De verdade, demonstrei um certo descontrole naquele momento. Até porque, se fosse uma brincadeira de mal gosto daquelas duas, elas iam me pagar bem caro.
Com paciência, ele me serviu água e esperou que percebesse que não era nenhuma piada de mal gosto.
— Para completar, só falta o senhor dizer que esse tal avô é rico…
— Mais do que rico. Um dos homens mais ricos do planeta. Dono de vários empreendimentos, inclusive dois hospitais em Seul, os quais ele quer que você administre e atue.
Engasguei e cuspi a água quase toda em cima do homem à minha frente. Era impressionante a resiliência dele. Apenas se enxugou e ofereceu o guardanapo para mim, de novo. Esperou, com paciência, eu respirar. Os olhos vermelhos do engasgo se encheram agora de lágrimas e a cabeça só pensava, que loucura era aquela.
— O senhor é bem direto, não é? Não dá nem tempo para que eu respire e solta tudo de uma só vez. Agora entendo como é ruim ser assim, também costumo ser direta. Desculpe, senhor. Não costumo ser sem educação assim. Estou tentando assimilar, é uma história surreal, sem nexo.
— Mas é a história da sua vida. Seu avô, Kang Ha-Jun, pede apenas que vá à Coreia do Sul e fique ao menos por um ano. Viva esse tempo lá para conhecer sua história.
— Senhor, meu pai era um homem de poucas palavras, porém o pouco que sei é que se apaixonou por uma brasileira, de curvas acentuadas, cabelos castanhos, olhos também castanhos e que para ele tinha o rebolado mais lindo do mundo. Dessa paixão, houve vários conflitos familiares, mas o amor falou mais alto. Ele fugiu com ela para o Brasil, deixando tudo para trás. Fico imaginando o preconceito que mamãe sofreu por parte desse avô que agora quer me conhecer. Repare que meu estereótipo só diz que sou brasileira, com os olhos levemente puxados. Não sou coreana, nunca nem tive vontade de conhecer esse país. Bem que ontem tive uma intuição, tinha mais por trás da história que papai contava, e agora ela chega como uma bomba.
— Por isso fala coreano tão bem e sabe apreciar as tradicionais comidas do café-da-manhã, além de ser cordial, saber um pouco da cultura, etc.
— Isso não diz nada sobre mim, senhor. Sou a Júlia, brasileira, criada aqui, com raízes fortes e fiéis nesse país. Gosto de tudo por aqui. Isso tudo é uma loucura sem fim.
— Eu sei, por isso seu avô deseja se redimir. Não direi que ele está doente fisicamente, pois estaria mentindo, mas ele vive uma doença da alma, um remorso que o corrói durante toda a vida. Ele se arrependeu de fato. Foram trinta anos sem ver o filho. Quando descobriu seu paradeiro, ele já estava morto. Esse fato o mata um pouco a cada dia. A senhorita é a única ligação com o filho que deixou partir.
— É um turbilhão para minha mente, senhor — revelei, permitindo que as lágrimas descessem livremente pelo meu rosto. — Não é nada simples de lidar com a descoberta de que meu pai foi rejeitado por causa do amor.
Deslizei minhas mãos pelo cabelo e prendi-o com um grampo. O calor parecia ainda mais opressivo naquele momento. Minhas mãos tremiam descontroladamente, uma reação natural diante do impacto das informações que havia recebido.
— Min-Ji, examine esses documentos com calma. Deixo-os com você. Compreendo que há muito para assimilar. Se quiser compartilhar uma refeição comigo e ter a oportunidade de conhecer melhor seu tio, estou hospedado no Hilton Barra.
— Não posso prometer nada, mas pelo menos você tem um número no Brasil, certo? — questionei, sem demonstrar real interesse em continuar a conversa com ele.
— Tenho sim.
— Vou repetir e deixar bem claro, não prometo nada, nem se lerei os documentos, mas ao menos por telefone ou mensagem lhe darei uma satisfação até amanhã.
