Abelardo segurou a caneta esferográfica e escreveu numa folha: [Quero vê-lo. Você pode ajudar a marcar um encontro?] Lúcia observou os olhos do pai, cheios de desejo. Não sabia o que ele pretendia com Sílvio, mas tinha ciência de que esse era um dos poucos desejos que seu pai mencionara.A culpa por ter arruinado a vida de seus pais e da família Baptista pesava sobre ela. Como poderia recusar o único pedido de Abelardo? Lúcia sentia que não tinha como dizer não, mesmo sabendo que um encontro entre eles não seria adequado.Se ao menos soubesse que o encontro no dia seguinte teria consequências tão devastadoras, ela teria feito de tudo para evitar que Sílvio fosse à sua casa no Natal. Mas, infelizmente, a vida não oferece "se", só uma infinidade de imprevistos e sofrimentos.Lúcia piscou os olhos secos. Abelardo escreveu mais uma vez: [Não se preocupe, não vai acontecer nada. O Natal é para ser celebrado em família.] Ela mordeu os lábios, sufocando a dor que sentia, mas ainda assim
Depois de tantas mágoas e desavenças, Lúcia sabia que a compreensão dela e a de seu pai eram incomparáveis. Ela estava ali para transmitir uma mensagem de seu pai, não para brigar. Assim, os punhos cerrados ao seu lado foram lentamente se desfazendo.Lúcia não queria olhar para ele e seus olhos se fixaram na mesa do escritório: — Amanhã você vem em casa para o jantar. Não se atrase. — Assim que terminou, virou-se para sair. — É só esse o seu jeito de me convidar para jantar? — Sílvio riu friamente atrás dela, ressentido com a indiferença que ela demonstrava.Ele não gostava nada daquela atitude fria e do tom arrogante com que ela falava. Lúcia se virou e o encarou: — Sílvio, você deveria saber a hora de parar. — Se eu sou tão insuportável, por que você me convida para comer na sua casa? Para se torturar? — Sílvio estreitou os olhos.Lúcia soltou um resmungo frio: — Foi meu pai quem quis te ver, não eu. A mensagem foi entregue. Se você tiver um mínimo de consciência, saberá como
Sílvio segurou firmemente o braço de Abelardo, estabilizando-o de forma rápida e precisa. No entanto, Abelardo não demonstrou nenhum agradecimento, sua testa franzida e o olhar de desdém deixavam claro o quanto ele não apreciava a ajuda. Com um movimento brusco, ele afastou a mão de Sílvio, lançando-lhe um olhar duro e reprovador.O rosto de Sílvio escureceu instantaneamente. Ele não conseguia acreditar na falta de gratidão daquele velho teimoso.As mãos de Abelardo, secas e envelhecidas, encontraram o apoio da cadeira de rodas, mas logo se esticaram até alcançar uma bengala com a cabeça de um dragão pendurada ao lado. Com esforço, ele começou a caminhar em direção à entrada da casa. Seus movimentos eram lentos, desajeitados, como se a coordenação entre seu corpo e mente estivesse ausente. A bengala foi colocada primeiro no degrau da escada, enquanto ele, com toda a força que ainda lhe restava, segurava firmemente o apoio e levantava um pé com extrema dificuldade, tentando subi-lo n
Abelardo se lembrava da primeira vez que viu Sílvio, quando ele ainda estava no ensino médio.Foi Giovana quem o apresentou, dizendo que Sílvio era talentoso, mas órfão, com os pais falecidos há muito tempo. Comovido pela história, Abelardo decidiu marcar um encontro.Naquele dia, em pleno inverno, a neve cobria o chão. Sílvio não tinha um casaco grosso para se proteger do frio, vestia apenas uma jaqueta jeans fina, calças pretas e um par de tênis desbotados. Seu rosto estava pálido, quase sem cor, por causa do frio.Mas o olhar de Sílvio era firme, e ele mantinha a postura ereta.Naquele momento, Abelardo soube que aquele garoto não era comum, estava certo de que ele teria um grande futuro.Por isso, desde o momento em que o conheceu, Abelardo começou a financiar sua educação e dar-lhe uma mesada, apoiando-o até que se formasse na universidade.Mais tarde, ele conheceu Lúcia.Lúcia se apaixonou por ele à primeira vista. Para se aproximar, insistiu para que Sílvio se tornasse seu segur
