O café estava como sempre: um santuário para os amantes do silêncio e dos aromas reconfortantes de grãos torrados. Peter já havia transformado aquele lugar em uma extensão de sua rotina. Mesa de canto, café preto, olhar para o movimento sem compromisso. Mas, naquele dia, algo mudou.
Aurora estava lá.
Claro, ela costumava estar, mas hoje parecia diferente. Não era apenas sua presença, mas o modo como seus olhos estavam concentrados em um livro que repousava sobre a mesa. Ele reconheceu a capa imediatamente uma edição antiga de A Divina Comédia. Aquele livro não era algo que se encontrava por acaso, e menos ainda algo que muitas pessoas leriam casualmente, como quem lesse uma comédia romântica da autora Jéssica Luz.
“Interessante,” pensou Peter, enquanto esperava seu café. Seu olhar voltava a ela repetidamente, como se a cena exigisse atenção. Aurora parecia tão absorta que não percebeu os olhares discretos que ele lançava em sua direção.
“Uma mulher tão jovem, tão bonita, lendo Dante? Aposto que ela é uma daquelas intelectuais que vivem em outro mundo,” Peter refletiu, sentindo o início de uma curiosidade que não sabia como explicar.
Aurora estava, de fato, perdida nas palavras de Dante. Ela passava os olhos pelas linhas do Purgatório com uma calma quase meditativa. Era sua parte favorita, um lugar onde as almas estavam em transição, buscando redenção. Isso sempre ressoava com ela. O Inferno era fascinante, mas também sombrio demais. O Paraíso, idealizado ao extremo. O Purgatório, por outro lado, parecia real.
“Dante entendia a alma humana,” ela pensou. “É aqui que nos vemos com mais clareza, entre a dor e a esperança.”
Quando Peter pegou seu café, sentiu um impulso inesperado. Não era do tipo que se aproximava de desconhecidos, mas algo sobre Aurora e aquele livro o encorajou. Antes que pudesse racionalizar, já estava caminhando em direção à mesa dela.
— A Divina Comédia, hein? — Ele começou, com um sorriso leve, esperando não soar intrusivo.
Aurora levantou os olhos lentamente, surpresa pela abordagem. A princípio, parecia que ela avaliava se deveria ou não responder, mas então sorriu de forma discreta.
— Sim. Você conhece?
Peter puxou uma cadeira e sentou-se. Foi um gesto ousado, mas ele tentou suavizar com sua postura tranquila.
— Conheço, mas não tão bem quanto gostaria. — Ele admitiu, olhando para o livro sobre a mesa. — Li na faculdade, mas acho que não estava pronto para entendê-lo.
— Muitos não estão. — Aurora respondeu, fechando o livro cuidadosamente. — É o tipo de obra que requer um pouco de vida vivida para fazer sentido. Eu me chamo Aurora, a próposito.
Peter inclinou a cabeça, e sorriu interessado. Queria tanto conversar que não pensou nem em se apresentar.
— Muito prazer, eu sou o Peter. E você? Já viveu o suficiente para entender Dante?
Aurora deu um sorriso enigmático, desviando o olhar por um momento.
— Talvez eu esteja apenas tentando.
Havia algo na resposta que o intrigou ainda mais. Peter percebeu que ela não era apenas uma jovem bonita com gosto por clássicos. Ela tinha uma profundidade que não se revelava facilmente.
— Posso perguntar qual parte você estava lendo? — Ele questionou, apontando para o livro.
— O Purgatório. — Ela respondeu, colocando a mão delicadamente sobre a capa. — É a parte que mais gosto.
— Por quê?
Aurora olhou para ele, avaliando se deveria dar uma resposta simples ou algo mais pessoal. Decidiu pelo meio-termo.
— Porque é o mais humano, eu acho. Não é tão sombrio quanto o Inferno, nem tão inalcançável quanto o Paraíso. É o lugar onde as pessoas estão tentando melhorar, em meio a falhas e esperanças.
Peter não pôde evitar um sorriso.
— Então você gosta de histórias de redenção.
Aurora deu de ombros, sorrindo de volta.
— Talvez. Ou talvez só ache interessante ver como as pessoas lidam com suas escolhas.
Peter se recostou na cadeira, sentindo que ela o desafiava de uma maneira sutil.
— E o Inferno? — Ele perguntou. — Não é o mais popular?
Aurora riu suavemente, e aquele som ficou na mente de Peter por mais tempo do que ele gostaria de admitir.
