"As despedidas nunca são fáceis"

Ângela era racional, mas dessa vez ela parecia mais indignada que Lorena, a boa romântica. Quando ela ficava nervosa, passava as mãos pelos cabelos.

— Júlia, esse Ye-Jun e esse avô, quer que more do outro lado do mundo, por um ano?

— Sim, mas, a princípio, nos meus planos, estou indo apenas para conhecê-lo. É a exigência que fiz.

— E se esse cara for da máfia e te prender lá? — perguntou Lorena, a sonhadora, viciada em seriados de investigações e mafiosos.

— Não. Já li toda a documentação. Ele é dono de hospitais, de agência de talentos, de restaurantes chiques, lojas de departamento. Um monte de coisas. Fiquei até perdida.

— Quem está perdida sou eu! — falou Ângela, voltando ao seu normal, a maturidade racionalizada em pessoa, me dando um tapa na cabeça. — É a chance da sua vida. Sair dessa pindaíba. Trabalhar menos. Ter um hospital seu.

— Quero vocês lá comigo. Estarei sozinha em um país que jamais imaginei um dia conhecer. Longe, do outro lado do mundo, e com uma cultura de milênios de distância da nossa.

— Criatura, nós somos brasileiras. Arrume a sua vida, depois quem sabe arrumamos uma maneira de ir, nem que seja só para passear. Não a esqueceremos. Talvez seja mais fácil você nos esquecer. — Agora, quem levou o tapa na cabeça foi Ângela, quando disse essa última asneira.

— Não sei explicar, mas estou com um aperto no peito. Acho que é medo do desconhecido, mas, ao mesmo tempo, penso que não. Aff!

— Ah, vocês com essa mania de aperto no peito, intuição. Viva e pense depois. — disse Ângela, que até acreditava em Deus, tal como uma energia cósmica, diríamos assim, mas em coisas holísticas jamais.

— Querem ir comigo ao Arpoador? Vou levar titio para ver o pôr-do-sol.

— Titio é solteiro? — perguntou Ângela, a caça-marido, outra grande característica de minha amiga.

— Não. Casado. Dois filhos.

— Então não. Aproveite.

Olhei ao redor da cidade e fiquei pensativa.

— Não fique pensativa. A decisão está tomada. Se j**a, deixe as ondas do mar te levarem para o mar da Coreia do Sul — falou Ângela.

— Até parece que não me conhecem. Eu vou, e quando decido algo, não volto atrás. Só sentirei muita saudade, mesmo que fique apenas um mês.

— Não acredito que ficará só um mês — reforçou Lorena — quando você entrar no hospital de lá, só vejo a Júlia médica palpitar o coração de emoção.

— Hum… veremos.

Deixei as duas no apartamento que dividiam, que não era longe de casa, e passei para pegar o tio. Nós dois ficamos na pedra e esperamos o momento de contemplação divina, quando os raios de sol foram se perdendo na imensidão do oceano. O tom amarelo-avermelhado da água do mar fez Ye-jun ficar extasiado. Ele tirou uma foto nossa e depois fiquei sabendo que enviou para o pai. Naquele mesmo dia, o senhor Kang, Ha-Jun, chorou. Por mais que eu tivesse o estereótipo mais brasileiro, os traços de meu pai estavam em meu rosto, e a foto, com sorriso largo, o fez sentir a dor da perda mais uma vez.

*****

Passei o domingo arrumando as coisas. Já tinha viajado para o Chile em pleno inverno, então pelo menos um sobretudo, luvas e gorro eu tinha para enfrentar o rigoroso inverno coreano. Procurei a previsão do tempo e, como era janeiro, poderia até nevar.

*****

Na segunda-feira, fui ao hospital assinar as férias. Esse foi outro problema a ser enfrentado. Não queria contar a verdade para o diretor do hospital, um ex-professor da faculdade que assumiu o cargo há mais de dois anos e tinha total confiança em deixar a ala da emergência comigo e as outras duas doutoras.

Na sala dele, tentei explicar que precisava de umas férias, mas ele não entendia.

— Júlia, você tirou férias em julho, quinze dias. Esse hospital está abarrotado de pessoas o dia todo. Confio nas meninas, mas vocês são um trio: uma cirurgiã cardíaca, a outra geral, e a outra neurologista. Não posso te dar outras férias. Quando chegou, por acaso, deu uma olhada na quantidade de pessoas esperando atendimento, além das cirurgias agendadas? Estamos sem leitos, tem pessoas em macas espalhadas pelo corredor, e você vem me pedir férias?

