A loja de especiarias de tio Palomir ficava no centro comercial da Cidade das Árvores. Como havia prometido, Aria deixou o almoço para o tio e foi levar suas ferramentas para conserto. A garota parou em frente à ferraria. Embora fosse pequena, havia um arsenal das mais variadas armas penduradas nas paredes, caídas no chão, uma bagunça.
– Ramón! – gritou. – Sou eu, Aria, vim lhe ver.
De dentro da ferraria ouviu-se um barulho de algo de metal caindo no chão seguido de um grito. A voz grossa de um homem gritou lá de dentro:
– Aria! Quanto tempo não a vejo! Já ia falar com seu tio para lhe trazer aqui. Precisava lhe mostrar uma espada que encomendaram. Uma maravilha, mas o dono já veio buscar. Entre, entre.
Ramón era um ferreiro de meia idade. Tinha a estatura baixa, mas era musculoso, os cabelos já rareavam e os poucos que tinha já estavam grisalhos. Ramón havia trabalhado com o pai de Aria e praticamente a vira crescer. Quando menina, adorava ver o pai e Ramón trabalhando e passava noites em claro vendo-os forjar espadas e outras armas.
Aria entrou na oficina. O calor ali era intenso, a enorme forja acesa já estava apinhada de projetos de armas para serem moldadas e na parede de frente para a entrada havia um enorme Machado de Prata pendurado. Os aprendizes de Ramón já estavam todos concentrados em seus afazeres, mal se viraram para ver quem entrava na oficina.
– O que a trouxe aqui? – perguntou Ramón.
– Trouxe algumas ferramentas para você consertar para mim – disse Aria abrindo seu alforje e mostrando as ferramentas danificadas. – Estou sem tempo para consertá-las e estou sem material também.
– Deixe-me vê-las – Ramón tomou uma das tenazes nas mãos – Estão bem danificadas, mas posso consertá-las hoje mesmo. Amanhã você poderá vir buscar.
– Obrigada.
– Precisa de mais alguma coisa? – perguntou Ramón.
– Por enquanto apenas isto – disse Aria. – Já vou indo, Ramón. Agradeço novamente. Até amanhã.
– Até, Aria.
Quando saiu da oficina surpreendeu-se ao encontrar o cavaleiro viajante de olhos verdes parado do outro lado da rua, encostado na parede de uma casa, olhando sorridente para ela. Ao lado dele estava o homem que ele chamara de Sir Rúmil. Surpreendida, Aria fingiu que não o viu e continuou seguindo seu caminho. O rapaz então foi atrás dela.
– Ei, senhorita! – ele chamou enquanto a alcançava, Sir Rúmil vindo atrás dele. – Bom dia! Devo agradecê-la novamente por ter me ajudado na floresta.
– Por nada – disse Aria apertando o passo tentando se afastar dele.
– Estava andando pela cidade hoje, quando a vi entrando naquela oficina de ferreiro. Desde então fiquei esperando você sair para poder falar com você – o rapaz disse.
– Por acaso está me seguindo? – Aria parou de repente inconformada com a situação. Não se importou se estava sendo rude com o rapaz. A conduta dele a tirava do sério.
– Não, não a estou seguindo – ele disse. – Só gostaria de falar um pouco com você. Perdoe-me se minha atitude a magoou.
Por um momento Aria pode ver uma sombra nos olhos do rapaz, era ele quem mais parecia magoado. Aria já havia visto aquela expressão antes, a conhecia muito bem. A sombra nos olhos dele era de um profundo pesar.
– Eu que peço perdão pela minha grosseria – disse Aria com um aperto no coração. – Preciso ir agora. Adeus!
Aria acenou e saiu correndo, deixando o rapaz parado no meio da rua sem entender nada.
No dia seguinte, Aria voltou à cidade para buscar suas ferramentas. Ao sair da oficina, andava distraidamente pela rua, quando tropeçou e caiu derrubando todas as ferramentas no chão. Enquanto as catava, mais um par de mãos apareceu para ajudá-la.
