. O assassino tem controle sobre o local e a vítima. Sem sinais de luta, sem vestígios.Peter olhou para a rosa.— E essa maldita assinatura…A equipe começou a traçar um perfil mais sólido:Método: Drogas, direto, silencioso, exige proximidade.As