Eram cinco da tarde quando mandei uma mensagem para Kang, Ye-Yun. Marquei de passar às sete no hotel e levá-lo a uma boa noitada carioca. Parei na entrada e vi de longe — graças ao bom Deus — ele não estava de terno, mas lia um livro, bem absorto na leitura. Chamei da porta e ele veio austero. Naquela noite, eu teria que fazer com que ele soubesse e entendesse alguns costumes brasileiros.
Quando ele saía pela porta de vidro, cheguei perto e dei dois beijos nele, um em cada bochecha. A vermelhidão do rosto fez-me quase me sentar no meio-fio de tanto rir.— Primeira coisa, senhor tio. No Brasil, somos calorosos e nos cumprimentamos com beijos. Essa é a maneira natural aqui, e não nos preocupamos muito com formalidades, a não ser quando estamos interagindo com pessoas mais velhas, o que não se aplica a você. Não é idoso e, além disso, é meu parente. Portanto, durante nossa convivência, é assim que nos cumprimentaremos.— É algo peculiar.— Com o tempo, você se acostuma. Segunda coisa: tenho um carro coreano, porém não é nada extravagante, e ele é um pouco compacto. Prepare-se para um espaço um pouco apertado, pois me considero alta, mas o senhor não é só alto, é muito alto.— Posso ser rico, mas não sou esnobe. E você não é alta, tem uma estatura mediana.— Boa resposta! Acredito que, com sua gentileza, queria dizer que sou “baixinha”, mas usar o termo “mediana” é mais educado — disse com um sorriso discreto. — E, considerando os padrões brasileiros, mamãe e papai não eram altos; nasci com estatura baixa. Poderia ter puxado ao tio, concorda? Mas não foi o caso.— E a terceira coisa? — perguntou, ajustando o cinto de segurança.— O senhor já ouviu falar de samba, uma dança típica brasileira?— Li um pouco sobre isso.Ri suavemente.— Por mais que tenha lido, não basta. É preciso ver, ouvir e sentir. Vamos jantar em um bar com apresentação de samba. A partir de como se sentir lá, vou decidir se continuo com o senhor até a Coreia do Sul, pelo menos para que possa conhecer vovô.— O que exatamente quer dizer com “se sair bem” lá?— Se você pelo menos tentar dançar o samba e não ficar vermelho, se alguma mulher que eu lhe apresentar lhe der dois beijinhos.No bar, nos sentamos em uma mesa de canto. Pedi bolinho de feijoada frita, tradição carioca, e dei o cardápio em inglês para o tio ler, caso ele fosse jantar.— Min-Ji, me explique, o que é o samba, de onde surgiu?— Bom, vamos lá. O senhor sabe que tivemos escravidão de povos vindos da África e que durou muito, muito tempo, mais de trezentos anos?— Não mesmo, foram séculos.Olhando no celular, nunca fui uma exímia estudante na matéria de história.— O samba teve origem no Rio de Janeiro no início do século XX. É um gênero musical característico, mas se firmou principalmente nas comunidades afro-brasileiras, ou seja, nos descendentes diretos dos primeiros escravos. Inicialmente, era uma dança de roda, acompanhada pelo ritmo pulsante do batuque, aqueles instrumentos no palco estão criando os sons percussivos característicos. Inicialmente, era um ritmo local, limitado a este estado, porém, com o surgimento das escolas de samba, a partir de 1930, ele se difundiu por todo o Brasil.— Os instrumentos são bem diferentes do que conhecemos, pelo menos para mim.— Os instrumentos de percussão são essenciais nas baterias das escolas de samba. Temos pandeiros, surdos, tamborins, cuíca, agogô e outros componentes. A combinação desses sons é verdadeiramente espetacular, pelo menos na minha opinião. Ele é capaz de fazer qualquer brasileiro dançar, e até os estrangeiros não resistem. Aqueles que visitam o Rio de Janeiro, têm o desejo de assistir a um ensaio ou estar em um ambiente como este, um bar desse tipo onde estamos agora. E, é claro, no auge do carnaval, eles querem testemunhar os desfiles magníficos na avenida, repletos de brilho, energia e deslumbrantes alegorias. O grupo musical parece estar prestes a começar. Os membros do grupo de samba já estão se acomodando e ajustando os instrumentos com precisão.