Quando cheguei no aeroporto na terça-feira pela manhã, os olhos estavam inchados de tanto chorar. Titio fingiu que não viu e me deixou livre para viver aquela tristeza.
Embarcamos pontualmente às dez da manhã. O voo se estendia à nossa frente, um trajeto longo e desafiador. Durante essas intermináveis horas no ar, tentei amenizar o cansaço assistindo a filmes, embora o sono tenha sido breve e fragmentado. O impacto da ressaca era inegável; a dor latejante na cabeça era a lembrança palpável da cerveja consumida na noite anterior. Sentia-me ansiosa, na iminência do encontro com meus familiares. Era uma mistura de expectativa e apreensão enquanto voava em direção a uma cultura completamente alheia à minha, tentando afastar momentaneamente a minha realidade.******
Apenas após mais de uma hora de voo, o tio, sempre carinhoso, quebrou o silêncio, trazendo à tona minha expressão de tristeza.
— Você parece estar com ressaca, Min-Ji. Bebeu demais ontem à noite ou é o peso da saudade?— Um pouco de ambas as coisas. A noite anterior foi regada a muita cerveja, e dizer adeus às minhas amigas por um mês não é nada fácil. Elas são amigas desde a infância, companheiras de uma vida inteira. Até mesmo em viagens em família, como aquelas à praia, costumávamos estar juntas.— Estamos fazendo uma escala em Doha. Aproveite para descansar mais um pouco. Assim que estivermos prestes a aterrissar, vou te acordar para a troca de avião.*****A conexão foi rápida, nem deu tempo de ver a beleza do aeroporto de Doha, no Qatar. Ficou para uma próxima vez. Embarcamos, agora, rumo a Seul, e o frio na barriga parecia aumentar a cada minuto. Mais uma sessão de filmes, um drink sem álcool, mas ao anunciarem que tínhamos mais uma hora e meia de voo, o avião já estava em procedimento de descida. Para finalizar, uma taça de champanhe.*****
Pousamos às 08:00 da manhã, horário local, no aeroporto internacional de Seul. As roupas grossas de inverno já estavam separadas, mas as poucas que tinha não foram muito bem qualificadas, então as novas, entregues por dois seguranças, foram bem-vindas. Senti o vento frio do inverno no saguão do terminal.— Está tudo bem, Mi-Ji? — perguntou titio, preocupado.— Ótimo. Tudo tranquilo. Estou saindo de um calor de quarenta graus para um frio de rachar, mas está tudo bem. Está fazendo apenas quatro graus Celsius, mas agora, estando bem-vestida, tudo certo! O corpo se acostuma, tenho certeza. Frio é psicológico. Ele riu, a empatia entre nós dois começou, mesmo quando achei estranha a presença daquele homem de terno e gravata, sentado no hall do prédio onde morava. São aqueles encontros inexplicáveis, em que parece que as almas se comunicam. Foi exatamente isso que aconteceu.— Ye-Jun, você tem ideia de como meus pais se conheceram? Mamãe trabalhava na mansão?— Seria muita coincidência e destino — disse, dando uma gargalhada. — Sua mãe veio estudar na Coreia do Sul. A parte que sei da história é que ela tinha o sonho de estudar nosso idioma difícil.— Mamãe, estudar um idioma só por ser difícil? Acho que tem caroço nesse angu.Essa última parte falei em português e, lógico, que titio ficou super curioso, mas eu jamais saberia como traduzir um ditado popular brasileiro.— O que disse, por último?— Não sei se consigo uma boa tradução para o coreano. Vejamos se consigo, titio. “Ter caroço nesse angu” é um ditado popular brasileiro. Sugere que, na história toda que mencionou, há mais coisas ocultas do que apenas a intenção aparente de vir para a Coreia do Sul para estudar coreano. Em outras palavras, as coisas não são tão simples como parecem à primeira vista.No carro confortável, eu, como boa brasileira, já quis conversar com o motorista. — Bom dia, senhor. Como vai?A resposta com gesto fez com que me calasse. Ele mal me olhava, então deixei para lá, por enquanto, depois eles se acostumariam comigo. O motorista nos conduziu por avenidas largas, onde o trânsito caótico parecia definir o ritmo frenético daquela metrópole, que abrigava quase nove milhões de habitantes.Após quarenta minutos de trajeto, atravessamos um imponente portão de ferro. Imagine aquelas mansões majestosas, com um chafariz imponente na entrada. Era exatamente o que se apresentava diante de nós, embora a casa não fosse de estilo vitoriano, mas sim uma interpretação moderna. Um contraste visual que instantaneamente chamou a atenção.— Uau, que contraste magnífico. Uma arquitetura moderna em meio à essência única do estilo coreano. Simplesmente deslumbrante.
