Capitulo 3 - O purgatório

O café estava como sempre: um santuário para os amantes do silêncio e dos aromas reconfortantes de grãos torrados. Peter já havia transformado aquele lugar em uma extensão de sua rotina. Mesa de canto, café preto, olhar para o movimento sem compromisso. Mas, naquele dia, algo mudou.

Aurora estava lá.

Claro, ela costumava estar, mas hoje parecia diferente. Não era apenas sua presença, mas o modo como seus olhos estavam concentrados em um livro que repousava sobre a mesa. Ele reconheceu a capa imediatamente uma edição antiga de A Divina Comédia. Aquele livro não era algo que se encontrava por acaso, e menos ainda algo que muitas pessoas leriam casualmente, como quem lesse uma comédia romântica da autora Jéssica Luz.

“Interessante,” pensou Peter, enquanto esperava seu café. Seu olhar voltava a ela repetidamente, como se a cena exigisse atenção. Aurora parecia tão absorta que não percebeu os olhares discretos que ele lançava em sua direção. 

“Uma mulher tão jovem, tão bonita, lendo Dante? Aposto que ela é uma daquelas intelectuais que vivem em outro mundo,” Peter refletiu, sentindo o início de uma curiosidade que não sabia como explicar.

Aurora estava, de fato, perdida nas palavras de Dante. Ela passava os olhos pelas linhas do Purgatório com uma calma quase meditativa. Era sua parte favorita, um lugar onde as almas estavam em transição, buscando redenção. Isso sempre ressoava com ela. O Inferno era fascinante, mas também sombrio demais. O Paraíso, idealizado ao extremo. O Purgatório, por outro lado, parecia real.

“Dante entendia a alma humana,” ela pensou. “É aqui que nos vemos com mais clareza, entre a dor e a esperança.”

Quando Peter pegou seu café, sentiu um impulso inesperado. Não era do tipo que se aproximava de desconhecidos, mas algo sobre Aurora e aquele livro o encorajou. Antes que pudesse racionalizar, já estava caminhando em direção à mesa dela.

A Divina Comédia, hein? — Ele começou, com um sorriso leve, esperando não soar intrusivo.

Aurora levantou os olhos lentamente, surpresa pela abordagem. A princípio, parecia que ela avaliava se deveria ou não responder, mas então sorriu de forma discreta.

— Sim. Você conhece?

Peter puxou uma cadeira e sentou-se. Foi um gesto ousado, mas ele tentou suavizar com sua postura tranquila.

— Conheço, mas não tão bem quanto gostaria. — Ele admitiu, olhando para o livro sobre a mesa. — Li na faculdade, mas acho que não estava pronto para entendê-lo.

— Muitos não estão. — Aurora respondeu, fechando o livro cuidadosamente. — É o tipo de obra que requer um pouco de vida vivida para fazer sentido. Eu me chamo Aurora, a próposito. 

Peter inclinou a cabeça, e sorriu interessado. Queria tanto conversar que não pensou nem em se apresentar. 

— Muito prazer, eu sou o Peter. E você? Já viveu o suficiente para entender Dante?

Aurora deu um sorriso enigmático, desviando o olhar por um momento.

— Talvez eu esteja apenas tentando.

Havia algo na resposta que o intrigou ainda mais. Peter percebeu que ela não era apenas uma jovem bonita com gosto por clássicos. Ela tinha uma profundidade que não se revelava facilmente.

— Posso perguntar qual parte você estava lendo? — Ele questionou, apontando para o livro.

— O Purgatório. — Ela respondeu, colocando a mão delicadamente sobre a capa. — É a parte que mais gosto.

— Por quê?

Aurora olhou para ele, avaliando se deveria dar uma resposta simples ou algo mais pessoal. Decidiu pelo meio-termo.

— Porque é o mais humano, eu acho. Não é tão sombrio quanto o Inferno, nem tão inalcançável quanto o Paraíso. É o lugar onde as pessoas estão tentando melhorar, em meio a falhas e esperanças.

Peter não pôde evitar um sorriso.

— Então você gosta de histórias de redenção.

Aurora deu de ombros, sorrindo de volta.

— Talvez. Ou talvez só ache interessante ver como as pessoas lidam com suas escolhas.

Peter se recostou na cadeira, sentindo que ela o desafiava de uma maneira sutil.

— E o Inferno? — Ele perguntou. — Não é o mais popular?

Aurora riu suavemente, e aquele som ficou na mente de Peter por mais tempo do que ele gostaria de admitir.

— É o mais fascinante, com certeza. Mas acho que o Inferno só mostra nossas falhas. Não tem espaço para esperança.

— Isso soa... pessimista. — Ele comentou, arqueando uma sobrancelha.

— Talvez seja. — Ela concordou, com um brilho divertido nos olhos. — Mas o Inferno também é um lembrete de que sempre temos escolhas. Mesmo que nem sempre façamos as certas.

Peter ficou em silêncio por um momento, absorvendo suas palavras. Ele não sabia exatamente o que a atraía tanto naquele livro, mas sentiu que havia algo mais, algo que ela não estava dizendo.

Aurora, por sua vez, percebeu que estava falando mais do que o habitual. Não era comum ela se abrir para estranhos, mas havia algo na maneira como Peter a olhava, com genuíno interesse, que a deixava à vontade.

— Você devia tentar reler. — Ela sugeriu, mudando o tom da conversa para algo mais leve. — Quem sabe encontre algo novo.

— Talvez eu precise de um guia dessa vez. — Ele disse, sem pensar, e se arrependeu imediatamente de como soou.

Aurora, no entanto, sorriu, como se compreendesse o significado por trás da frase.

— Quem sabe.

Antes que pudesse responder algo mais, ela olhou para o relógio e se levantou, recolhendo o livro com cuidado.

— Preciso ir.

Peter tentou não demonstrar a decepção, mas não conseguiu evitar.

— Espero te ver por aqui de novo.

Aurora apenas sorriu, com aquele mistério habitual, enquanto ajustava o casaco.

— Talvez.

E então ela foi embora, deixando Peter com uma mistura de curiosidade e fascínio. Esse narrador, que tudo sabe, poderia dizer que aquele não era apenas um encontro casual. Havia algo mais profundo em jogo, algo que ambos ainda não compreendiam.

Aurora carregava seus próprios segredos, mas talvez, no fundo, quisesse ser decifrada, só não sabia se Peter era a pessoa certa para isso.

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