— Não me force a aprender isso hoje, por favor — falou o tio com um pedido de misericórdia no rosto.— Estava brincando, jamais faria isso. É demais para um homem que conheci vestindo terno e gravata, em um calor de 40° graus — falei, fazendo chacota daquele tio, antes desconhecido, mas que já estava gostando.— Ainda temos um tempinho antes do início, então acredito que dá para conversarmos sobre os desfiles coloridos que vi na internet. Como eles surgiram?— Ah, claro. Vou explicar o que sei, o que minha mãe me ensinou. As escolas de samba são agremiações tradicionais que tiveram origem na popularidade dos ranchos carnavalescos e dos zé-pereiras, além da crescente popularização do próprio ritmo do samba. O “zé-pereira”, confesso que não sei explicar muito bem, mas os “ranchos” eram basicamente grupos de pessoas que se uniam para realizar desfiles e apresentações. A primeira escola de samba a existir, em 1928, foi a “Deixa Falar”. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1932, e a vencedora foi a Mangueira, uma escola extremamente tradicional até os dias atuais, reconhecida por suas cores verde e rosa.— E elas desfilam apenas para exibir sua beleza?— Não exatamente. Os desfiles são, na verdade, competições. Existem dois grupos principais, o “Acesso” e o “Especial”. Há critérios de avaliação, como a qualidade da música que cantam, a harmonia do conjunto de pessoas que desfilam, as elaboradas fantasias e carros alegóricos conhecidos como alegorias. E claro, o ponto central é a bateria, que produz o som envolvente do samba enquanto repica pela avenida, fazendo o público se levantar e pular de alegria.Não consegui explicar mais a fundo, mas achei que estava bom, afinal, meu conhecimento sobre a história do samba já havia sido compartilhado. O ritmo dos tambores se intensificou, e notei o olhar impressionado de Ye-Ju. O som era alto, algo a que ele não estava acostumado, mas quando encerramos o jantar, ele saiu de lá visivelmente contente. Para não o assustar, evitei cantar ou até mesmo dançar, pois achei que poderia ser um pouco avassalador para ele, pelo menos por enquanto.Na porta do hotel, desci para me despedir.— Tem uma resposta para mim, Min-Ji?— Prometo que amanhã, sem falta, lhe dou uma. Eu juro.— Não precisa jurar. Só insisto, pois não posso ficar muito mais tempo longe dos negócios e seu avô está inquieto.Dei um beijo na bochecha dele. Dessa vez, ele não ficou vermelho, e no ímpeto me puxou para um abraço caloroso. Senti os braços fortes de papai em tio. A energia fraterna transpassou as barreiras do tempo. Não importava o tempo que demorou para nos conhecermos, era o momento certo. Gostei da sensação familiar, do carinho fraternal, do amor naqueles braços.No sábado de manhã, liguei para as duas amigas. Elas não puderam me encontrar na roda de samba na noite anterior, pois tinham outros compromissos, mas as acordei para chamá-las para almoçar na laje do prédio. Para agradar, fiz um almoço divino. Eu gostava de cozinhar, mas não tinha tempo. Elas até estranharam, geralmente eu só ia para a cozinha em ocasiões especiais. Sentamo-nos na laje do prédio e, enquanto comíamos, contei tudo, sem deixar nenhuma vírgula de fora.— Que seriado coreano é esse? Não conheço. E que milagre é esse de você, toda intelectualizada, assistindo K-dramas? — perguntou Ângela rindo.— Fiz a mesma pergunta para Kang, Ye-Jun. Inclusive cuspi, de tanto rir, a água no terno impecável dele. Fiquei tão sem graça depois, mas a história é verídica, acreditem.— Pera aí, você é neta de um milionário? É isso? — indagou Ângela de boca aberta.— Ele disse que eu sou. Decidi nessa noite, vou para Seul na terça-feira. Acho que pela primeira vez viajarei de primeira classe.— E o tal tio já sabe disso?— Ainda não, queria contar tudo para vocês primeiro. Nossa amizade não nasceu em um lugar qualquer, né? Somos amigas de uma vida inteira.— Ainda bem que tem juízo! — Riu Lorena.