Antes
O cheiro de formol, as paredes exageradamente brancas, e a luz forte iluminando o local, pareciam a fórmula perfeita para causar uma baita dor de cabeça em qualquer um que estivesse presente. Os alunos assistiam atentos enquanto a professora de anatomia retirava o fígado do cadáver em decomposição, deitado na mesa fria de metal, exposto como se fosse uma mercadoria. Ainda que a experiência servisse para fins educativos, era difícil não imaginar que esse corpo era uma pessoa. Que tinha sonhos, objetivos e até uma família.
As reflexões profundas de Victoria a fizeram perder completamente a concentração, tornando difícil a tarefa de prestar atenção na aula extremamente importante. A maioria dos alunos tinha um olhar vago, prestando atenção em qualquer ação que acontecia através da janela que dava para o campus. Porém, Victoria não poderia se dar a esse luxo.
Como bolsista em uma universidade de renome, é necessário se esforçar pelo menos três vezes mais do que a maioria. E, sinceramente, todo mundo sabe que basta um contato privilegiado na diretoria para conseguir uma bolsa, ainda que as listas estejam preenchidas. Nada que uma boa quantia colocada como doação para a universidade possa resolver.
Por conta disso, os pais de Victoria sentiam muito orgulho de sua filha. Sabiam exatamente o quanto era necessário de seu esforço para que entrasse em uma universidade por conta própria. Fizeram de tudo para juntar o valor das mensalidades de todo o semestre, ainda que isso os causasse um grande rombo em suas finanças.
Foi por um bem maior, como o pai de Victoria dizia a todo momento.
A jovem se sentia mal em gastar toda a economia dos pais que trabalhavam com muito afinco na fábrica da família, de domingo a domingo. No fundo, esperava ansiosamente para o dia que pudesse retribuir todo o investimento que eles estavam fazendo em sua carreira.
Podia se dizer que Victoria era uma das melhores alunas da turma, ainda que sentisse certa dificuldade em se destacar com seus ensinamentos vindos da rede pública de ensino, que infelizmente era inferior, em comparação com os preparatórios que seus concorrentes tiveram oportunidade de participar. Todavia, amava a profissão que havia escolhido.
Mesmo que ainda faltasse muito tempo para poder exercer seus conhecimentos da faculdade de medicina, sabia que faria o melhor que conseguisse.
Era algo notável, tendo em vista as noites que passava em claro estudando, evitando todas as festas universitárias famosas no campus.
Suas duas colegas de quarto, Marina e Clara, sabiam muito bem que qualquer convite que fizessem, seria recusado instantaneamente.
Porém, para elas, não custava tentar.
À noite, enquanto estava sentada folheando algum livro que pegou emprestado sobre a aula de Anatomia, Victoria ouviu suas amigas cochichando do outro lado do dormitório enquanto olhavam em sua direção.
Não precisou de muito esforço para saber do que se tratava.
Era fim de semestre, e todas as fraternidades estavam dando incontáveis festas antes que chegassem as férias. Todos estavam ansiosos em voltar para as suas casas luxuosas, ou até mesmo planejando viagens com seus amigos. Porém, Victoria estava frustrada em voltar para a Itália, mesmo que soubesse que a saudade de seus pais aumentava cada dia mais.
A ruiva sempre gostou de estar em um ambiente diferente, tendo contato com todo tipo de pessoa possível. Já em Luca, não sentia as mesmas emoções que podia vivenciar atualmente, mesmo que a província fosse adorável. Até o ar era diferente, de uma forma inexplicável.
O custo de vida alto, além da necessidade de estudar o dobro de seus colegas de classe, era o maior empecilho para que não aproveitasse tudo que Londres tem a oferecer.
Viver sem dinheiro não é uma opção, nunca foi, então Victoria estava determinada a conseguir um emprego no próximo semestre. Estava aberta a tentar quase tudo, menos o que uma colega de turma sugeriu quando a ouviu conversar com Marina sobre o assunto.
A menina loura, alta e de olhos verdes como o mar, tinha a aparência de uma modelo da Victoria's Secrets. Ninguém poderia imaginar que fora sua ocupação com a faculdade de medicina, sua principal atividade era a prostituição.