— Você gostou? Não quer reconsiderar e ficar aqui? Temos quartos de sobra, todos muito confortáveis. — Não. Quero ficar em Seul, próxima da balada — falei rindo.— Baladas? Lembre-se, aqui as baladas são diferentes, não têm samba, certo?— Com certeza não. A não ser que encontre brasileiros vivendo aqui e que tragam a cultura junto com eles. Acho pouco provável.A governanta é uma mulher linda, que não era alta, mas mediana, como disse um dia Ye-Jun, cabelos lisos, longos, um sorriso de cair o queixo e os olhos grandes, apesar de puxados, nos aguardavam na porta. Fiz os cumprimentos e sorri com empatia.— Essa é Kang, Mi-ji — titio me apresentou, antes mesmo de beijar a esposa.— Sou Seo-Yun, a esposa de seu tio.Olhei para ele sorrindo.— Você realmente tem um ótimo gosto, não é? Sabia que não me desapontaria. Que mulher linda e elegante, com um olhar genuíno. Gostei da escolha! O senhor tem um excelente gosto. Além disso, sua esposa é tão deslumbrante que faria o trânsito parar.— Você é uma comediante nata… — ele me olhou com um sorriso envergonhado. Vamos entrar, seu avô está nos esperando.Embora estivesse rindo da expressão constrangida do meu tio, a ansiedade se fez presente, pulsando forte em meu peito. — Agora me deu um frio na barriga. E até vontade de ir ao banheiro. Dessa vez, estou falando sério, mas vou me aguentar.— Ele não é o bicho-papão. É um senhor idoso, amargurado pela dor, e quer se redimir.
A vontade era de abraçar, mas o correto ali era me manter mais afastada, sem muitos gestos de carinho, o que não durou nem dez minutos.Adentrei a sala, onde o patriarca nos esperava com uma expectativa palpável no ar. O pé direito do cômodo, alcançando quase quatro metros de altura, e a decoração meticulosamente combinada, criavam uma atmosfera calorosa e convidativa. O idoso à nossa frente, apesar de não ser tão avançado em idade, apoiava-se levemente em uma bengala. Seus olhos se encheram de lágrimas ao nos ver.— Vejo meu filho em você! — proferiu com um sorriso radiante — Há traços do seu pai em seus traços. É uma beleza.Lancei um olhar significativo ao meu tio, que ao longo desses poucos dias já tinha aprendido a compreender os meus sentimentos não expressos. A vontade que havia sentido antes de abraçar o meu avô, não pude mais conter.— Posso quebrar o protocolo e ser brasileira aqui também? — perguntei, meio envergonhada, voltando-me para o meu tio.Ele assentiu com um sorriso compreensivo. Acredito que, durante os dias que antecederam esse encontro, ele já havia compartilhado algumas das minhas peculiaridade
— Se não ficar, usa no Brasil.— O estilo brasileiro é bem diferente. Lá, prefiro uma calça jeans para o hospital e para sair, vestidos um pouco mais curtos.— Terá que se acostumar com a nossa cultura. Então, por hora, vamos comprar só roupas de inverno mesmo, pois essas não têm como ser curtas. O que acha?— Ótima ideia.*****Um dia de caminhada pela grande metrópole não foi suficiente, mas ainda assim foi um dia excelente. Minha mais nova tia quis me vestir à altura da fortuna de vovô, contudo aceitei apenas algumas roupas, na verdade, vestidos de inverno, que sempre gostei de usar, e lhe mostrei que médico se veste o mais confortável possível.Almoçamos juntas e terminamos o dia em uma cafeteria bem linda. Não tinha café brasileiro, contentei-me com o famoso cappuccino, com espuma por cima e chocolate. Estava uma delícia. Titia aproveitou o momento para fazer algumas perguntas. Não achei isso uma intromissão, pelo contrário, já estava gostando dela. Era estranho sentir essa empa
— No começo, tentou resistir à ideia, mas minha voz continha uma firmeza que ele não podia ignorar. Eventualmente, compreendeu que era o fim. Mesmo que ele tenha lutado contra isso, minha determinação prevaleceu. Afinal, como você disse, meus sentimentos por ele já não eram tão intensos.A garçonete chegou, interrompendo o fluxo das memórias, trazendo consigo um cappuccino quente.— Trouxe o cappuccino que você pediu. Notei que não ficou muito satisfeita com o café gelado, que costumava ser o seu favorito.— Desculpe, tia. No Brasil, somos adeptos de um café forte, encorpado e saboroso. E aquele café gelado definitivamente não atende a essas características.— Não precisa se desculpar. Gosto é subjetivo.— E como mamãe costumava dizer, gosto não se discute.— Voltando ao assunto do namoro. Então, você está solteira agora.— Estou solteira há um bom tempo. Tive alguns relacionamentos mais casuais, como se diz aqui no Brasil, nada muito sério. Foram encontros, apenas isso.— Então você
O motorista pontual já me esperava na porta de entrada do prédio, pronto para abrir a porta do passageiro.— Bom dia, senhora.— Bom dia.— Irei levá-la direto para o hospital, ou quer passar em algum lugar antes?— Na verdade, não tomei café-da-manhã. Preciso comer um pão ou queijo e um café puro mesmo, sem ser gelado. Brasileiro não está acostumado com isso.— Ao lado do hospital tem uma cafeteria bem gostosa. Posso parar lá primeiro antes. Acho que a senhora terá uma agenda cheia. É bom que já conheça onde pode tomar o café ou o lanche da tarde.— O senhor também é muito legal, senhor.A cafeteria era bem agradável, e as coisas eram gostosas, mas tive que comer rápido para não chegar atrasada. Titio já avisara que vovô não gostava de atrasos. Ele me esperava no hall do hospital, que era chiquérrimo por sinal, junto com o patriarca, titio e o diretor do hospital. Todos de terno e gravata. Eu, a simplória neta, de calça jeans, sobretudo e tênis. Roupas bem típicas para um hospital.