Ângela era racional, mas dessa vez ela parecia mais indignada que Lorena, a boa romântica. Quando ela ficava nervosa, passava as mãos pelos cabelos.— Júlia, esse Ye-Jun e esse avô, quer que more do outro lado do mundo, por um ano?— Sim, mas, a princípio, nos meus planos, estou indo apenas para conhecê-lo. É a exigência que fiz.— E se esse cara for da máfia e te prender lá? — perguntou Lorena, a sonhadora, viciada em seriados de investigações e mafiosos.— Não. Já li toda a documentação. Ele é dono de hospitais, de agência de talentos, de restaurantes chiques, lojas de departamento. Um monte de coisas. Fiquei até perdida.— Quem está perdida sou eu! — falou Ângela, voltando ao seu normal, a maturidade racionalizada em pessoa, me dando um tapa na cabeça. — É a chance da sua vida. Sair dessa pindaíba. Trabalhar menos. Ter um hospital seu.— Quero vocês lá comigo. Estarei sozinha em um país que jamais imaginei um dia conhecer. Longe, do outro lado do mundo, e com uma cultura de milênio
Quando cheguei no aeroporto na terça-feira pela manhã, os olhos estavam inchados de tanto chorar. Titio fingiu que não viu e me deixou livre para viver aquela tristeza. Embarcamos pontualmente às dez da manhã. O voo se estendia à nossa frente, um trajeto longo e desafiador. Durante essas intermináveis horas no ar, tentei amenizar o cansaço assistindo a filmes, embora o sono tenha sido breve e fragmentado. O impacto da ressaca era inegável; a dor latejante na cabeça era a lembrança palpável da cerveja consumida na noite anterior. Sentia-me ansiosa, na iminência do encontro com meus familiares. Era uma mistura de expectativa e apreensão enquanto voava em direção a uma cultura completamente alheia à minha, tentando afastar momentaneamente a minha realidade.******Apenas após mais de uma hora de voo, o tio, sempre carinhoso, quebrou o silêncio, trazendo à tona minha expressão de tristeza.— Você parece estar com ressaca, Min-Ji. Bebeu demais ontem à noite ou é o peso da saudade?— Um po
Adentrei a sala, onde o patriarca nos esperava com uma expectativa palpável no ar. O pé direito do cômodo, alcançando quase quatro metros de altura, e a decoração meticulosamente combinada, criavam uma atmosfera calorosa e convidativa. O idoso à nossa frente, apesar de não ser tão avançado em idade, apoiava-se levemente em uma bengala. Seus olhos se encheram de lágrimas ao nos ver.— Vejo meu filho em você! — proferiu com um sorriso radiante — Há traços do seu pai em seus traços. É uma beleza.Lancei um olhar significativo ao meu tio, que ao longo desses poucos dias já tinha aprendido a compreender os meus sentimentos não expressos. A vontade que havia sentido antes de abraçar o meu avô, não pude mais conter.— Posso quebrar o protocolo e ser brasileira aqui também? — perguntei, meio envergonhada, voltando-me para o meu tio.Ele assentiu com um sorriso compreensivo. Acredito que, durante os dias que antecederam esse encontro, ele já havia compartilhado algumas das minhas peculiaridade
— Se não ficar, usa no Brasil.— O estilo brasileiro é bem diferente. Lá, prefiro uma calça jeans para o hospital e para sair, vestidos um pouco mais curtos.— Terá que se acostumar com a nossa cultura. Então, por hora, vamos comprar só roupas de inverno mesmo, pois essas não têm como ser curtas. O que acha?— Ótima ideia.*****Um dia de caminhada pela grande metrópole não foi suficiente, mas ainda assim foi um dia excelente. Minha mais nova tia quis me vestir à altura da fortuna de vovô, contudo aceitei apenas algumas roupas, na verdade, vestidos de inverno, que sempre gostei de usar, e lhe mostrei que médico se veste o mais confortável possível.Almoçamos juntas e terminamos o dia em uma cafeteria bem linda. Não tinha café brasileiro, contentei-me com o famoso cappuccino, com espuma por cima e chocolate. Estava uma delícia. Titia aproveitou o momento para fazer algumas perguntas. Não achei isso uma intromissão, pelo contrário, já estava gostando dela. Era estranho sentir essa empa
