“Na verdade, não me resta muito tempo. Não faltam muitos dias para você deixar de me ver.”Mas Lúcia não quis nem dar espaço para ele continuar a falar, cortando o assunto sem cerimônia:— Você diz que não está encenando? Tudo bem. Então pode sair agora?— Lúcia, o que você quer para aceitar comer? Você acabou de fazer um transplante de fígado. Não faz tanto tempo assim. Se você não comer, como o seu corpo vai aguentar? — Sílvio franziu as sobrancelhas, a preocupação evidente no rosto. — Você pode brigar comigo, mas não pode brincar com a sua própria saúde.Lúcia, no entanto, não demonstrou nenhuma gratidão:— Fui eu que pedi para fazer essa cirurgia?Claro, a cirurgia aconteceu porque ele a submeteu a isso à força, sem sequer pedir sua permissão. Em certo sentido, ele havia enganado Lúcia.— Não pense que eu não sei o que você está tramando.— Então me diga, o que você acha que eu estou tramando?Sílvio realmente tinha um motivo oculto, mas não o que ela imaginava.— Você só quer me s
Não sabia por quê, mas Sílvio, agora, ao encarar Lúcia, já não sentia a menor vontade de discutir. Talvez fosse porque estava cada vez mais apaixonado por ela. Ou, quem sabe, por saber que seu tempo estava contado e querer aproveitar os últimos dias em paz. Não tinha certeza. Só sabia que sua paciência, antes tão curta, tinha sido completamente moldada por essa mulher.Ela se recusava a comer, e aquilo não poderia continuar. Se ela não ligava para sua própria saúde, ele se importava.Sílvio caminhou até a sala, pegou o maço de cigarros sobre a mesinha de centro, tirou um deles e o colocou entre os lábios. Abaixou-se para acender o isqueiro, fazendo a chama iluminar brevemente seu rosto cansado.Com o cigarro entre os dedos, ele pegou o celular e ligou para Leopoldo:— Chame a Marina para vir cuidar da Sra. Lúcia.— Sim, Sr. Sílvio. O senhor tem uma reunião à tarde. O senhor...— Estou indo agora.Com o cigarro ainda aceso e o celular na mão, Sílvio desceu as escadas. Sabia que não lhe
— A Sra. Lúcia, para que o senhor acordasse, ignorou o corpo debilitado pela cirurgia recente e se ajoelhou repetidamente para rezar por você, até sangrar enquanto lia passagens da Bíblia. Eu não acredito que os sentimentos dela pelo senhor sejam falsos. — Disse Leopoldo.Sílvio ouviu aquilo e soltou um sorriso amargo. Ele também já acreditara nisso um dia. Mas agora, não mais. Lúcia o amava, sim, mas havia uma condição: que ele nunca recuperasse a memória. A Lúcia de agora o via como um monstro, desejando mais que tudo que ele morresse logo.Se ela descobrisse sobre sua doença terminal, provavelmente celebraria com fogos de artifício. Rezar por ele? Isso seria impossível. Porém, ele não a culpava. Tudo era culpa dele.Se soubesse antes o quanto a amava, teria deixado o ódio de lado. E daí se colocasse de lado os rancores passados? Os problemas da geração anterior, por que ele sentiu que precisava se envolver?Agora era tarde demais. Não havia mais tempo.— Sr. Sílvio, mulheres precisa
Sílvio ainda queria falar algo mais.Mas Basílio não estava disposto a ouvir. Seu semblante ficou cada vez mais frio e sério:— Sílvio, Lúcia fez tanto por você. Como você consegue, ao menor problema, empurrá-la para longe? Casais brigam, é normal. Quando isso acontece, você tem que mostrar sinceridade, fazer com que ela veja o quanto você realmente se importa. Você acha que jogando ela para cima de mim, ela vai ficar feliz?Basílio esvaziou o copo de uma só vez e completou:— E mais uma coisa: eu nunca fui um santo. Eu não interfiro na relação de vocês dois porque foi ela quem escolheu você. Não tem nada a ver com meu caráter ou com você.Ele se levantou, pegou o casaco preto no sofá com seus dedos longos e firmes e o apoiou no braço, antes de continuar:— Neste mundo, ninguém tem uma vida fácil. Eu, desde que nasci, sou um bastardo. Minha vida não foi melhor que a sua. E esta é a última vez que vou te avisar, Sílvio: essa é a sua última chance. Se Lúcia realmente desistir de você e m