Não do tipo comum que as pessoas marginalizam, era algo diferente.
Como tudo na vida desde a criação humana, as coisas evoluem, e com essa profissão pode-se dizer que aconteceu o mesmo. Existem agências virtuais que aceitam cadastros, e após uma rigorosa seleção, a pessoa é “contratada” para certos serviços.
Tudo de forma disfarçada, claro.
O que não se sabe, é que o maior cliente não é o marido entediado com a vida suburbana, e sim o CEO de alguma empresa milionária, que gosta de se divertir com garotas de luxo.
É horrível, mas as pessoas tendem a demonizar tudo que não envolve pessoas de “classe alta” no meio de toda a sujeira. Típico.
Mesmo declinando a oferta imediatamente, a cabeça de Victoria quase explodiu ao ouvir os números que caíam na conta bancária de Alexa.
O valor era inimaginável para a ruiva, e ver a forma que os números não impressionam suas colegas de classe, a fez enxergar a tamanha desigualdade social que estava inclusa.
Sempre no mundo da lua, não notou que suas amigas chamavam seu nome, ainda envolta em uma teia com seus próprios pensamentos. Em meio a tantas preocupações, eram como uma fuga da realidade estarrecedora.
— Victoria? — Clara se aproximou, passando a mão em frente ao seu rosto vidrado em um quadro na parede oposta.
— Hã? Oi, o que foi? — respondeu, saindo de seu transe.
— Eu sei que você vai dizer não, mas vou implorar mesmo assim. Vai com a gente na festa da Liz? É a melhor festa do campus, juro que vai ter muito menos homem chato do que a última! — Victoria tentou se concentrar nas palavras que saíam da boca de sua amiga, mas falhou completamente ao notar que havia fitas coladas em seu rosto.
— O que são essas coisas na sua sobrancelha? — perguntou, tocando sutilmente o rosto arredondado da loura.
— Marina! Você disse que não dava para enxergar — Clara gritou, antes de correr para frente do espelho — Tá muito esquisito, vou ter que tirar.
— Desculpa, eu tô sem óculos. Juro que não enxerguei. — Alcançando seus óculos na bancada ao lado do beliche, Marina se juntou a Clara em frente ao espelho, dando uma risada escandalosa ao notar as fitas obviamente aparentes em sua testa.
— Afinal, qual a função disso? — Victoria voltou a perguntar, curiosa, mesmo sabendo que seria alguma ideia boba.
— É para afinar o rosto, vi que funciona.
— Ela fica vendo tutorial de maquiagem e quer reproduzir tudo. — Marina respondeu, recebendo um tapa em seu braço.
— Não explana meus truques — A morena bufou, irritada, antes de voltar seu olhar para Victoria — Então, Sra. Livros. Sim ou não?
— Não. — retrucou.
— Dessa vez não aceito um não. Se você for, eu lavo suas roupas por um mês. — Marina ofertou, sabendo que seria algo que a faria pensar, tendo em conta de que era uma das atividades menos favoritas de Victoria.
Coçando sua testa, presa em uma dúvida cruel, Victoria não viu um vestido preto se aproximar de seu rosto, antes de atingir sua bochecha direita com mais força do que esperava.
— Porra! Doeu. Por que fez isso? — Ela jogou o vestido de volta para Clara, tentando retribuir a força com que foi atingida.
— Para você se trocar, linda. Vai com essa roupa de tia dos gatos?
— Eu não aceitei ainda — retrucou novamente.
— Para de doce, vou ficar sentada aqui até você se arrumar — A morena juntou seus cabelos longos e ondulados em um coque, tentando consertar a maquiagem que havia dado errado.
— Vocês são insuportáveis. — Victoria bufou, antes de ir para o banheiro com o vestido pendurado em seu ombro.
Se olhando no espelho, percebeu haver meses desde que se arrumou daquela forma. Suas olheiras cobertas pela base uniforme, junto da leve sombra espalhada razoavelmente bem em sua pálpebra e um blush rosado, deram uma aparência melhor do que exibiu em dias. Teria que admitir que sua rotina não estava saudável, afinal, nada em excesso faz bem.