— É o mais fascinante, com certeza. Mas acho que o Inferno só mostra nossas falhas. Não tem espaço para esperança.
— Isso soa... pessimista. — Ele comentou, arqueando uma sobrancelha.
— Talvez seja. — Ela concordou, com um brilho divertido nos olhos. — Mas o Inferno também é um lembrete de que sempre temos escolhas. Mesmo que nem sempre façamos as certas.
Peter ficou em silêncio por um momento, absorvendo suas palavras. Ele não sabia exatamente o que a atraía tanto naquele livro, mas sentiu que havia algo mais, algo que ela não estava dizendo.
Aurora, por sua vez, percebeu que estava falando mais do que o habitual. Não era comum ela se abrir para estranhos, mas havia algo na maneira como Peter a olhava, com genuíno interesse, que a deixava à vontade.
— Você devia tentar reler. — Ela sugeriu, mudando o tom da conversa para algo mais leve. — Quem sabe encontre algo novo.
— Talvez eu precise de um guia dessa vez. — Ele disse, sem pensar, e se arrependeu imediatamente de como soou.
Aurora, no entanto, sorriu, como se compreendesse o significado por trás da frase.
— Quem sabe.
Antes que pudesse responder algo mais, ela olhou para o relógio e se levantou, recolhendo o livro com cuidado.
— Preciso ir.
Peter tentou não demonstrar a decepção, mas não conseguiu evitar.
— Espero te ver por aqui de novo.
Aurora apenas sorriu, com aquele mistério habitual, enquanto ajustava o casaco.
— Talvez.
E então ela foi embora, deixando Peter com uma mistura de curiosidade e fascínio. Esse narrador, que tudo sabe, poderia dizer que aquele não era apenas um encontro casual. Havia algo mais profundo em jogo, algo que ambos ainda não compreendiam.
Aurora carregava seus próprios segredos, mas talvez, no fundo, quisesse ser decifrada, só não sabia se Peter era a pessoa certa para isso.
Aurora estava sentada no mesmo café, à mesma mesa próxima à janela. A cena parecia uma reprise do dia anterior, mas a energia era diferente. Talvez fosse o modo como Peter a observava ou algo na postura dela, uma mulher imóvel no meio de uma cidade pequena e sempre em movimento. Mas ela estava ali novamente, absorta em seu ritual silencioso.O livro, A Divina Comédia, repousava aberto no meio da mesa. E, mais uma vez, era o Purgatório que prendia sua atenção. Um detalhe curioso, talvez até desconcertante, dependendo do ponto de vista. Normalmente, é o Inferno que fascina. Chamas, castigos, gritos de desespero – a humanidade parece irresistivelmente atraída pelo grotesco. Já o Paraíso, com sua luz infinita, evoca uma aspiração sublime, mesmo que distante. Mas o Purgatório? Este é o espaço que poucos escolhem habitar, muito menos explorar com tamanha dedicação como Aurora fazia.Por que alguém se fixaria tanto nesse lugar intermediário? Um espaço de incerteza, onde as almas penam, mas a
O café estava vazio naquela manhã, exceto por Aurora. Desta vez, ela não trazia o livro de Dante, mas um caderno pequeno, usado, com a capa marcada pelo tempo e o cheiro antigo de páginas esquecidas. Sentada na mesma mesa de sempre, escrevia com intensidade, como se estivesse exorcizando seus demônios através da tinta. E, na verdade, era isso mesmo que fazia. Na noite anterior, algo havia mudado. O som dos pesadelos cortou a tranquilidade ilusória que ela mantinha. Uma voz do passado grave, familiar, perigosa trouxe memórias que Aurora lutava para manter enterradas. Palavras ecoavam em sua mente desde então, desconexas, mas pesadas: "Você não pode fugir para sempre." E que problemas uma ruivinha, bailarina e bonitinha teria para lhe causar tantas aflições?Todos lutamos contra nossos demônios, isso é uma realidade da vida, mas o preço das escolhas que você faz é o que vai definir o real peso dos seus problemas. ---------Do outro lado da cidade, Peter começava a se aprofundar em out
Era uma daquelas noites em que o mundo parecia respirar mais devagar. As luzes da cidade, embora constantes, pareciam se apagar e acender de forma compassada, acompanhando o ritmo de corações inquietos. Peter e Aurora caminhavam em silêncio pela calçada, o som dos passos preenchendo os espaços entre as palavras que nenhum dos dois parecia ter coragem de dizer.Se fosse mais direto, poderia afirmar que Peter estava apenas sendo educado ao acompanhá-la até o estúdio. Mas isso seria uma mentira. A verdade era que ele sentia uma necessidade quase protetora, um instinto que ele não conseguia explicar, mas que crescia toda vez que ela desviava o olhar, como se carregasse algo muito pesado para compartilhar.E Aurora… ah, Aurora. Ela era uma enigma ambulante, envolta em véus de mistério