Saí e liguei para o meu tio agoniada, que já tinha mandado mais de três mensagens para saber do cliente.— Que agonia é essa?— Ele é meu cantor mais bem pago. Depois, como poderei pagar suas bebidas?— Pare de falar besteira. Você já é rico, porém dinheiro demais não traz felicidade. Fique tranquilo, ele está bem. Está passando por algo que não quis revelar. E não se ofenda com o que vou perguntar, ok? Você, como empresário, não o está pressionando demais? Shows em excesso e uma rotina pesada de ensaios, por exemplo.— Um pouco, mas não é isso. Eu sei o que é, mas deixa para lá.— Bom, quero meu pagamento, não se esqueça disso. Eu cobro e com juros se não estiver dentro do esperado.— Tem um carro à sua espera na entrada e, amanhã, aproveite para comprar um na concessionária.— Vou pensar nisso. Você tem certeza de que vou ficar, não é? Só porque passei trabalhando doze horas hoje no hospital, já fiz cirurgias e ainda atendi um cliente seu. Espere eu dar a resposta, aí penso no carro
O motorista ia me levar diretamente para o apartamento, mas resolvi parar à beira do rio Han e caminhar. Admirando as águas gélidas do rio Han (Han-gang), que banhava a cidade de Seul, e não pude evitar sentir uma mistura de encanto e fascínio. A intensidade e beleza daquela cidade tecnológica e, ao mesmo tempo, tão prosaica e antiga, já me conquistava profundamente.Enquanto a correnteza fluía serenamente diante dos meus olhos, eu me vi envolta em uma atmosfera única, onde o passado e o presente se fundiam de forma harmoniosa. Os arranha-céus modernos se erguiam majestosamente, contrastando com a arquitetura tradicional, repleta de palácios e templos, que testemunharam séculos de história.O reflexo do sol nas águas do rio criava uma miríade de brilhos que dançavam em sincronia com a cidade. Era como se Seul estivesse viva, pulsando com sua energia vibrante e, ao mesmo tempo, abraçando suas raízes culturais com orgulho.Distraída, senti o telefone vibrar. O susto foi completo quando
Eu não queria acordar, de jeito nenhum! O sonho era divino. Estava na praia sendo beijada por um homem lindo, como em um comercial. A alegria daquela visão durou até o despertador tocar no momento crucial. Desliguei o alarme e levantei rapidamente. Precisava estudar. No domingo mesmo, peguei um livro de farmacologia na biblioteca do hospital e o devorei pela manhã. Nem saí para almoçar. Estava tão preocupada com as diferenças de medicamentos que nem lembrei de estar com fome, apenas lia e relia princípios ativos importantes.Como combinado, liguei para as meninas e só nessa hora peguei o celular e vi a mensagem de bom dia do cantor estonteante.— Oi, bom dia. Como foi a sua noite?— Oi, tudo bem? Estou com vergonha, só agora vi sua mensagem. Passei a manhã inteira estudando.Respondi sem graça, pedindo mil desculpas por não ter visto antes.Para não ficar ansiosa e também porque já estava atrasada, não esperei a resposta e chamei as morenas mais bonitas da minha vida para um vídeo. T
Perdi a noção do tempo, sobretudo porque já estava no segundo cateterismo quando recebi a mensagem da enfermeira de que meu tio me aguardava no refeitório. Terminado o procedimento, cheguei ao local e tirei a touca da cabeça. Ele estava de costas, tomando um suco.— Oi, titio lindo.Ele me olhou e acompanhei seu olhar especulativo.— Estranhou a vestimenta? A vida de um médico é assim. Estava no centro cirúrgico. Estou com roupa apropriada, não tive tempo de tirar, desculpe.— Você está com sangue respingado na roupa.— Ah, isso é normal.— Tem como se trocar para almoçar comigo, por favor?— Não sei se quero almoçar, temos muitos pacientes hoje — respondi com um sorriso radiante, por estar fazendo o que amo.— Agora, Min-Ji.Murchei e não disse mais nada. Em um bom português, saí com o rabinho entre as pernas. Ele sabia mandar sem ser grosso. Saí e retornei pouco depois com a roupa normal e jaleco branco. A comida já estava na mesa.— Por que está bravo comigo?— Porque no primeiro