Victoria decidiu então tirar proveito da coação de suas amigas e se divertir, pelo menos durante uma noite.
Afinal, o que poderia dar errado?
Sempre que aceitava sair de casa, Victoria se arrependia momentos após chegar no local. Dessa vez não foi diferente. Olhando rapidamente ao redor, era possível ver mais de dez infrações cometidas em um curto espaço de tempo.Por sorte, Liz era filha de uma das maiores contribuintes em doações da universidade.Ela tinha pele negra, tranças vermelhas que iam até sua cintura, roupa preta de tecido semelhante a couro, a tornando a atração da festa. E não seria por menos, Liz estava estonteante.Victoria tentava conter suas risadas ao ouvir por diversas vezes Marina afirmar que tinha certeza de sua heterossexualidade, até conhecer a anfitriã da festa.Clara, por outro lado, estava distraída beijando algum desconhecido que estava parado ao lado das bebidas. Não podia perder tempo, queria aproveitar a noite da melhor forma possível.Aproveitar é um termo muito particular de cada pessoa. Para Clara, era beijar o máximo de bocas possível. Já para Marina, era aproveitar o tempo de maneira agrad
DepoisO cérebro tem o poder de desenvolver modos de defesa quando estamos em alguma situação de perigo ou medo extremo. No caso de Victoria, envolvia ambos.Primeiro, ficou em negação. Acreditava que tudo não passava de um mal-entendido que logo seria resolvido. Porém, após 3 dias, suas esperanças estavam se esgotando.Sua sensação, se for algo que puder ser descrito, era como estar um pesadelo vivido. Em toda sua vida, nunca imaginou passar por algo do tipo. Ficou a todo momento trancada em um quarto sem luz, comida ou qualquer tipo de coisa básica necessária para qualquer ser humano viver.Além do medo de sofrer algum tipo de violência, que por sorte não ocorreu, estava aterrorizada com a possibilidade de seus pais estarem mortos, já que os homens que a sequestraram não pareciam dispostos a negociar.No primeiro dia, tinha forças para gritar e se debater contra a porta, porém, sua força foi diminuindo ao mesmo tempo que sua energia se esgotava pouco a pouco. Quando finalmente acred
Tentando ser sutil, a loira sondou Victoria da melhor forma que pôde. O que foi frustrante para ela, considerando que a Victoria não sabia de nada relevante. Mesmo assim, a ruiva explicou tudo pacientemente, com esperança de conseguir encontrar seus pais novamente. Porém, ao ouvir sobre a fábrica de tecidos, Catarina exibiu um olhar que parecia revelar que sabia algo a mais.Antes que pudesse perguntar sobre, Victoria ouviu batidas na porta, e seu coração acelerou novamente. Em um momento de desespero, se encostou no canto da cama, receosa de a levarem novamente.Catarina se levantou, e ao abrir a porta, a ruiva viu que era um dos homens que a sequestrou.Victoria gritou, implorando para que não deixasse ele levá-la. Porém, Catarina sabia que suas ordens não eram acatadas. Infelizmente, seu pai dava voz apenas ao seu irmão.— Ele quer falar com ela, senhora. — o homem disse brevemente.— Certo. Vou levá-la, só me deixa arrumar algo para ela vestir — Catarina respondeu, fechando a por
Três dias. Fazia absolutamente três dias que Victoria estava trancada em um mesmo quarto. Durante esse tempo, todos os dias uma mulher entrava, colocava uma bandeja sobre a mesa que ficava próximo à cama e saía sem dizer palavra alguma. Não importa o quanto a ruiva gritasse implorando por qualquer tipo de ajuda, nenhum único som era emitido pela funcionária, que sequer olhava em sua direção. Certamente, já deveria estar acostumada com situações desse tipo. Havia livros espalhados por todo o chão do quarto. Victoria os escolhia aleatoriamente, lia algumas páginas e se cansava em seguida. Por fim, exausta e com tédio, se rendeu a uma das obras, a lendo por completo. Em três dias, já teria lido cerca de três ou quatro livros em um curto espaço de tempo. Porém, tinha plena consciência de que não havia absorvido conteúdo algum das grandes obras literárias. Era difícil se concentrar quando sua mente está em um estado de alerta constante, que te prepara para ser trancafiada em um quarto e