— No começo, tentou resistir à ideia, mas minha voz continha uma firmeza que ele não podia ignorar. Eventualmente, compreendeu que era o fim. Mesmo que ele tenha lutado contra isso, minha determinação prevaleceu. Afinal, como você disse, meus sentimentos por ele já não eram tão intensos.A garçonete chegou, interrompendo o fluxo das memórias, trazendo consigo um cappuccino quente.— Trouxe o cappuccino que você pediu. Notei que não ficou muito satisfeita com o café gelado, que costumava ser o seu favorito.— Desculpe, tia. No Brasil, somos adeptos de um café forte, encorpado e saboroso. E aquele café gelado definitivamente não atende a essas características.— Não precisa se desculpar. Gosto é subjetivo.— E como mamãe costumava dizer, gosto não se discute.— Voltando ao assunto do namoro. Então, você está solteira agora.— Estou solteira há um bom tempo. Tive alguns relacionamentos mais casuais, como se diz aqui no Brasil, nada muito sério. Foram encontros, apenas isso.— Então você
O motorista pontual já me esperava na porta de entrada do prédio, pronto para abrir a porta do passageiro.— Bom dia, senhora.— Bom dia.— Irei levá-la direto para o hospital, ou quer passar em algum lugar antes?— Na verdade, não tomei café-da-manhã. Preciso comer um pão ou queijo e um café puro mesmo, sem ser gelado. Brasileiro não está acostumado com isso.— Ao lado do hospital tem uma cafeteria bem gostosa. Posso parar lá primeiro antes. Acho que a senhora terá uma agenda cheia. É bom que já conheça onde pode tomar o café ou o lanche da tarde.— O senhor também é muito legal, senhor.A cafeteria era bem agradável, e as coisas eram gostosas, mas tive que comer rápido para não chegar atrasada. Titio já avisara que vovô não gostava de atrasos. Ele me esperava no hall do hospital, que era chiquérrimo por sinal, junto com o patriarca, titio e o diretor do hospital. Todos de terno e gravata. Eu, a simplória neta, de calça jeans, sobretudo e tênis. Roupas bem típicas para um hospital.
Saí e liguei para o meu tio agoniada, que já tinha mandado mais de três mensagens para saber do cliente.— Que agonia é essa?— Ele é meu cantor mais bem pago. Depois, como poderei pagar suas bebidas?— Pare de falar besteira. Você já é rico, porém dinheiro demais não traz felicidade. Fique tranquilo, ele está bem. Está passando por algo que não quis revelar. E não se ofenda com o que vou perguntar, ok? Você, como empresário, não o está pressionando demais? Shows em excesso e uma rotina pesada de ensaios, por exemplo.— Um pouco, mas não é isso. Eu sei o que é, mas deixa para lá.— Bom, quero meu pagamento, não se esqueça disso. Eu cobro e com juros se não estiver dentro do esperado.— Tem um carro à sua espera na entrada e, amanhã, aproveite para comprar um na concessionária.— Vou pensar nisso. Você tem certeza de que vou ficar, não é? Só porque passei trabalhando doze horas hoje no hospital, já fiz cirurgias e ainda atendi um cliente seu. Espere eu dar a resposta, aí penso no carro
O motorista ia me levar diretamente para o apartamento, mas resolvi parar à beira do rio Han e caminhar. Admirando as águas gélidas do rio Han (Han-gang), que banhava a cidade de Seul, e não pude evitar sentir uma mistura de encanto e fascínio. A intensidade e beleza daquela cidade tecnológica e, ao mesmo tempo, tão prosaica e antiga, já me conquistava profundamente.Enquanto a correnteza fluía serenamente diante dos meus olhos, eu me vi envolta em uma atmosfera única, onde o passado e o presente se fundiam de forma harmoniosa. Os arranha-céus modernos se erguiam majestosamente, contrastando com a arquitetura tradicional, repleta de palácios e templos, que testemunharam séculos de história.O reflexo do sol nas águas do rio criava uma miríade de brilhos que dançavam em sincronia com a cidade. Era como se Seul estivesse viva, pulsando com sua energia vibrante e, ao mesmo tempo, abraçando suas raízes culturais com orgulho.Distraída, senti o telefone vibrar. O susto foi completo quando