Sílvio deu um soco no volante com força. Mas, estranhamente, não sentiu dor alguma.[Dirija até o endereço que acabei de te mandar e chame um guincho.]Depois de enviar a mensagem, ele soltou o cinto de segurança e saiu do carro com passos longos e decididos. Encostou-se à porta, olhando para a estrada onde as luzes dos postes formavam sombras intermitentes no asfalto. Respirou fundo e tirou do bolso uma caixa de cigarros. Com um movimento rápido, puxou um cigarro, colocou-o entre os lábios e, com uma mão protegendo a chama e a outra segurando o isqueiro, acendeu-o. Deu uma longa tragada, soltando a fumaça lentamente enquanto permanecia ali, imóvel.Não sabia quanto tempo tinha passado quando uma voz suave e familiar cortou o silêncio:— Sílvio...Ele levantou os olhos, ligeiramente surpreso. Uma conversível parou ao seu lado, revelando Giovana no banco do motorista. Seu cabelo agora era um ondulado volumoso, e a maquiagem discreta dava a ela um ar renovado, bem diferente do que costum
Sílvio abriu a porta do banco do carona, inclinou-se e entrou no carro. Em seguida, virou-se para puxar o cinto de segurança. Ele não fazia ideia de que Giovana, com o celular na mão, tirava uma foto sorrateira da mão dele e a enviava para o WhatsApp de Lúcia.A mensagem, cuidadosamente provocativa, dizia:[Lúcia, o carro do seu marido quebrou no meio do caminho, então eu o estou ajudando a chegar em casa. Não precisa agradecer! Ah, ele também me elogiou, disse que depois da recuperação do meu rosto, estou ainda mais linda.]Depois de afivelar o cinto, Sílvio olhou na direção de Giovana. Ela rapidamente bloqueou a tela do celular e deu partida no carro, dirigindo rumo ao apartamento dele.— Ouvi dizer que Lúcia foi sequestrada pelo seu parceiro de negócios dias atrás? — Perguntou Giovana, tentando puxar assunto.Sílvio respondeu com um murmúrio, claramente tentando manter distância. Nem sequer olhou para ela.— Ela está bem? — Insistiu Giovana, buscando mais alguma reação.— Você gosta
Lúcia sentia-se sufocada por aquela avalanche de pensamentos caóticos. Queria jogar o celular contra a parede, gritar até perder a voz, xingar, destruir algo ou alguém. Mas o silêncio opressor do apartamento vazio, habitado apenas por ela e Marina, não lhe dava espaço para desabafar. Ela sabia que não poderia descontar suas frustrações em Marina, uma mulher não tinha culpa de nada."Como eu pude ser tão idiota?" pensou, o rosto tomado pelo desgosto. A cada lembrança, a vontade de esbofetear a si mesma crescia. Perdera a memória e, ainda assim, permitira-se apaixonar novamente por seu algoz. Sílvio, aquele desgraçado que ela deveria desejar morto. Mas, em vez disso, arriscara a própria vida por ele. Ela fora até a igreja na Serra Encantada, enfrentando um frio cortante e uma nevasca implacável. As trilhas escorregadias da montanha quase a derrubaram inúmeras vezes. Seu corpo acumulava feridas, mas ela insistia, rezando fervorosamente por ele. Até cogitara, em um momento insano, que se
Marina trouxe a ração e voltou para a cozinha, ocupada em terminar o jantar.Lúcia, cansada, observava o papagaio dentro da gaiola. A pequena ave abaixava a cabeça rapidamente, bicando a ração com entusiasmo. A alegria simples e genuína do bichinho a fez esboçar um leve sorriso. O papagaio ergueu a cabecinha e encarou Lúcia com seus olhinhos redondos e atentos.— Não me reconhece mais? — Perguntou Lúcia, sorrindo.A ave começou a pular dentro da gaiola, agitava as asas negras e soltava uma enxurrada de xingamentos contra Sílvio, como se entendesse a conversa.— Sabia que ele é um ingrato e ainda voltou? Não tem medo de nunca mais conseguir sair daqui? — Lúcia murmurou, sem saber se falava consigo mesma ou com o papagaio.Decidida, abriu a porta da gaiola. O papagaio, sem hesitar, voou até a palma da sua mão, encarando-a com um olhar cheio de vivacidade.Lúcia passou os dedos pelas penas macias do topo da cabeça dele e falou, quase num sussurro:— Não gostou do que encontrou lá fora? Po