Durante a tarde, Victoria ouviu novamente uma movimentação diferente na casa. Olhando pela brecha da porta, conseguiu ver mesas e objetos de decoração sendo carregados pelos capangas de Dominique. As pontas soltas das conversas que escutava através da porta não eram o suficiente, precisava estar no meio daquelas pessoas. Conviver com eles, e entender todo o esquema que envolve essa família. Como tudo indicava que seria feita uma recepção na casa, Victoria pensou que seria a oportunidade perfeita para descobrir o máximo de informação que pudesse. Arrumaria um jeito de entrar em contato com essas pessoas, de uma maneira ou de outra. Olhando através da janela que dava em direção a uma parte do jardim, conseguiu ver carros chegando com grandes objetos de decoração, flores e bebidas. Ali, ela percebeu que não seria uma simples recepção, seria uma grande festa de família. Ansiosa, tentou bolar em sua cabeça um plano que a levasse até o local, e sem pudor algum, Victoria saiu de seu quarto
— Você é nova aqui, anjo? — O homem misterioso perguntou, passando para a frente de Victoria, olhando com curiosidade. Sua aparência não era nada agradável, assim como um sorriso malicioso que pareceu se formar em seu rosto assim que seus olhos pousaram sobre a jovem.— Quem é você? — ela retrucou sem filtrar suas palavras — Quer dizer, ainda não o conheci. Como se chama?Não poderia desperdiçar suas chances, qualquer pessoa ali poderia dar alguma pista sobre seus pais.— Me chamo Alfredo. É um prazer, bela. — ele se curvou para beijar sua mão, e a barba áspera roçando em sua pele a causou um incômodo desconhecido.— Igualmente. Me chamo Victoria, e sim, sou nova por aqui. — ela respondeu, antes de notar que Damiano se aproximava de ambos.— Alfredo, quanto tempo! Vi que já conheceu a Victoria. — o moreno passou seu braço através da cintura de Victoria, a puxando para perto.Ela ficou confusa, porém, receosa demais para agir. Seu braço a apertava firmemente, quase dolorosa, contornand
Depois da festa, a angústia que se instalou era notável. Dia após dia, Victoria ficou em seu quarto, esperando ser levada para algum lugar onde definitivamente não iria querer estar.Analisou todos os cantos do cômodo, ponderando encontrar algum objeto que servisse como arma.Conforme os dias foram passando, estranhou tudo estar tão calmo, já que eles parecem trabalhar em muitos projetos paralelos — para não dizer criminosos.Olhava pelo jardim todos os dias, vendo as flores colhidas em sua época favorita do ano: a primavera. Umas flores eram recolhidas, outras descartadas por estarem com algum defeito ou traças. Outras ainda nasciam. Victoria achou curioso o fato de que ao mesmo tempo que algumas vidas estavam sendo geradas, outras estavam sendo fincadas ou descartadas. E era como ela se sentia, como se fosse um objeto prestes a ser descartado.Tinha consciência de que estava viva por ter alguma utilidade para os Mazinni, porém, temia qual fosse essa qualidade ainda desconhecida.E p
Ao se soltar da estrutura que a segurava, a mantendo segura, Victoria espremeu seus olhos em uma expressão de agonia, torcendo para ser rápido. Não queria sentir dor, ou pior, permanecer viva e machucada aos cuidados de seja lá quem se colocasse à disposição naquela casa.A sensação foi de quase voo, se não fosse por algo que a segurou firmemente, tão firme que chegou a deslocar seu pulso.A próxima coisa que ela sentiu, após ter sido tirada de seu transe, impedindo o quase fim da sua vida, foi a barba cerrada de Damiano roçar em seu rosto, a segurando em seu colo, impedindo que terminasse a ação que tomou impulsivamente.Ele não entenderia, como poderia entender? Ele gritava, mas Victoria estava com seus sentidos tão perturbados, que ouvia tudo abafadamente, como se estivesse em uma caixa que a impedia de escutar todos os sons emitidos de forma clara e audível. Após deitá-la, ele sentou na ponta da cama, e aguardou até que seus sentidos se recuperassem completamente.Não demorou mui