Lúcia sentia-se sufocada por aquela avalanche de pensamentos caóticos. Queria jogar o celular contra a parede, gritar até perder a voz, xingar, destruir algo ou alguém. Mas o silêncio opressor do apartamento vazio, habitado apenas por ela e Marina, não lhe dava espaço para desabafar. Ela sabia que não poderia descontar suas frustrações em Marina, uma mulher não tinha culpa de nada."Como eu pude ser tão idiota?" pensou, o rosto tomado pelo desgosto. A cada lembrança, a vontade de esbofetear a si mesma crescia. Perdera a memória e, ainda assim, permitira-se apaixonar novamente por seu algoz. Sílvio, aquele desgraçado que ela deveria desejar morto. Mas, em vez disso, arriscara a própria vida por ele. Ela fora até a igreja na Serra Encantada, enfrentando um frio cortante e uma nevasca implacável. As trilhas escorregadias da montanha quase a derrubaram inúmeras vezes. Seu corpo acumulava feridas, mas ela insistia, rezando fervorosamente por ele. Até cogitara, em um momento insano, que se
Marina trouxe a ração e voltou para a cozinha, ocupada em terminar o jantar.Lúcia, cansada, observava o papagaio dentro da gaiola. A pequena ave abaixava a cabeça rapidamente, bicando a ração com entusiasmo. A alegria simples e genuína do bichinho a fez esboçar um leve sorriso. O papagaio ergueu a cabecinha e encarou Lúcia com seus olhinhos redondos e atentos.— Não me reconhece mais? — Perguntou Lúcia, sorrindo.A ave começou a pular dentro da gaiola, agitava as asas negras e soltava uma enxurrada de xingamentos contra Sílvio, como se entendesse a conversa.— Sabia que ele é um ingrato e ainda voltou? Não tem medo de nunca mais conseguir sair daqui? — Lúcia murmurou, sem saber se falava consigo mesma ou com o papagaio.Decidida, abriu a porta da gaiola. O papagaio, sem hesitar, voou até a palma da sua mão, encarando-a com um olhar cheio de vivacidade.Lúcia passou os dedos pelas penas macias do topo da cabeça dele e falou, quase num sussurro:— Não gostou do que encontrou lá fora? Po
Sílvio pensou nisso e o fogo em seu coração se apagou:— Todos têm um dia para morrer. Nós dois também teremos, Lúcia. Tenha paciência, pode ser?— Esse dia está demorando demais.— Não está, não. Piscar os olhos e ele chega.Três meses, talvez seis. Isso não era devagar.Sílvio acreditava que, ao baixar a cabeça e suplicar daquele jeito, ela desistiria de brigar. Mas a Lúcia de hoje era completamente estranha para ele. Ela não conseguia mais compartilhar os sentimentos dele. No fundo de seus olhos, havia apenas desprezo, um frio cortante, e sua voz era ainda mais gélida e aterradora:— Mas eu quero que você morra agora, Sílvio. Você pode fazer isso?O corpo de Sílvio ficou rígido instantaneamente. Ela queria que ele morresse agora. Tanta pressa assim?Lúcia começou a soltar, um por um, os dedos dele que estavam enrolados em seu pulso. Os dedos de Sílvio eram longos, bem definidos, mais bonitos que os de muitas mulheres. Mas isso não mudava o fato de que ele era um homem deplorável.—
Lúcia sentia que sua vida inteira havia sido um verdadeiro fracasso. Não tinha amigos. Aqueles que chegaram perto de ser sua companhia, o destino se encarregou de levá-los cedo demais. Chegar a esse ponto na vida era, no mínimo, uma derrota pessoal.Ela já tivera uma melhor amiga, alguém que fora extremamente importante para ela. Mas Giovana apareceu. Com sua mente afiada e manipulações, Giovana plantou discórdia entre as duas. Aos poucos, a amizade que tanto significava para Lúcia foi se dissolvendo.A amiga, na época, havia alertado Lúcia: não case com Sílvio. Namorar, tudo bem, mas casamento, jamais. A amiga chegou ao ponto de colocar a amizade delas em jogo, tentando protegê-la. Naquele tempo, Lúcia acreditava que era puro preconceito com a origem humilde de Sílvio. Agora, tudo fazia sentido. A amiga tinha uma visão muito mais clara do que ela própria.No dia do casamento, sua melhor amiga estava fora do país e não apareceu. Não houve despedida, nem um abraço final. E assim, a únic