Aviso de Gatilho:A presente obra contém cenas explícitas de violência, tortura, e atos de agressão física e psicológica. As descrições detalhadas de assassinatos, crimes violentos, e o uso de termos policiais podem ser perturbadoras e são exploradas de forma crua e gráfica ao longo da narrativa. Tais cenas visam mostrar a intensidade do enredo e as complexidades psicológicas dos personagens, mas é fundamental que os leitores estejam cientes de que essas representações podem ser desconfortáveis para algumas pessoas.A trama também lida com temas sensíveis, como manipulação psicológica, traumas não resolvidos, e relações destrutivas. Esses elementos, apesar de essenciais para o desenvolvimento da história e do conflito dos personagens, podem tocar em experiências pessoais dolorosas ou reviver memórias traumáticas para aqueles que já vivenciaram situações semelhantes. É importante que o leitor seja avisado de antemão para que possa tomar uma decisão consciente sobre a continuidade da le
O som dos saltos de Rose reverberava contra o chão, como um eco que parecia amplificar-se apenas em seus ouvidos. Talvez fosse o nervosismo. "Respira fundo, Rose, você consegue", repetia para si mesma em silêncio. Mas uma pergunta insistente martelava em sua mente: "Eu realmente preciso fazer isso?"Claro que precisava. Não agora, mas em algum momento deveria parar. Não esta noite, no entanto. O momento não permitia hesitações. Sua roupa estava impecável, e as botas de salto pretas adicionavam uma confiança que ela sabia ser essencial. Era como vestir outra pele, uma máscara que escondia a si mesma de tudo, inclusive de suas dúvidas.Seu coração batia em um ritmo frenético, tão acelerado quanto na primeira vez. Uma pequena voz interior tentava acalmá-la: o alvo não era uma boa pessoa. Ele merecia o que estava por vir. Rose aproximou-se, planejando cada passo com precisão calculada. Em um movimento ensaiado, esbarrou propositalmente no homem.— Me desculpe! Não olhei para frente, acab
Se pudesse descrever Peter, talvez ele fosse um clichê ambulante de alguém que acredita na justiça acima de tudo. Formado em direito, mas com alma de policial, ele jamais aceitaria se trancar em um escritório e viver à base de processos e audiências. Não, o cara precisava de ação, precisava sentir que fazia diferença, mesmo que isso significasse ganhar menos e carregar as marcas de sua escolha na pele. Para ele, o trabalho era mais que um emprego; era uma forma de garantir que ninguém passasse pelo que Clara e Luna, as pessoas que ele mais amou, sofreram. E se isso não soa nobre o suficiente, então você claramente não o conhece.Agora, veja só o destino: Peter estava voltando para sua cidade natal. Isso mesmo, aquele lugar que ele fugiu durante anos e que agora o acolheria novamente, mas com um detalhe intrigante. Ele havia pedido a transferência. Por quê? Nem ele sabia ao certo. Talvez fosse nostalgia, ou talvez uma necessidade de encarar os fantasmas do passado. Seja qual fosse o mo
Corpos em sincronia, num ritmo intenso. Sobe, desce, rebola devagar... uma mistura de esforço e leveza, dor e prazer. Não, antes que alguém se apresse a pensar besteiras, estamos falando de dança! E não qualquer dança, mas uma aula de contemporâneo liderada por Aurora, uma mulher que parecia encarnar a arte em cada movimento. Hoje era um dia especial: a turma havia finalizado pela primeira vez uma sequência inteira das músicas para o festival do bairro. Um marco, diga-se de passagem, considerando que algumas alunas estavam ali havia poucos meses e outras, menos de trinta dias.Aurora, formada em dança e balé clássico, vivia para momentos como esse. Quando dançava, parecia flutuar. Era como se, por alguns instantes, nada pudesse abalar sua paz, como se o mundo inteiro se dissolvesse e tudo que restasse fosse o ritmo e sua liberdade. Porque dançar é isso: muito mais do que mexer o corpo em um palco, é encontrar um jeito de gritar em silêncio, transmitir sentimentos com movimentos singel