— Sem problema, senhorita Kang. A que horas podemos tomar o desjejum e onde?
— Nesse mesmo restaurante que o senhor mencionou. Às oito da manhã, pode ser, ou se quiser mais cedo, sem problema, estou acostumada a acordar cedo, vida de médico é assim.— Estarei aguardando, senhora. Às oito. Tenha uma ótima noite de sono e descanse.Fiz a reverência e me despedi. No balcão, peguei minha bolsa e vi quando o cavalheiro saiu com o celular no ouvido.— O que aconteceu, senhor José? Está chorando?— Lembrei do seu pai quando vi vocês fazendo a reverência. Achava lindo quando ele vinha buscar o jornal pela manhã e me dava o bom dia daquela maneira. Sinto muita falta dele. Foi um homem tão bom, de coração brando, alegre, sempre cordial. Faz muita, mas muita falta.— Eu também. Há anos que não a usava, tive medo de errar. Papai, em casa, me dava bom dia assim, antes de me beijar a bochecha e me fazer cócegas, é claro. Isso não podia faltar, jamais.— Já te disse, menina Júlia, você é a mais brasileira das coreanas e a mais coreana das brasileiras.— Como? Se nem ao menos conheço o país de meu pai? Só herdei os olhinhos puxadinhos — respondi sorrindo. — Só sei de onde ele veio, mas a história por trás da vinda dele ao Brasil, nada. Quer dizer, ele veio atrás da bela morena.— Descobriu quem é o senhor de terno preto e o que quer da senhorita?— Ainda não. Marquei um café da manhã no restaurante ao lado. Assim estarei perto de casa e do senhor. Será a minha proteção.— Pode contar comigo sempre. Qualquer coisa, chamo a polícia na hora.— Acho que não será preciso. Boa noite, a noite será curta para o sono que estou.— Durma bem, menina, boa noite.*****
Enquanto jantava uma gororoba qualquer que sobrara na geladeira de outro dia, frango desfiado requentado com arroz, pensei na fisionomia do senhor de terno. Parecia-se com papai. Olhei a foto dele sorrindo, colocada no aparador da sala, mas era loucura minha, aquele homem era muito alto e papai baixinho, além de outras diferenças. O cansaço do trabalho me deixava lesada. Naquele instante, um clique mental ecoou em minha mente quando me ocorreu que ele também havia se apresentado com o mesmo sobrenome que eu carregava. Um tremor de surpresa percorreu meu corpo enquanto eu processava essa descoberta. Balancei levemente a cabeça, numa tentativa de afastar aquela torrente de pensamentos frenéticos que ameaçava tomar conta de mim. Sentindo a necessidade de um breve intervalo, decidi me dirigir ao banheiro para um banho, buscando um momento de tranquilidade.
Depois do banho reparador, fui direto para o quarto. Apesar de estar apreensiva, adormeci de imediato, já que o cansaço do corpo era descomunal.*****
Pela manhã, logo cedo, despertei ansiosa. Sentia-me estranha, insegura, pelo encontro que teria com o senhor de terno. Não queria ser a primeira a chegar, então arrumei algumas coisas em casa. Tomei um banho demorado, lavei o cabelo longo, até dar a hora. Passei na portaria e após dar um bom dia sorridente a José, sinalizei que já estava indo ao restaurante.
Entrei no estabelecimento, vazio nesse horário. Todos já tinham tomado seu café e partido para o trabalho. O senhor Kang, Ye-Jun, já me aguardava, sentado na mesa de canto. Trajava de novo um terno preto e adotava uma formalidade extrema, deixando-me ainda mais apreensiva. Estava muito quente, pois estávamos nos primeiros dias do verão, o que não ajudava a melhorar o clima do ambiente.— Bom dia, senhor. Não está sentindo calor? Estamos em pleno verão carioca. E aqui, nessa cidade, o normal nessa época do ano é fazer quarenta graus. Com esse terno, vai sofrer.Ele se levantou e me cumprimentou formalmente.— Apesar do calor, estou a trabalho. Não posso, ainda, me dar ao luxo de vestir uma bermuda e camisa. Se não se importar, já pedi o desjejum completo.— Prefiro meu pão com manteiga e café com leite, mas hoje o acompanharei — respondi sorrindo.— A senhorita trabalha hoje? Talvez a conversa seja um pouco demorada.— Seria meu dia de folga, mas já avisaram de uma cirurgia, que será inevitável. Avisei no hospital que irei só na parte da tarde. Não se preocupe. Só não posso faltar à tarde, pois além desse procedimento cirúrgico, também tenho alguns pacientes das cirurgias de ontem que preciso ver.O arroz, a sopa de ovo e o Kim chi foram servidos. O homem de preto, como um bom coreano cavalheiro, me serviu primeiro. Esse gesto e até mesmo a maneira de pegar na colher, lembraram-me mais uma vez de papai, e a saudade apertou. Tentei disfarçar uma lágrima, e o senhor cordial, sem nada dizer, apenas me estendeu um guardanapo.Logo que acabamos de comer, ele tirou uns documentos de uma pasta e colocou sobre a mesa.