Anotei o número que ele me disse e já me levantei. De pé, antes de me despedir, perguntei:
— O que o senhor sente vontade de comer? Quero dizer, das comidas típicas brasileiras.
— Não sei. Ainda não tive tempo de pesquisar a respeito.
— Ye-Jun, vamos deixar um pouco as formalidades de lado. Aqui é o Brasil, terra da alegria e acolhimento. Somos um povo acolhedor, alegre, apesar das dificuldades, e nos tratamos informalmente. Então, pelo menos aqui, me chame pelo primeiro nome. Preciso pensar em tudo. Eu te ligo para combinarmos algo. Não o deixarei partir sem conhecer um pouco da culinária desse belo país e outras belezas dessa terra também.
— Quando?
— Amanhã, aí aviso o horário. Se eu não tiver nenhuma cirurgia de emergência e resolver ser uma pessoa cordial, passo por volta das dezenove horas no hotel. As palavras jogadas em cima de mim estão fervilhando na mente. Estou sufocada com tanta informação dada de forma tão direta.
— Estarei pronto — disse ele.
— Como sabe que irei? — perguntei.
— Porque você sabe que não sou um vilão e sim alguém que quer te conhecer melhor. Não lembro de meu irmão. E de imediato senti a força do olhar e da empatia dele em você — respondeu ele.
— Se eu for, por favor, sem terno e gravata — pedi.
Apesar de tentar não transmitir, eu estava uma pilha de nervos por dentro. Peguei o grosso envelope e fui para casa, quase correndo.
Desabei no sofá e olhei a foto de papai, mamãe e eu na praia. Olhando para a foto de Don Jun, comecei a conversar com ele.
“Papai, será que devo acreditar em tudo isso? Seu irmão é tão gentil, mas e esse avô… Será que ele realmente se arrependeu? Qual é a verdadeira história entre você, papai, e seus pais? Ah, por que tudo isso está acontecendo comigo? Quanto mais velho o senhor era em relação a esse tio? Ele parece gostar muito do senhor, apesar de ser tão jovem. Mas, claro, o senhor se tornou pai aos dezenove anos. Estou começando a me sentir um pouco louca, falando com uma foto. Papai, estou com medo, mas também extremamente curiosa para desvendar mais sobre minha história…” O que devo fazer? Me envie um sinal, qualquer sinal.
*****
Nem sei descrever o grau de extensão das olheiras na manhã do dia seguinte.
No caminho para o trabalho, tentei não pensar, mas era impossível. Só na rotina do hospital, com vários pacientes para atender e sem tempo para pensar, é que consegui esquecer por um tempo. As meninas me chamaram para sair, mas sem contar ainda o que aconteceu, falei que tinha um compromisso.
A angústia durante todo o dia, enquanto eu estava distraída com os atendimentos, fez eu perceber que resolver isso logo seria a melhor solução. As palavras do papai sempre ecoavam em minha mente, relembrando-me que, em vez de permitir que a ansiedade me dominasse, enfrentar uma decisão de frente era o caminho mais assertivo. Com essa lição em mente, respirei fundo e reuni coragem para agir.