– Ah! Muito obrigada! – respondeu Aria levantando a cabeça para ver quem a ajudava. Sobressaltou-se ao ver que era o rapaz do dia anterior.
“Ele outra vez!”, pensou Aria consigo mesma.
Após recolher as ferramentas e guardá-las o rapaz estendeu a mão para Aria que ainda estava no chão. A garota recusou a ajuda e o rapaz puxou a mão de volta, embaraçado.
– Nos encontramos novamente! – disse ele alegremente.
– É, eu percebi – disse Aria.
– Ontem vejo você entrando em uma oficina de ferreiro e hoje você está com várias ferramentas em mãos – disse o rapaz. – Perdoe minha intromissão, mas por acaso está levando essas ferramentas para algum familiar que é ferreiro?
– Não – respondeu Aria. – Essas ferramentas são minhas.
– Você é assistente em alguma oficina?
– Não sou.
– Entendo – ele disse percebendo que estava sendo indiscreto.
– Se não se importa – ela disse. – Eu preciso voltar...
– Espere – ele a interrompeu. – Percebi que você conhece bem as redondezas. Como sou novo aqui estou um pouco perdido, mas gostaria de conhecer a cidade já que não terei muito o que fazer por alguns dias. Você poderia ser minha guia durante esse tempo? Se quiser, é claro.
Aria não esperava por aquilo. O que será que o rapaz queria com ela? A atitude dele era estranha.
– Mas e o seu guarda? – perguntou Aria lembrando-se do homem que estava com ele no outro dia. – Ele não vai se importar? Por que ele não está com você hoje?
– Meu guarda? – perguntou o rapaz confuso.
– Sim, aquele que você chamou de Sir – ela disse.
– Ele não é meu guarda! – o rapaz riu.
– O que ele é, então?
– Sir Rúmil também estava lutando na guerra, somos companheiros – ele respondeu. – Por mais que pareça que ele estava tomando conta de mim, ontem nós só estávamos dando uma volta pela cidade.
Ele continuou rindo e Aria respirou fundo. Considerou o pedido do rapaz. Ele era novo na cidade e mesmo que não houvesse tantos lugares interessantes para visitar na Cidade das Árvores, nos arredores de Taurdin havia locais muito bonitos para se conhecer. Como Aria bem sabia, ficar à toa em casa era maçante. Ainda hesitante em relação a ele, Aria decidiu aceitar.
– Tudo bem – ela disse. – Venha. Vou ser sua guia.
– Ah! Obrigado por aceitar – exclamou ele.
Aria pegou seu alforje e já ia prendê-lo às costas quando o rapaz interviu.
– Eu poderia levá-lo para você – ele disse querendo ser educado. – Parece estar pesado.
– Não é necessário – respondeu Aria. – Já carreguei coisas muito mais pesadas que isso. Agora, me siga.
Aria saiu andando e ele correu para alcançá-la.
– Está vendo aquela loja? Se estiver precisando de roupas novas ali é o lugar certo. Ali na frente é a biblioteca – apontou Aria para um grande prédio rústico. – Há livros muito bons.
– Você gosta de ler? – perguntou o rapaz.
– Gosto muito, meu pai sempre me incentivou. Já li boa parte dos livros da biblioteca, mas não há muitos livros de histórias, há mais documentos e registros antigos. Prefiro os contos.
– Ler é uma arte para poucos, o que não concordo. Os livros são nossas almas vistas por fora, e todos deveriam apreciar essa arte. É simplesmente fascinante – disse ele.
– Sim é fascinante. Meu pai me dizia que saber ler e escrever seria importante para o meu futuro – disse Aria.
– Concordo. O conhecimento é uma dádiva.
Aria olhou para o rapaz. “Por que ele é tão diferente das outras pessoas?” pensou Aria. Tudo nele era diferente. Seu jeito de falar era estranho. Seu modo de andar e de agir. Ele pensava diferente. “Quem é ele?”.