— Vou tentar falar seu nome brasileiro, senhorita. Desculpe-me se sair errado. “Xúlia”, não é?Eu sorri.— Mais ou menos. A pronúncia será difícil para o senhor. Tenho um nome coreano, papai fez questão de me dar, Min-Ji.— Bonita escolha, típica de Kang, Don-Yun. Ao menos o que me lembro.— Você conheceu meu pai? Ele veio para o Brasil com dezoito anos e nunca mais voltou ao país de origem. O senhor parece bem mais novo do que ele, apesar de ter se apresentado ontem com o mesmo sobrenome.Pela respiração forte, como um suspiro saudoso, vi que teria uma revelação importante por trás daquela conversa.— Min-ji, sou irmão de seu pai, Don-Yun. Estou falando sem o sobrenome, o qual é o correto, mas somos da mesma família, a Kang. Durante toda a sua vida, nosso pai o procurou por esse mundo todo. Ele colocou detetives particulares por toda parte, todavia jamais conseguiu achá-lo. Depois de muito tempo, descobrimos que ele mudou o nome para um brasileiro. Só agora soubemos do acidente que o matou, junto com sua mãe. Vim em nome do patriarca da família, seu avô. Ele quer conhecer a única neta e passar a herança do primeiro filho para você. Além…— Espera, do que estamos conversando mesmo? É alguma brincadeira? Conversou com as minhas duas amigas loucas, que adoram contos de fadas, histórias da carochinha, etc.? Pode falar! É uma pegadinha por eu não ter saído ontem com elas, né? — Comecei a rir, sem parar.De verdade, demonstrei um certo descontrole naquele momento. Até porque, se fosse uma brincadeira de mal gosto daquelas duas, elas iam me pagar bem caro.Com paciência, ele me serviu água e esperou que percebesse que não era nenhuma piada de mal gosto.— Para completar, só falta o senhor dizer que esse tal avô é rico…— Mais do que rico. Um dos homens mais ricos do planeta. Dono de vários empreendimentos, inclusive dois hospitais em Seul, os quais ele quer que você administre e atue.Engasguei e cuspi a água quase toda em cima do homem à minha frente. Era impressionante a resiliência dele. Apenas se enxugou e ofereceu o guardanapo para mim, de novo. Esperou, com paciência, eu respirar. Os olhos vermelhos do engasgo se encheram agora de lágrimas e a cabeça só pensava, que loucura era aquela.— O senhor é bem direto, não é? Não dá nem tempo para que eu respire e solta tudo de uma só vez. Agora entendo como é ruim ser assim, também costumo ser direta. Desculpe, senhor. Não costumo ser se
Eram cinco da tarde quando mandei uma mensagem para Kang, Ye-Yun. Marquei de passar às sete no hotel e levá-lo a uma boa noitada carioca. Parei na entrada e vi de longe — graças ao bom Deus — ele não estava de terno, mas lia um livro, bem absorto na leitura. Chamei da porta e ele veio austero. Naquela noite, eu teria que fazer com que ele soubesse e entendesse alguns costumes brasileiros.Quando ele saía pela porta de vidro, cheguei perto e dei dois beijos nele, um em cada bochecha. A vermelhidão do rosto fez-me quase me sentar no meio-fio de tanto rir.— Primeira coisa, senhor tio. No Brasil, somos calorosos e nos cumprimentamos com beijos. Essa é a maneira natural aqui, e não nos preocupamos muito com formalidades, a não ser quando estamos interagindo com pessoas mais velhas, o que não se aplica a você. Não é idoso e, além disso, é meu parente. Portanto, durante nossa convivência, é assim que nos cumprimentaremos.— É algo peculiar.— Com o tempo, você se acostuma. Segunda coisa: te
Ângela era racional, mas dessa vez ela parecia mais indignada que Lorena, a boa romântica. Quando ela ficava nervosa, passava as mãos pelos cabelos.— Júlia, esse Ye-Jun e esse avô, quer que more do outro lado do mundo, por um ano?— Sim, mas, a princípio, nos meus planos, estou indo apenas para conhecê-lo. É a exigência que fiz.— E se esse cara for da máfia e te prender lá? — perguntou Lorena, a sonhadora, viciada em seriados de investigações e mafiosos.— Não. Já li toda a documentação. Ele é dono de hospitais, de agência de talentos, de restaurantes chiques, lojas de departamento. Um monte de coisas. Fiquei até perdida.— Quem está perdida sou eu! — falou Ângela, voltando ao seu normal, a maturidade racionalizada em pessoa, me dando um tapa na cabeça. — É a chance da sua vida. Sair dessa pindaíba. Trabalhar menos. Ter um hospital seu.— Quero vocês lá comigo. Estarei sozinha em um país que jamais imaginei um dia conhecer. Longe, do outro lado do mundo, e com uma cultura de milênio