— Doutor Márcio, é um caso de vida ou morte. — Supliquei.

— Você está doente? Precisa realizar algum tratamento? Se for isso, indicarei os melhores médicos.

— Ai, Jesus, vou ter que contar a verdade — falei baixinho, mas ele escutou.

— Que verdade, doutora Júlia? Diga e espero me convencer, pois cuidar de mais de quinhentos atendimentos por dia não é brincadeira, e estamos com falta de profissionais, e sabe muito bem disso. Tem que ser algo muito, mas muito sério.

— Já sei, então ouça com atenção e não surta, por favor.

Após contar tudo, a reação dele já era esperada.

— O quê?

— É exatamente como você ouviu. Decidi que amanhã irei com o irmão do meu pai para a Coreia do Sul, finalmente conhecerei meu avô. Por isso, estou requisitando as férias atrasadas do ano passado, trinta dias, por favor. Essa é a oportunidade que nunca imaginei ter, de conhecer uma parte da família que sequer sabia que existia.

— Compreendo que o nosso sistema de saúde está passando por um momento difícil: poucos médicos, todos exaustos e sobrecarregados, e agora uma das melhores profissionais do hospital está prestes a partir… Não sei o que farei. Honestamente, acho que minha única saída é confiar em Deus e entregar a Ele esse novo desafio.

— Ainda estou indecisa sobre a duração da minha ausência, talvez até menos de trinta dias. E, doutor, entre os médicos sobrecarregados, estou incluída nesse grupo. Nos últimos quinze dias, já enfrentei dois plantões de trinta e seis horas cada. Também preciso de um pouco de compreensão. Parece que apenas os outros médicos são valorizados.

— Não, minha querida, não é por isso. É porque você, junto com as outras duas, são excelentes profissionais, apesar de serem mais jovens. Espero que a decisão seja tomada em breve, se você ficará ou não mais tempo.

— Assim que eu decidir, prometo que você será o primeiro a saber.

— Bem, então vou solicitar médicos de outras unidades hoje mesmo e iniciar um processo para contratar profissionais temporários. Aproveite essa oportunidade que a vida está lhe proporcionando, mas, por favor, volte. Afinal, você é brasileira, ama o samba e o Rio de Janeiro.

Abracei o médico, que também era meu mentor e um professor muito respeitado na faculdade de medicina.— Serei egoísta ao pedir isso, mas por favor, volte. Mesmo que seja uma oportunidade incrível — o médico disse, apertando-me ainda mais em seus braços.

Decidi não retirar minhas coisas do armário por enquanto, afinal, eram apenas férias. 

*****

À noite, as meninas voltaram para casa após uma noitada de bebidas, conversas, músicas e um forte sentimento de saudade.

*****

Chamei meu tio, mas ele optou por ficar no hotel. Alegou estar trabalhando online. Após sairmos do hospital, seguimos direto para minha casa. Entre roupas desordenadas no chão e sapatos espalhados, preparei alguns petiscos e servimos cerveja, prolongando nossa noite até quase meia-noite.

— Você vai viajar com todo o conforto, na primeira classe, hein — comentou Lorena, já com um certo estado de embriaguez perceptível. Sempre foi a mais sensível quando se tratava de bebida.

— Sim, mas acho que é melhor tirar essa cerveja da sua mão, senão amanhã o hospital terá uma médica com cheiro de álcool.

— Ah, vocês sabem que eu sou fraca para bebida, mas nunca me deixei abater. E hoje é uma ocasião especial, merece ser celebrada. Vamos ficar sem nos ver durante um tempo, talvez até um longo período.

— Apesar de ser um momento especial, os pacientes certamente não desejam encontrar uma médica com odor de álcool amanhã no hospital. Por isso, creio que é hora de irmos embora — chamou Ângela, com um tom de sensatez.

— Ah, ainda nem chegou à meia-noite. Fiquem mais um pouco, por favor.

— Júlia, vá em paz. As despedidas nunca são fáceis. E você, dona Lorena, poderia nos ajudar não chorando tanto. Então, nos dê um abraço apertado e vá descansar. Te amamos muito, onde quer que esteja.

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