Eram cinco da tarde quando mandei uma mensagem para Kang, Ye-Yun. Marquei de passar às sete no hotel e levá-lo a uma boa noitada carioca. Parei na entrada e vi de longe — graças ao bom Deus — ele não estava de terno, mas lia um livro, bem absorto na leitura. Chamei da porta e ele veio austero. Naquela noite, eu teria que fazer com que ele soubesse e entendesse alguns costumes brasileiros.Quando ele saía pela porta de vidro, cheguei perto e dei dois beijos nele, um em cada bochecha. A vermelhidão do rosto fez-me quase me sentar no meio-fio de tanto rir.— Primeira coisa, senhor tio. No Brasil, somos calorosos e nos cumprimentamos com beijos. Essa é a maneira natural aqui, e não nos preocupamos muito com formalidades, a não ser quando estamos interagindo com pessoas mais velhas, o que não se aplica a você. Não é idoso e, além disso, é meu parente. Portanto, durante nossa convivência, é assim que nos cumprimentaremos.— É algo peculiar.— Com o tempo, você se acostuma. Segunda coisa: te
Ângela era racional, mas dessa vez ela parecia mais indignada que Lorena, a boa romântica. Quando ela ficava nervosa, passava as mãos pelos cabelos.— Júlia, esse Ye-Jun e esse avô, quer que more do outro lado do mundo, por um ano?— Sim, mas, a princípio, nos meus planos, estou indo apenas para conhecê-lo. É a exigência que fiz.— E se esse cara for da máfia e te prender lá? — perguntou Lorena, a sonhadora, viciada em seriados de investigações e mafiosos.— Não. Já li toda a documentação. Ele é dono de hospitais, de agência de talentos, de restaurantes chiques, lojas de departamento. Um monte de coisas. Fiquei até perdida.— Quem está perdida sou eu! — falou Ângela, voltando ao seu normal, a maturidade racionalizada em pessoa, me dando um tapa na cabeça. — É a chance da sua vida. Sair dessa pindaíba. Trabalhar menos. Ter um hospital seu.— Quero vocês lá comigo. Estarei sozinha em um país que jamais imaginei um dia conhecer. Longe, do outro lado do mundo, e com uma cultura de milênio
Quando cheguei no aeroporto na terça-feira pela manhã, os olhos estavam inchados de tanto chorar. Titio fingiu que não viu e me deixou livre para viver aquela tristeza. Embarcamos pontualmente às dez da manhã. O voo se estendia à nossa frente, um trajeto longo e desafiador. Durante essas intermináveis horas no ar, tentei amenizar o cansaço assistindo a filmes, embora o sono tenha sido breve e fragmentado. O impacto da ressaca era inegável; a dor latejante na cabeça era a lembrança palpável da cerveja consumida na noite anterior. Sentia-me ansiosa, na iminência do encontro com meus familiares. Era uma mistura de expectativa e apreensão enquanto voava em direção a uma cultura completamente alheia à minha, tentando afastar momentaneamente a minha realidade.******Apenas após mais de uma hora de voo, o tio, sempre carinhoso, quebrou o silêncio, trazendo à tona minha expressão de tristeza.— Você parece estar com ressaca, Min-Ji. Bebeu demais ontem à noite ou é o peso da saudade?— Um po
Adentrei a sala, onde o patriarca nos esperava com uma expectativa palpável no ar. O pé direito do cômodo, alcançando quase quatro metros de altura, e a decoração meticulosamente combinada, criavam uma atmosfera calorosa e convidativa. O idoso à nossa frente, apesar de não ser tão avançado em idade, apoiava-se levemente em uma bengala. Seus olhos se encheram de lágrimas ao nos ver.— Vejo meu filho em você! — proferiu com um sorriso radiante — Há traços do seu pai em seus traços. É uma beleza.Lancei um olhar significativo ao meu tio, que ao longo desses poucos dias já tinha aprendido a compreender os meus sentimentos não expressos. A vontade que havia sentido antes de abraçar o meu avô, não pude mais conter.— Posso quebrar o protocolo e ser brasileira aqui também? — perguntei, meio envergonhada, voltando-me para o meu tio.Ele assentiu com um sorriso compreensivo. Acredito que, durante os dias que antecederam esse encontro, ele já havia compartilhado algumas das minhas peculiaridade
