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Armendor
Armendor
Por: Gabriela Maria
01 - A caçada

            O dia amanhecia na Cidade das Árvores. Uma águia imperial sobrevoava a cidade. Os cidadãos já acordavam e se aprontavam para ir trabalhar. Mercadores iam abrir suas vendas, já podia se escutar o som das ferramentas de um ferreiro ao longe, lenhadores já pegavam seus machados prontos para mais um longo dia de trabalho. Taverneiros expulsavam os bêbados de suas tavernas, e estes, que passavam a noite toda bebendo, se esqueciam de voltar para casa. Mais um dia comum na Cidade das Árvores, no Reino de Armendor, as Terras do Sul.

            Armendor era um reino pacífico, ainda em desenvolvimento. Sua economia baseava-se principalmente em extração de madeira e ouro. O reino todo era cortado por uma extensa mata fechada, a Floresta de Taurdin. Era uma densa e silenciosa floresta cheia de perigos que servia como uma muralha natural, protegendo Armendor que se escondia em seu interior. Taurdin guardava muito mais que um reino, também era o lar de animais selvagens e bandidos.

            Embora houvesse trilhas que levavam para dentro e para fora da floresta, alguém que não conhecesse bem a região se perderia facilmente e talvez nunca mais fosse encontrado, ou talvez fosse encontrado por criaturas nada agradáveis.

            Mas havia alguém, em Armendor, que parecia não se importar com os perigos de Taurdin. Esse alguém era Aria, uma jovem e bela garota, valente e ainda assim delicada. Armada apenas com seu arco ela se embrenhava em Taurdin atrás de sua caça logo ao nascer do sol. E a caça desta vez era uma corça. Aria seguia o rastro do animal há dois dias e naquela manhã estava mais próxima de encontrar. As pegadas indicavam que a corça havia passado por ali há pouco. Ela parecia estar ferida, pois suas pegadas estavam irregulares, talvez fosse uma pata quebrada.

            Não demorou muito para a garota encontrá-la. E lá, escondida pela vegetação, estava a corça se alimentando, desatenta. Aria armou o arco e mirou. O animal nem sentiria o que o havia acertado, seria indolor. O tiro foi certeiro e a corça caiu. Aria se aproximou de sua caça. Uma das patas dianteiras realmente estava quebrada, dobrada em um ângulo estranho. A jovem tirou a flecha e com esforço foi arrastando o animal abatido até onde estava um belo cavalo marrom. Ganis, era o nome do cavalo, forte e veloz, era fiel a Aria e obedecia a todos seus comandos. Preso a ele havia um pequeno vagão de madeira onde Aria colocou a corça.

            A garota parou para observar o animal morto, uma caçada como aquela trazia lembranças ruins a Aria, algo que ela preferia evitar lembrar.

            Oito anos atrás, num local próximo de onde Aria se encontrava a mesma cena se repetia, porém não havia terminado da mesma maneira.

            Um homem embrenhava-se pela floresta, seus passos silenciosos camuflavam-no por entre as árvores. Ele mantinha seu longo cabelo castanho preso em uma trança que caia até seus ombros, seus braços musculosos eram marcados pela fina camisa de linho que ele usava. Seu rosto austero, porém belo, ainda mantinha certa vivacidade por causa de seus olhos castanho-claros que irradiavam alegria. Este homem era Faronil, um habilidoso ferreiro da Cidade das Árvores, que armado com seu arco e flechas e sua espada era também um exímio caçador.

            Acompanhando Faronil ia uma criança, de uns sete anos. Uma garotinha de cabelo ondulado e castanho, o rosto delicado e belo e aqueles mesmo olhos cativantes castanho-claros. Ela usava um vestido bem simples, porém impecável. A menina seguia Faronil por Taurdin, um lugar inadequado para uma criança, mas lá estava ela, sorridente, atrás daquele que ela tanto admirava.

            – O que estamos caçando, papai? – perguntou a menina.

            Faronil virou-se para a menina e ajoelhou-se ao lado dela.

            – Lembra-se das pegadas de corça que vimos ontem, Aria? – perguntou Faronil e a menina assentiu com a cabeça. – As pegadas estavam frescas, acho que o bando ainda está por perto.

            – Por isso precisamos andar bem quietinhos? Para não assustar os animais? – ela perguntou.

            – Isso mesmo! Se as corças escutarem o som dos nossos passos se aproximando, elas ficarão assustadas e fugirão! – explicou Faronil. – Então vamos continuar?

            – Sim, papai! – assentiu Aria, sorrindo.

            Continuaram seguindo pela trilha em silêncio. Vez e outra Faronil olhava para trás verificando se Aria estava bem. Sempre que fazia isso, lá estava ela olhando para ele com um enorme sorriso no rosto. Pouco tempo havia se passado desde que entraram na floresta quando Faronil encontrou o que procurava.

            – Veja Aria! As pegadas! As corças passaram por aqui não faz muito tempo. Vamos nos apressar, talvez nós consigamos alcançá-las.