Sílvio levantou a mão para se defender, mas a bengala atingiu em cheio sua palma.Ele sentiu uma dor intensa na mão, seguida de um torpor que o deixou completamente insensível, sem nem mesmo perceber a dor.Mas a raiva de Abelardo não passava. Ele pensava na promessa que aquele desgraçado havia feito de cuidar bem de Lúcia, mas, no fim, a empurrou para a beira do desespero, a ponto de ela escrever uma carta de despedida! E ainda teve a audácia de dizer a Giovana que entre ele e Lúcia, só um poderia sobreviver.Esse desgraçado era um lobo em pele de cordeiro. Se não fosse por Abelardo que pagou os estudos, deu oportunidades e permitiu que ele se casasse com Lúcia... Se não fosse pelo amor cego de Lúcia, que não queria outro homem... Onde esse miserável estaria agora?Abelardo se lembrava das palavras de Giovana: eles já tinham até feito fotos para o álbum de casamento! E ele nem havia se divorciado ainda! Como esse homem ousava exibir seu romance com a amante, como se Abelardo estivesse
No entanto, ele havia se apaixonado pela filha de seu inimigo.Agora, Lúcia estava esperando um filho dele.Sílvio não queria mais odiar, nem buscava vingança.Se pudesse, ele desejaria apenas uma vida simples, como a de qualquer pessoa comum, com sua esposa e filho vivendo felizes.Por isso, mesmo que ele decidisse deixar o passado para trás, na mente de Sílvio, Abelardo ainda lhe devia algo.Sílvio olhou para Abelardo com um olhar afiado, como se quisesse matá-lo inúmeras vezes com aquele olhar penetrante.Ele havia decidido que, depois das festas de fim de ano, levaria Lúcia de volta ao apartamento. Quando o bebê nascesse, eles se separariam de Abelardo.Sílvio providenciaria as melhores babás e empregadas para cuidar de Abelardo e, dali em diante, evitaria vê-lo com frequência.Ele acreditava que, com o nascimento da criança, o ódio que sentia diminuiria, e, finalmente, poderia deixar tudo para trás. Lúcia, por sua vez, voltaria a concentrar seu amor na família, deixando Basílio no
Abelardo viu o esforço desesperado de Sílvio para puxá-lo de volta. O rosto de Sílvio estava tomado por preocupação e ansiedade.Naquele momento, Abelardo realmente acreditou que Sílvio queria que ele vivesse.Mas, se ele não tivesse visto a carta de despedida de Lúcia, se não tivesse ouvido as amargas reclamações de sua esposa, se não tivesse presenciado as lágrimas dela…E se não tivesse encontrado Giovana no café, nem tivesse sido humilhado por ela ao levar um banho de café, se não tivesse escutado da própria Giovana que Sílvio já havia tirado fotos de casamento com ela…Talvez, só talvez, Abelardo teria se emocionado com a atuação de Sílvio naquele instante.— Uuuuuuh! Uuuuuuuh! — Abelardo gritou furioso com Sílvio, suas palavras distorcidas pela raiva.Ele, na verdade, queria dizer que estava entregando sua vida a Sílvio, para que ele parasse de atormentar Lúcia! E também deixasse sua esposa em paz!Sílvio, concentrado em puxar Abelardo de volta para a varanda, mal conseguia prest
Abelardo olhou para os traços de Sílvio. Naquele momento, algo dentro dele se acalmou.Mesmo que Sílvio o puxasse para cima, o que isso resolveria?Ele havia atingido o pai de Sílvio com o carro, e, indiretamente, destruído a família dele. Como um ódio tão profundo poderia ser simplesmente esquecido?Se ele continuasse vivo, cada vez que Sílvio o olhasse, seria como uma ferida aberta, uma lembrança constante. E, no final das contas, quem sofreria com isso seria sua filha amada, Lúcia.Lúcia já havia escrito sua carta de despedida! Se ele não morresse, o ciclo de ódio jamais acabaria.Tudo isso era karma. Ele era o culpado desde o início! E agora, ele precisava encerrar essa história.Abelardo piscou, os olhos secos. Olhou para a varanda, onde Sílvio segurava seu pulso com força, recusando-se a soltá-lo. Ele começou a gritar, mas as palavras saíam desconexas.No fundo, ele estava dizendo:“Sílvio, eu te perdoo. Está tudo acabado. Por favor, cuide da minha filha, cuide da minha esposa. C