Logo eles chegaram ao centro da cidade. Lá, no meio de uma praça, havia uma fonte. O rapaz seguiu até a fonte e parou em frente a ela, observando como se já tivesse visto uma igual àquela.
– É muito bonita, não é? – disse Aria se aproximando.
Ele se virou e abriu um sorriso.
– É sim, a fonte é muito bonita.
– É uma homenagem ao rei daqui. É chamada de Fonte da Promessa – disse Aria. – Existem duas, ouvi dizer, uma em Armendor e a outra está em outro reino. Parece que elas fazem um par.
O rapaz olhou para ela, atento.
– Está vendo a inscrição? Embaixo do nome do rei. “É uma promessa. Se você cair, serei o primeiro a lhe estender a mão” – Aria leu. – Na outra fonte está a promessa feita por outro rei, mas não sei o que é.
Os olhos do rapaz brilharam ao fitar a fonte. Novamente sua expressão demonstrava pesar.
– Você conhece bem as coisas por aqui, não é? Parece que escolhi bem minha guia – sua expressão se recuperou ao falar.
Aria assentiu.
– Você disse outro dia que seu nome é Tumen, não é? – ela perguntou.
– Fico feliz que tenha lembrado – ele sorriu.
– Como eu prometi, vou ser sua guia por um período – disse Aria –, há lugares muito bonitos em Armendor, se você souber aonde ir. Também não tenho muito o que fazer durante o dia e passo boa parte do meu tempo nesses lugares. Podemos fazer companhia um para o outro, não tenho amigos da minha idade e às vezes é bom conversar com pessoas diferentes.
Um sorriso ainda maior abriu no rosto dele.
– Agradeço novamente por aceitar meu pedido – disse Tumen. – Então, aonde iremos amanhã?
– Amanhã me encontre aqui na fonte a uma da tarde – disse ela. – Traga seu cavalo e venha armado. O lugar aonde vamos pode ser um pouco perigoso, mas ainda assim é um ótimo lugar. Valerá a pena. Agora preciso ir embora, então até amanhã, Tumen.
– Até amanhã.
Aria foi até onde havia amarrado Ganis e montou no cavalo.
– Ei! – chamou Tumen. – Espere. Ainda não sei seu nome.
– Meu nome é Aria.
– Aria! – repetiu Tumen. – É um belo nome.
Ele sorriu e involuntariamente Aria também sorriu. Tumen acenou e Aria foi embora.
No dia seguinte, Aria selou Ganis, pegou sua espada, arco e aljava com flechas e as amarrou à sela. Águia não estava lá, talvez tivesse saído para esticar um pouco as asas, pensou Aria. Já era quase uma hora quando tirou Ganis do celeiro. Vendo que Aria estava para sair, tia Célia foi até ela. – Aria, onde está indo? – tia Célia perguntou. – Estou indo a Thoronbar – respondeu Aria. – A senhora vai precisar de mim hoje? – Não, não – disse tia Célia. – Pode ir, não vou precisar de ajuda hoje. Divirta-se! – Até mais tarde! – disse Aria e saiu. Montou em Ganis
No horário combinado Aria foi até o local de encontro. Novamente Tumen já a aguardava lá, sorridente. Ela acenou pra ele. – Boa tarde – ele cumprimentou. – Podemos ir? – perguntou Aria. – Claro. Embrenharam-se na floresta e seguiram para Thoronbar. Tumen queria conversar, mas estava sem jeito de iniciar a conversa, não sabia o que dizer. Aria também não falou nada até chegarem à clareira. Ao desmontar de Ganis e amarrá-lo a uma árvore, Águia recebeu Aria em Thoronbar, voando ao redor dela. – Ainda estou impressionado com sua
