Corpos em sincronia, num ritmo intenso. Sobe, desce, rebola devagar... uma mistura de esforço e leveza, dor e prazer. Não, antes que alguém se apresse a pensar besteiras, estamos falando de dança! E não qualquer dança, mas uma aula de contemporâneo liderada por Aurora, uma mulher que parecia encarnar a arte em cada movimento. Hoje era um dia especial: a turma havia finalizado pela primeira vez uma sequência inteira das músicas para o festival do bairro. Um marco, diga-se de passagem, considerando que algumas alunas estavam ali havia poucos meses e outras, menos de trinta dias.
Aurora, formada em dança e balé clássico, vivia para momentos como esse. Quando dançava, parecia flutuar. Era como se, por alguns instantes, nada pudesse abalar sua paz, como se o mundo inteiro se dissolvesse e tudo que restasse fosse o ritmo e sua liberdade. Porque dançar é isso: muito mais do que mexer o corpo em um palco, é encontrar um jeito de gritar em silêncio, transmitir sentimentos com movimentos singelos e fazer o público sentir sem dizer uma palavra.
— Emily, arruma essa postura! — Aurora disparou ao perceber a novata um pouco desajeitada. Em poucos passos rápidos, ela se aproximou, tocou de leve o abdômen da garota e deu dois tapinhas encorajadores. — Abdômen firme, barriga pra dentro e levanta esse queixo. Olha aqui pra mim! Isso... confiança! — Aurora sugeriu com um movimento elegante dos dedos que a menina erguesse o rosto. E, não é que deu certo? Emily sorriu, meio sem graça, mas visivelmente mais confiante.
As meninas seguiram com a sequência, e Aurora observava cada uma com o olhar atento de quem entendia o peso de cada detalhe. Quando o intervalo chegou, deu um suspiro aliviado e finalmente liberou o grupo para respirar e relaxar. Algumas corriam para pegar água, outras alongavam os braços distraídas. Era bonito de ver: jovens mulheres construindo algo que ia além de movimentos coordenados.
Aurora, que um dia fora uma delas, não conseguia evitar o toque de nostalgia. Lembrava-se das próprias aulas, quando sua professora — uma mulher exigente, mas brilhante — repetia algo que ela jamais esqueceu. Inspirada, chamou todas para mais perto.
— Entendam algo muito importante, meninas — começou, sua voz suave, mas firme. — A postura de uma bailarina — ou melhor, de qualquer mulher confiante — é como um cartão de visitas. Vocês podem ser incríveis na técnica, mas se não souberem usar o corpo para transmitir segurança, ninguém vai perceber o quanto treinaram.
Os olhos brilhantes de Aurora varreram o grupo, que ouvia atentamente, absorvendo cada palavra como se fosse um segredo valioso.
— Quando vocês conhecem bem o corpo de vocês, isso muda tudo — continuou. — Vocês aprendem a identificar o que faz mal, por dentro e por fora. A postura certa não é apenas estética; é saúde, é elegância, é autoconfiança. E autoconfiança é algo que nenhuma coreografia pode ensinar, mas que toda boa bailarina precisa ter.
As garotas assentiram, algumas com sorrisos discretos, outras com expressões mais sérias. Aurora sentiu um calorzinho no peito — ensinar era, sem dúvida, uma das partes mais gratificantes de seu trabalho. E aí estava ela, moldando não apenas bailarinas, mas também mulheres que aprenderiam a se impor no mundo com graça e firmeza.
Depois de mais alguns minutos de conversa, as alunas se levantaram para o alongamento final. Todas com posturas ajustadas e cabeças erguidas, ao menos naquele momento, pareciam prontas para conquistar qualquer palco. Aurora acompanhou cada movimento, corrigindo uma aqui, incentivando outra ali. Até mesmo Emily, que no começo da aula parecia insegura, agora conseguia tocar as pontas dos pés com uma graça que prometia muito.
Quando tudo terminou, Aurora bateu palmas e sorriu.
— Vocês foram ótimas hoje, meninas. Lembrem-se: antes de dormir ou ao acordar, alonguem-se. É rápido, mas ajuda muito. E não se esqueçam de cuidar de vocês mesmas, viu? Nada de forçar além do limite. Até semana que vem!