— Já estamos divorciados. — Disse Lúcia, mantendo o tom firme.— Eu sei. Se você quiser ficar com o Basílio, no máximo em seis meses, eu abençoo vocês.Lúcia soltou uma risada sarcástica, irritada com o cinismo de suas palavras. Ele dizia coisas bonitas, simulando sentimentos profundos, mas nunca colocava nada em prática. Enquanto isso, continuava envolvido com Giovana, como se nada estivesse acontecendo.— Sílvio, você realmente perdeu o orgulho? — Lúcia perguntou com ironia.— Abaixar a cabeça por quem a gente ama também é uma forma de felicidade. — Respondeu ele, apertando o cabo da colher com força. Seus olhos fixaram-se nos dela. — Lúcia, você sabia? Eu já não consigo mais viver sem você. Quero deixar você e Basílio ficarem juntos, mas, ao mesmo tempo, não consigo permitir isso. Do jeito que está agora, eu consigo aguentar... Ter você ao meu lado, mesmo por um dia, é como encontrar um pedaço de açúcar no meio de cacos de vidro.Essas palavras chegaram aos ouvidos de Lúcia e causar
A declaração repentina de Lúcia pegou Sílvio de surpresa. Sua mão, que segurava a colher de sopa, parou no ar por um instante. Sua primeira reação foi pensar que tinha ouvido errado.Lúcia dizendo que queria guardar a imagem dele em sua memória? Não fazia sentido. Ela o odiava tanto que parecia desejar sua morte.Mas ele tinha ouvido, sim, aquelas palavras. Talvez fosse porque o caminho que percorreram juntos até ali tinha sido difícil demais. Ou talvez Lúcia já tivesse dito coisas tão cruéis que, ao ouvir aquela frase "Quero me lembrar de como você é". O coração de Sílvio ficou apertado. Os olhos dele se encheram de lágrimas. Será que a sinceridade dela finalmente havia tocado sua alma?Lúcia percebeu a mudança em seu rosto enquanto tomava colheradas da canja de galinha que ele lhe oferecia. Era o sabor de sempre, o preferido dela, mas, naquele momento, parecia insípido.— Sílvio.— Hum?— Seus olhos estão vermelhos.— É porque estou feliz. — Respondeu ele, com a voz embargada, mas su
Lúcia segurava o celular com força, lendo as mensagens provocativas. No entanto, não sentia raiva. Talvez fosse porque estava perto do fim. Seu coração estava incrivelmente calmo.[Foi por causa daquela foto que vocês brigaram?]Continuava Giovana, enviando mensagem atrás de mensagem. [Eu só levei ele pra casa, só isso. Você ainda sente ciúmes? Sílvio nunca vai ser só seu, acorda pra vida!][Olha, se você não se importa, pode me pedir por favor. Quem sabe eu tenha um momento de compaixão e deixe vocês continuarem casados? Quem sabe eu até aceite brincar com vocês dois juntos? Aliás, você devia saber das suas limitações. Na cama, você é péssima, sabia? O Sílvio me disse que você é toda certinha, cheia de vergonha. Viu minha foto? Eu fiz ele se sentir no paraíso. Ele nunca teve isso com você, né?][Ah, o sabor do seu marido é maravilhoso. Daqui a pouco ele chega aqui. Qual sabor de camisinha você acha que combinamos? Comprei de pêssego, menta e morango… E aí? Vocês usavam qual?]As mens
Lúcia terminou de escrever no diário, fechou o caderno e o guardou na gaveta. Depois, girou a chave, trancando-o. Não sabia se Sílvio um dia encontraria aquele caderno com seus registros. E, sinceramente, tanto fazia. Se ele visse ou não, não mudaria nada.Em breve, ela não estaria mais nesse mundo.Lúcia queria partir de forma digna, com a elegância que sempre prezou. Dirigiu-se ao closet e escolheu um vestido de lã branco. Era uma peça especial, um presente de seu pai. Pensou que, se fosse ao encontro dele usando o vestido que ele comprara, talvez ele ficasse feliz. Depois, foi tomar banho e secou os cabelos cuidadosamente com o secador.Do lado de fora, Marina, segurando uma bandeja com a refeição pronta, chegou até a porta do quarto, que estava aberta. Deparou-se com Lúcia sentada em frente à penteadeira, espalhando delicadamente uma loção sobre as bochechas com as pontas dos dedos.Marina parou, perplexa. Era raro ver a Sra. Lúcia se cuidar daquele jeito. Ela esfregou os olhos, ac