O sino tilintava amarrado ao cinto de Tumen. Logo à frente, um sino semelhante ao dele também retinia preso ao alforje de Aria. Naquela tarde a garota os levava por um caminho diferente. Cavalgavam por uma parte da floresta que era bem próxima à Cidade das Árvores. – Hoje vou levá-lo a um lugar bastante conhecido – comentou Aria. – Podemos ter a sorte de o lugar estar vazio, pois caso encontremos alguém, teremos que voltar. – Por quê? – perguntou Tumen, curioso. – O lugar tem dono – foi tudo o que Aria disse. – Já estamos chegando. Eles entraram num local que parecia ser uma fazenda. Árvores frutíferas diversas haviam sido
Aria se sentou, apreensiva com o que seu tio tinha para lhe falar. Anne que preparava o jantar tentava não olhar nos olhos de Aria. Tia Célia estava com o rosto preocupado, mas tio Palomir tinha a expressão séria. “Será que ele descobriu que estou passando minhas tardes com um homem desconhecido? Ou será que contaram a ele que furtei o pomar real?” – Tio... – começou Aria, mas foi interrompida. – Aria, quero lhe dizer algo – disse tio Palomir. – Tio Palomir, eu juro que eu não farei de novo – tentou explicar Aria. Tio Palomir riu. “Como ele pode estar rindo se o assunto parece ser tão sério”, pensou Aria. &n
Aria acordou cedo. Vestiu-se, tomou seu desjejum e foi procurar tia Célia. Ela estava no celeiro olhando para um grande porco que não estava ali na noite passada. – Tia, onde conseguiu esse porco? – perguntou Aria. – E o que vai fazer com ele? – É para a festa do casamento de Anne – respondeu tia Célia. – Seu tio o comprou no mercado. Era o maior que havia lá. – A festa vai ser aqui? – perguntou Aria. – Não. Na casa de Julian – disse tia Célia. – Lá é maior, vamos levar tudo para lá hoje. Vou esperar seu tio chegar para matar o porco e depois nós vamos prepará-lo. &nb
Como havia prometido em seu último encontro, Aria foi para Thoronbar. A garota brincava com Águia quando ouviu um relincho perto da entrada da campina. Ao se virar deparou com Tumen que acenava sorridente para ela. Aria correu em direção a ele. Sentiu uma imensa vontade de abraçá-lo, mas achou que seria inadequada essa atitude, então apenas o tocou de leve no ombro. – Que bom vê-lo! – disse Aria, sorrindo. – Bom ver você também – disse Tumen. – Conte-me o que fez durante esses três dias – disse Aria, indo se sentar na grama. – Não fiz muita coisa – Tumen sentou-se ao lado dela. – Ajudei meu tio a resolver alguns problemas
Tumen já aguardava Aria na cachoeira, no horário de sempre. Quando ela chegou, o rapaz deu um abraço tão forte em Aria que os pés dela saíram do chão. Ele a beijou ternamente e a puxou até uma área sombreada sob as árvores. – Como está o corte? – perguntou Aria, passando a mão onde ela havia cortado – Está melhor? – Logo vai cicatrizar – disse Tumen. – Além de ter uma boa pontaria, também é boa na esgrima. Aria riu. – Luto bem – disse Aria. – Mas prometo que não vou lhe cortar nunca mais. – Não quer mais duelar comigo? – perguntou Tumen. &nb
Aria acordou animada e com disposição. Caçou coelhos na floresta e os levou para casa. À tarde, preparou tudo rapidamente e foi para a oficina. Só então se lembrou que não falara a Tumen onde estaria. Mas ele saberia onde encontrá-la. Estava guardando as ferramentas quando escutou alguém chegando a cavalo. Saiu para ver quem era e já abriu um enorme sorriso de felicidade e alívio. Tumen desmontou e correu para abraçá-la. Enquanto se abraçavam Aria sentiu que o aperto em seu coração havia desaparecido. Tumen estava bem, sem nenhum arranhão, Aria havia se preocupado à toa. – Que bom vê-lo! – sussurrou Aria no ouvido de Tumen. – Senti sua falta! – sussurrou Tumen de volta.