As garotas se despediram, cheias de energia e gratidão. Aurora observou enquanto iam embora, sentindo-se grata também. Havia algo de especial naquele momento, naquelas vidas cruzando a dela, como passos perfeitamente sincronizados de uma coreografia que só o universo podia criar.
Aurora fechou a porta do estúdio com cuidado, ouvindo o eco dos últimos passos das alunas se afastando. A sala ainda exalava o calor da energia delas, mas tudo agora estava em silêncio. Ela pegou a bolsa de couro envelhecido que estava jogada sobre a cadeira e a colocou sobre o ombro. A noite já tinha caído, e a luz suave das lâmpadas da rua iluminava o caminho até o mercado, onde Aurora faria as últimas compras da semana.
O ar fresco da noite fazia a cidade respirar de uma maneira diferente, tranquila, quase pacífica. O caminho até o mercado não era longo, mas Aurora sempre aproveitava para caminhar por ali, para sentir a vida da vizinhança e para pensar. Seus passos ritmados ecoavam de forma quase hipnótica, como se, mesmo fora da sala de dança, ela ainda carregasse consigo a cadência de sua aula.
Ao chegar no mercado, Aurora entrou com a sensação de quem estava em um local familiar. O cheiro de frutas frescas, o som das pessoas conversando sobre o dia a dia e o zumbido das prateleiras movimentando-se lentamente eram a trilha sonora da sua rotina. Ela se dirigiu até a seção de hortifruti, já sabendo o que procurava. Mas antes de pegar as maçãs, uma voz familiar a interrompeu.
— Olha só quem apareceu! — disse Dona Lourdes, uma senhora de cabelos grisalhos e expressão sempre curiosa, conhecida por ser a fofoqueira de plantão do bairro. Ela estava na fila do caixa, um cesto de compras à sua frente e uma expressão de quem já tinha algo a dizer.
Aurora sorriu, já sabendo que o encontro não seria casual. Dona Lourdes era uma espécie de radar humano, sempre pronta para soltar novidades.
— Boa noite, Dona Lourdes — cumprimentou, ainda segurando uma maçã verde com a mão esquerda. — Como está?
— Ah, estou bem... mas você não vai acreditar no que aconteceu hoje! — disse Lourdes, se aproximando como se fosse contar um segredo. Ela inclinou a cabeça para os lados, deixando claro que estava prestes a lançar mais uma de suas histórias. — Chegou um novo morador aqui no bairro... Um rapaz! Um jovem policial, muito bonito, viu?
Aurora parou um instante, a maçã ainda em sua mão. Era curioso como Dona Lourdes sabia de tudo, como se tivesse um poder sobrenatural para observar cada movimento de cada pessoa.
— Policial? — perguntou Aurora, deixando transparecer uma pontinha de curiosidade. Não era muito dada a fofocas, mas a menção de um "jovem policial bonito" imediatamente chamou sua atenção.
— Isso mesmo! — exclamou Lourdes, visivelmente empolgada. — Tão bonito que nem parece real! E está morando bem ali na casa da esquina, aquela que estava vazia há meses. Dizem que ele vai trabalhar aqui na delegacia. Tem uns olhos verdes que encantam, parece até um modelo, sabe? As meninas do bairro já estão suspirando por ele, e eu só estou te contando isso porque você, minha filha, vai ser uma das primeiras a perceber, já que está sempre por aí com essa energia toda. Ahhh se eu fosse uns 20 anos mais nova!
Aurora deu um sorriso discreto, tentando não parecer tão interessada. Era engraçado como, mesmo sem buscar, acabava sempre sendo envolvida nas conversas daquelas mulheres. E aquele policial... bem, ele parecia ser uma novidade que estava deixando todas as antenas ligadas no bairro. Aurora se perguntou se ele seria realmente tão encantador quanto descreviam.
— Vou ficar de olho — disse Aurora, brincando, mas ao mesmo tempo com um sorriso que entregava uma leve curiosidade.
Dona Lourdes fez um gesto como quem dizia "você vai ver", e se despediu com um olhar de quem já sabia que sua missão de divulgar a novidade estava cumprida.