            Faronil apressou o passo, podia sentir que estavam próximos de sua presa. E não estava enganado. Não demorou muito para que encontrassem uma das corças pastando, afastada do resto do bando. Silenciosamente Faronil armou o arco. Fez um sinal para que Aria se aproximasse e apontou para a corça. A menina ajoelhou-se ao lado do pai e observou o animal por entre um arbusto. Aria mal respirava evitando fazer qualquer ruído que pudesse assustar a presa. Faronil preparou a flecha, mas quando foi atirar, os dois foram surpreendidos por quatro homens armados, os Gatunos, bandidos que moravam em Taurdin, que atacaram Aria e seu pai antes que pudessem se defender. A corça, ao perceber a movimentação, afastou-se correndo.

            O mais rápido que pode Faronil virou-se para um dos Gatunos e atirou, acertando-o no abdômen. O homem gritou de dor, arrancou a flecha e logo se recompôs. Este estava mais próximo de Aria e ao percebê-la ajoelhada no chão, tremendo de medo, puxou-a pelos cabelos e colocou uma faca em sua garganta.

            – Solte-a! – gritou Faronil desembainhando sua espada rapidamente.

            – E o que ganharemos fazendo isso? – disse o Gatuno que segurava Aria.

            – Solte-a e eu lhe dou o que você quiser – prometeu Faronil.

            – Ah! Não se preocupe! – disse o homem. – Você vai me dar o que eu quero. Não é mesmo?

            – É! – concordaram os outros três homens.

            – Hoje, eu e meus homens acordamos querendo ver um pouco de sangue, se é que me entende – disse o bandido. – Estávamos andando por Taurdin a procura de algo para nos divertir, quando de repente, o que encontramos? Um caçador solitário, espreitando sua caça! Que dia maravilhoso, não? Mas o caçador não estava sozinho! Não, ele levava junto seu filhote. Que sorte a nossa!

            O Gatuno começou a rir maldosamente, seguido por seus homens. Faronil ficou em guarda pronto para atacar a qualquer segundo. O líder do bando fez um movimento com a cabeça incitando os outros a partirem para a luta. Os três homens atacaram Faronil, que se desviou e defendeu facilmente. Ainda assim, eram três contra um e logo Faronil percebeu sua desvantagem, mesmo que aqueles não fossem páreo para ele.

            Os Gatunos investiram contra Faronil novamente, mas com habilidade ele defendia todos os ataques. Quando foi contra-atacar, o líder do bando pressionou a faca contra a garganta de Aria atraindo a atenção de seu pai, que por um momento se desconcentrou da luta. Era a chance que os bandidos estavam esperando, um deles atacou Faronil pelas costas com a espada, deixando um profundo corte. Ele caiu de joelhos, gritando de dor.

            – Papai! – gritou Aria. – Papai, levante!

            – Calada, menina! – disse o homem que segurava Aria, sacudindo-a.

            – Aria... Não se preocupe minha pequenina – Faronil tentou acalmá-la.

            Ele se levantou. O corte em suas costas queimava, mas Faronil não deixou transparecer a dor que estava sentindo. Pôs-se em guarda novamente, observando cada um dos homens. Investiu contra o que estava mais próximo dele, desferindo golpes ferozes. O rapaz não conseguiu se defender e logo estava cheio de cortes espalhados pelo corpo. Os outros dois, irritados com o que havia acontecido com o companheiro correram para atacar Faronil. O líder fez um sinal para os outros pararem.

            – Esperem! Vamos ver do que o caçador é capaz.

            O pai de Aria continuou atacando o rapaz, que foi perdendo território de luta. Faronil aproveitou a oportunidade e golpeou a cabeça do Gatuno, fazendo-a voar longe. Um silêncio recaiu sobre a floresta, mas não durou muito.

            – Maldito! – um deles gritou.

            Os dois que ainda estavam de pé correram na direção de Faronil. Um deles usava espada, mas o outro possuía um arco. Se ele resolvesse atirar seria um problema a mais para Faronil. O pai de Aria atacou o rapaz que usava o arco tentando acabar com ele primeiro. O homem que estava com a espada aproveitando que Faronil estava atento ao outro Gatuno perfurou-o pelas costas, fazendo a espada atravessar seu corpo. Ele cuspiu sangue e Aria chorava cada vez mais. Faronil segurou a lâmina que continuava transpassada em seu corpo impedindo que o bandido que o golpeara a retirasse. Percebendo que ele não soltaria a espada o homem se afastou de Faronil, que se levantou e investiu contra ele rachando seu crânio ao meio.

            Seus músculos estavam no limite e o local onde havia sido perfurado estava adormecido, mas Faronil continuava lutando. Ele precisava salvar Aria. Só restavam dois homens, o líder que segurava Aria e o outro que estava com o arco. Ele atirou em Faronil acertando-o no abdome, que caiu de joelhos. Aria gritou e tentou se livrar do homem que a segurava.

            – Silencie a menina – disse o líder.