— Se não ficar, usa no Brasil.— O estilo brasileiro é bem diferente. Lá, prefiro uma calça jeans para o hospital e para sair, vestidos um pouco mais curtos.— Terá que se acostumar com a nossa cultura. Então, por hora, vamos comprar só roupas de inverno mesmo, pois essas não têm como ser curtas. O que acha?— Ótima ideia.*****Um dia de caminhada pela grande metrópole não foi suficiente, mas ainda assim foi um dia excelente. Minha mais nova tia quis me vestir à altura da fortuna de vovô, contudo aceitei apenas algumas roupas, na verdade, vestidos de inverno, que sempre gostei de usar, e lhe mostrei que médico se veste o mais confortável possível.Almoçamos juntas e terminamos o dia em uma cafeteria bem linda. Não tinha café brasileiro, contentei-me com o famoso cappuccino, com espuma por cima e chocolate. Estava uma delícia. Titia aproveitou o momento para fazer algumas perguntas. Não achei isso uma intromissão, pelo contrário, já estava gostando dela. Era estranho sentir essa empa
— No começo, tentou resistir à ideia, mas minha voz continha uma firmeza que ele não podia ignorar. Eventualmente, compreendeu que era o fim. Mesmo que ele tenha lutado contra isso, minha determinação prevaleceu. Afinal, como você disse, meus sentimentos por ele já não eram tão intensos.A garçonete chegou, interrompendo o fluxo das memórias, trazendo consigo um cappuccino quente.— Trouxe o cappuccino que você pediu. Notei que não ficou muito satisfeita com o café gelado, que costumava ser o seu favorito.— Desculpe, tia. No Brasil, somos adeptos de um café forte, encorpado e saboroso. E aquele café gelado definitivamente não atende a essas características.— Não precisa se desculpar. Gosto é subjetivo.— E como mamãe costumava dizer, gosto não se discute.— Voltando ao assunto do namoro. Então, você está solteira agora.— Estou solteira há um bom tempo. Tive alguns relacionamentos mais casuais, como se diz aqui no Brasil, nada muito sério. Foram encontros, apenas isso.— Então você
O motorista pontual já me esperava na porta de entrada do prédio, pronto para abrir a porta do passageiro.— Bom dia, senhora.— Bom dia.— Irei levá-la direto para o hospital, ou quer passar em algum lugar antes?— Na verdade, não tomei café-da-manhã. Preciso comer um pão ou queijo e um café puro mesmo, sem ser gelado. Brasileiro não está acostumado com isso.— Ao lado do hospital tem uma cafeteria bem gostosa. Posso parar lá primeiro antes. Acho que a senhora terá uma agenda cheia. É bom que já conheça onde pode tomar o café ou o lanche da tarde.— O senhor também é muito legal, senhor.A cafeteria era bem agradável, e as coisas eram gostosas, mas tive que comer rápido para não chegar atrasada. Titio já avisara que vovô não gostava de atrasos. Ele me esperava no hall do hospital, que era chiquérrimo por sinal, junto com o patriarca, titio e o diretor do hospital. Todos de terno e gravata. Eu, a simplória neta, de calça jeans, sobretudo e tênis. Roupas bem típicas para um hospital.
Saí e liguei para o meu tio agoniada, que já tinha mandado mais de três mensagens para saber do cliente.— Que agonia é essa?— Ele é meu cantor mais bem pago. Depois, como poderei pagar suas bebidas?— Pare de falar besteira. Você já é rico, porém dinheiro demais não traz felicidade. Fique tranquilo, ele está bem. Está passando por algo que não quis revelar. E não se ofenda com o que vou perguntar, ok? Você, como empresário, não o está pressionando demais? Shows em excesso e uma rotina pesada de ensaios, por exemplo.— Um pouco, mas não é isso. Eu sei o que é, mas deixa para lá.— Bom, quero meu pagamento, não se esqueça disso. Eu cobro e com juros se não estiver dentro do esperado.— Tem um carro à sua espera na entrada e, amanhã, aproveite para comprar um na concessionária.— Vou pensar nisso. Você tem certeza de que vou ficar, não é? Só porque passei trabalhando doze horas hoje no hospital, já fiz cirurgias e ainda atendi um cliente seu. Espere eu dar a resposta, aí penso no carro