Aurora, ainda com a maçã na mão, continuou suas compras com a mente ligeiramente distante. Um policial novo no bairro, morando tão perto... Ela não sabia por que, mas algo sobre isso parecia intrigante. Talvez fosse só o fato de ele ser novo e desconhecido, mas, com certeza, ela se lembraria de procurar aquele olhar verde se o encontrasse em algum lugar. Isso com certeza!
O café estava como sempre: um santuário para os amantes do silêncio e dos aromas reconfortantes de grãos torrados. Peter já havia transformado aquele lugar em uma extensão de sua rotina. Mesa de canto, café preto, olhar para o movimento sem compromisso. Mas, naquele dia, algo mudou.Aurora estava lá.Claro, ela costumava estar, mas hoje parecia diferente. Não era apenas sua presença, mas o modo como seus olhos estavam concentrados em um livro que repousava sobre a mesa. Ele reconheceu a capa imediatamente uma edição antiga de A Divina Comédia. Aquele livro não era algo que se encontrava por acaso, e menos ainda algo que muitas pessoas leriam casualmente, como quem lesse uma comédia romântica da autora Jéssica Luz.“Interessante,” pensou Peter, enquanto esperava seu café. Seu olhar voltava a ela repetidamente, como se a cena exigisse atenção. Aurora parecia tão absorta que não percebeu os olhares discretos que ele lançava em sua direção. “Uma mulher tão jovem, tão bonita, lendo Dante?
Aurora estava sentada no mesmo café, à mesma mesa próxima à janela. A cena parecia uma reprise do dia anterior, mas a energia era diferente. Talvez fosse o modo como Peter a observava ou algo na postura dela, uma mulher imóvel no meio de uma cidade pequena e sempre em movimento. Mas ela estava ali novamente, absorta em seu ritual silencioso.O livro, A Divina Comédia, repousava aberto no meio da mesa. E, mais uma vez, era o Purgatório que prendia sua atenção. Um detalhe curioso, talvez até desconcertante, dependendo do ponto de vista. Normalmente, é o Inferno que fascina. Chamas, castigos, gritos de desespero – a humanidade parece irresistivelmente atraída pelo grotesco. Já o Paraíso, com sua luz infinita, evoca uma aspiração sublime, mesmo que distante. Mas o Purgatório? Este é o espaço que poucos escolhem habitar, muito menos explorar com tamanha dedicação como Aurora fazia.Por que alguém se fixaria tanto nesse lugar intermediário? Um espaço de incerteza, onde as almas penam, mas a
O café estava vazio naquela manhã, exceto por Aurora. Desta vez, ela não trazia o livro de Dante, mas um caderno pequeno, usado, com a capa marcada pelo tempo e o cheiro antigo de páginas esquecidas. Sentada na mesma mesa de sempre, escrevia com intensidade, como se estivesse exorcizando seus demônios através da tinta. E, na verdade, era isso mesmo que fazia. Na noite anterior, algo havia mudado. O som dos pesadelos cortou a tranquilidade ilusória que ela mantinha. Uma voz do passado grave, familiar, perigosa trouxe memórias que Aurora lutava para manter enterradas. Palavras ecoavam em sua mente desde então, desconexas, mas pesadas: "Você não pode fugir para sempre." E que problemas uma ruivinha, bailarina e bonitinha teria para lhe causar tantas aflições?Todos lutamos contra nossos demônios, isso é uma realidade da vida, mas o preço das escolhas que você faz é o que vai definir o real peso dos seus problemas. ---------Do outro lado da cidade, Peter começava a se aprofundar em out
Era uma daquelas noites em que o mundo parecia respirar mais devagar. As luzes da cidade, embora constantes, pareciam se apagar e acender de forma compassada, acompanhando o ritmo de corações inquietos. Peter e Aurora caminhavam em silêncio pela calçada, o som dos passos preenchendo os espaços entre as palavras que nenhum dos dois parecia ter coragem de dizer.Se fosse mais direto, poderia afirmar que Peter estava apenas sendo educado ao acompanhá-la até o estúdio. Mas isso seria uma mentira. A verdade era que ele sentia uma necessidade quase protetora, um instinto que ele não conseguia explicar, mas que crescia toda vez que ela desviava o olhar, como se carregasse algo muito pesado para compartilhar.E Aurora… ah, Aurora. Ela era uma enigma ambulante, envolta em véus de mistério