Quando cheguei no aeroporto na terça-feira pela manhã, os olhos estavam inchados de tanto chorar. Titio fingiu que não viu e me deixou livre para viver aquela tristeza. Embarcamos pontualmente às dez da manhã. O voo se estendia à nossa frente, um trajeto longo e desafiador. Durante essas intermináveis horas no ar, tentei amenizar o cansaço assistindo a filmes, embora o sono tenha sido breve e fragmentado. O impacto da ressaca era inegável; a dor latejante na cabeça era a lembrança palpável da cerveja consumida na noite anterior. Sentia-me ansiosa, na iminência do encontro com meus familiares. Era uma mistura de expectativa e apreensão enquanto voava em direção a uma cultura completamente alheia à minha, tentando afastar momentaneamente a minha realidade.******Apenas após mais de uma hora de voo, o tio, sempre carinhoso, quebrou o silêncio, trazendo à tona minha expressão de tristeza.— Você parece estar com ressaca, Min-Ji. Bebeu demais ontem à noite ou é o peso da saudade?— Um po
Adentrei a sala, onde o patriarca nos esperava com uma expectativa palpável no ar. O pé direito do cômodo, alcançando quase quatro metros de altura, e a decoração meticulosamente combinada, criavam uma atmosfera calorosa e convidativa. O idoso à nossa frente, apesar de não ser tão avançado em idade, apoiava-se levemente em uma bengala. Seus olhos se encheram de lágrimas ao nos ver.— Vejo meu filho em você! — proferiu com um sorriso radiante — Há traços do seu pai em seus traços. É uma beleza.Lancei um olhar significativo ao meu tio, que ao longo desses poucos dias já tinha aprendido a compreender os meus sentimentos não expressos. A vontade que havia sentido antes de abraçar o meu avô, não pude mais conter.— Posso quebrar o protocolo e ser brasileira aqui também? — perguntei, meio envergonhada, voltando-me para o meu tio.Ele assentiu com um sorriso compreensivo. Acredito que, durante os dias que antecederam esse encontro, ele já havia compartilhado algumas das minhas peculiaridade
— Se não ficar, usa no Brasil.— O estilo brasileiro é bem diferente. Lá, prefiro uma calça jeans para o hospital e para sair, vestidos um pouco mais curtos.— Terá que se acostumar com a nossa cultura. Então, por hora, vamos comprar só roupas de inverno mesmo, pois essas não têm como ser curtas. O que acha?— Ótima ideia.*****Um dia de caminhada pela grande metrópole não foi suficiente, mas ainda assim foi um dia excelente. Minha mais nova tia quis me vestir à altura da fortuna de vovô, contudo aceitei apenas algumas roupas, na verdade, vestidos de inverno, que sempre gostei de usar, e lhe mostrei que médico se veste o mais confortável possível.Almoçamos juntas e terminamos o dia em uma cafeteria bem linda. Não tinha café brasileiro, contentei-me com o famoso cappuccino, com espuma por cima e chocolate. Estava uma delícia. Titia aproveitou o momento para fazer algumas perguntas. Não achei isso uma intromissão, pelo contrário, já estava gostando dela. Era estranho sentir essa empa
— No começo, tentou resistir à ideia, mas minha voz continha uma firmeza que ele não podia ignorar. Eventualmente, compreendeu que era o fim. Mesmo que ele tenha lutado contra isso, minha determinação prevaleceu. Afinal, como você disse, meus sentimentos por ele já não eram tão intensos.A garçonete chegou, interrompendo o fluxo das memórias, trazendo consigo um cappuccino quente.— Trouxe o cappuccino que você pediu. Notei que não ficou muito satisfeita com o café gelado, que costumava ser o seu favorito.— Desculpe, tia. No Brasil, somos adeptos de um café forte, encorpado e saboroso. E aquele café gelado definitivamente não atende a essas características.— Não precisa se desculpar. Gosto é subjetivo.— E como mamãe costumava dizer, gosto não se discute.— Voltando ao assunto do namoro. Então, você está solteira agora.— Estou solteira há um bom tempo. Tive alguns relacionamentos mais casuais, como se diz aqui no Brasil, nada muito sério. Foram encontros, apenas isso.— Então você
O motorista pontual já me esperava na porta de entrada do prédio, pronto para abrir a porta do passageiro.— Bom dia, senhora.— Bom dia.— Irei levá-la direto para o hospital, ou quer passar em algum lugar antes?— Na verdade, não tomei café-da-manhã. Preciso comer um pão ou queijo e um café puro mesmo, sem ser gelado. Brasileiro não está acostumado com isso.— Ao lado do hospital tem uma cafeteria bem gostosa. Posso parar lá primeiro antes. Acho que a senhora terá uma agenda cheia. É bom que já conheça onde pode tomar o café ou o lanche da tarde.— O senhor também é muito legal, senhor.A cafeteria era bem agradável, e as coisas eram gostosas, mas tive que comer rápido para não chegar atrasada. Titio já avisara que vovô não gostava de atrasos. Ele me esperava no hall do hospital, que era chiquérrimo por sinal, junto com o patriarca, titio e o diretor do hospital. Todos de terno e gravata. Eu, a simplória neta, de calça jeans, sobretudo e tênis. Roupas bem típicas para um hospital.