            O Gatuno com o arco mirou e atirou em Aria. A flecha atingiu-a no ombro e Aria gritou de dor. Ela sentiu sua cabeça girar, não conseguia mais distinguir o que acontecia ao seu redor. Viu o pai se levantando novamente, atacando o homem com o arco e enterrando a espada até a guarda no peito dele. Faronil então veio em direção ao líder, brandindo sua espada ensanguentada com o resto de força que possuía.

            – Não se aproxime! – gritou o homem.

            Era visível o medo que tomava conta do líder dos Gatunos. A impressão que o líder tinha de Faronil era a de um demônio coberto de sangue, com os olhos preenchidos de fúria. E Faronil continuava se aproximando dele.

            – Não venha! Ou eu corto a garganta da menina.

            – Papai – Aria chorava.

            – Feche os olhos, Aria – pediu Faronil.

            Aria fez o que o pai pediu. O grito do líder foi terrível. Aria sentiu o ar sendo cortado acima de sua cabeça e em seguida ouviu um baque seco no chão. Lentamente as mãos do homem se soltaram de Aria e ela pode escutar o corpo dele caindo. A menina abriu os olhos e viu seu pai de joelhos à sua frente.

            – Papai!

            Aria foi até ele tentando mantê-lo firme, mas a dor que ela sentia em seu ombro não melhorava a situação. Tentou arrancar a flecha, mas ela estava presa profundamente e Aria não tinha força o suficiente para arrancá-la. A menina olhou para os ferimentos do pai, eram bem graves e os cortes feitos pela espada eram profundos. As perfurações no abdome causadas pela flecha e pela espada não paravam de sangrar. Sangue escorria da boca e das narinas de Faronil, que ficava cada vez mais pálido. Aria pensou. Como iria salvá-lo? Ela não poderia arrastá-lo até a cidade, estavam muito longe, mas também não poderia deixá-lo sozinho, o cheiro do sangue atrairia os animais selvagens. Ela decidiu esperar. Se dessem sorte algum caçador ou os Patrulheiros Verdes de Taurdin os encontraria e os ajudariam.

            – Papai, me perdoe – disse Aria chorando enquanto tentava ajeitá-lo em uma posição melhor.

            – Aria, minha pequena águia – disse Faronil com a voz fraca. – Não há o que perdoar, você não podia fazer nada e eu precisava salvá-la.

            – Eu amo você muito! Você é o melhor pai.

            – Eu também amo muito você minha pequenina, eu também! – sussurrou Faronil.

            Já havia se passado algum tempo e Faronil já estava desacordado, a respiração dele ficava cada vez mais lenta. A dor no ombro de Aria era muito forte, ela já não aguentava mais. Mas ouviu vozes, talvez fosse uma esperança, talvez pudessem encontrá-los. Aria tentou gritar, mas sua voz não saiu. Sua cabeça foi ficando pesada, ela foi caindo, sua vista ficando escura, e depois não se lembrou de mais nada.

            A única coisa que se lembrava depois que desmaiou foi que havia acordado na casa de seus tios, Palomir e Célia, com um curativo no ombro onde a flecha a havia acertado, e seus tios dizendo que seu pai iria ser enterrado mais tarde naquele dia. Aria chorou muito. Ficou uma semana inteira sem falar com alguém. Mas muitos anos já haviam passado e ela já superara a perda do pai.

            Aquela, sem dúvida, fora a pior caçada de todas. Desde então Aria treinou cada vez mais até que os Gatunos não fossem mais uma ameaça.

            Ela já estava se preparando para partir quando algo lhe chamou a atenção. Um relincho de cavalo, gritos e o som de metal se chocando ecoou pela floresta. Um alvoroço vinha de algum lugar próximo de onde Aria estava. Alguém estava sendo atacado. E Aria sabia quem atacava.

            Ela correu em direção ao som, estava bem próximo. Logo chegou ao local. Havia cinco homens a cavalo, estes lutavam contra os Gatunos. Já havia alguns derrotados, mas outros ainda resistiam. Os cavaleiros estavam com dificuldade para deter os últimos que restavam.

            Aria armou seu arco e começou a atirar nos bandidos, derrubando-os facilmente. O último deles, que estava escondido no alto de uma árvore, pulou em direção ao cavaleiro que estava na frente. Armado com um punhal, o Gatuno estava prestes a cortar o homem a cavalo quando Aria o transpassou com uma flecha na cabeça. O homem caiu morto, antes de alcançar o cavaleiro.

            O homem que estava na frente, que provavelmente era o líder, olhou para os companheiros que o seguiam.

            – Estão todos bem? – ele perguntou.

            Sua voz inspirava autoridade, liderança e força, mas ainda soava gentil e bondosa, Aria notou. Ela já havia percebido que os cavaleiros usavam armaduras e elmos, mas só naquele instante havia notado que eles estavam fortemente armados, como se estivessem prontos para uma batalha.

            – Sem danos, estamos bem – respondeu um dos homens.

            – Que bom! – respirou aliviado o líder.

            Ele então se virou para Aria e tirou o elmo.

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