Peter passou o início da tarde em sua rotina habitual. A delegacia da pequena cidade nunca era exatamente movimentada, mas, naquele dia, havia uma pilha de relatórios o aguardando. Nada fora do comum, pequenas disputas de vizinhos, denúncias anônimas que raramente levavam a algo sério. Mas, enquanto preenchia os papéis, seus pensamentos vagavam.Aurora.Ele se pegava pensando nela com uma frequência que começava a incomodá-lo. Havia algo em seus olhos que parecia esconder segredos, mais que isso havia muito tempo que ele não pensava tanto em outra mulher, o trauma passado com a sua namorada da juventude não deixava. Essa curiosidade e vontade extrema de ver a moca o deixava em alerta, mas, ao mesmo tempo, o puxava de um jeito que era difícil resistir.— Ei, Peter! — Chamou um dos colegas. — Você vai no show de talentos hoje?Peter levantou os olhos do relatório.— show?— No ginásio comunitário. Parece que até a professora de balé do bairro vai se apresentar com as alunas. — O tom do
A manhã já era diferente do que se espera de uma cidade pequena e pacata. Um assassinato na madrugada reuniu os investigadores da região. A cena do crime estava inquietantemente silenciosa, exceto pelo som de passos sobre a terra seca e murmúrios entre os agentes. Zé Castor, um nome que carregava medo e ameaça, agora jazia imóvel na saída da cidade. Peter observava o corpo, tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça que ainda nem tinha bordas claras.A perfuração no peito era fatal, mas limpa. Não havia bagunça, não havia luta. Apenas a rosa vermelha repousando ao lado, como um lembrete silencioso de que aquilo não era obra do acaso.— Lembra alguma coisa, não acha? — Disse um dos agentes da perícia, mostrando a rosa com cuidado, sem tocá-la diretamente.Peter franziu o cenho. Claro que lembrava. Há meses, outro homem com um histórico sombrio fora encontrado morto em circunstâncias quase idênticas. Na época, a falta de pistas havia encerrado o caso antes mesmo de começar. Mas ago
A noite estava silenciosa no pequeno quarto que Rose chamava de lar. A única iluminação vinha da chama trêmula de uma vela, lançando sombras dançantes nas paredes. Sobre a mesa, uma rosa vermelha descansava dentro de um pequeno copo d'água, como um prêmio cuidadosamente escolhido.Rose segurava uma caneta, rabiscando em um caderno de capa preta. Cada página continha anotações organizadas, meticulosas, e, ao mesmo tempo, quase poéticas. Ela escreveu devagar, como se cada palavra fosse um ritual. Em outra página, havia recortes de jornais, manchetes sobre crimes que pareciam desconexos para os investigadores, mas que, para ela, seguiam um padrão. As fotos das vítimas estavam marcadas com círculos vermelhos, cada um indicando um ato necessário.No canto do quarto, uma caixa de madeira fechada por um cadeado continha algo que ninguém jamais deveria encontrar. Rose a olhou por um momento, mas não se aproximou. Não ainda. A rosa na mesa era a única companhia que ela precisava naquele moment
A pequena cidade parecia um palco em constante murmúrio. As conversas nos mercados e nos bares giravam em torno dos assassinatos, mas o tom não era de preocupação genuína, e sim de curiosidade mórbida. A falta de simpatia pelas vítimas fazia com que o burburinho tivesse um tom quase cínico. Era como se os moradores preferissem tratar os crimes como histórias de terror contadas ao anoitecer, e não como tragédias reais.No entanto, na delegacia, a atmosfera era completamente diferente. Peter e sua equipe estavam mergulhados na análise do caso. Havia detalhes demais para ignorar e lacunas que precisavam ser preenchidas.— Não é que eles não se importem — Álvaro comentou durante a reunião matinal. — É que, para eles, essa pessoa está fazendo o que ninguém teve coragem de fazer.Peter não respondeu. Ele entendia o raciocínio, mas isso não diminuía sua preocupação. O perfil do assassino era meticuloso e, em muitos sentidos, assustador. Ele sabia que, quanto mais sucesso a pessoa tivesse, ma