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Além das possibilidades
Além das possibilidades
Por: Debora Page
Capítulo 1 – Apresentação

Eu sempre deixava o celular embaixo do travesseiro para que eu pudesse senti-lo vibrar e conseguir ouvir o toque do despertador. Já o programava para despertar em três horários, acho que isso faz com que o meu cérebro e corpo se adaptem com a ideia de ter que acordar. No entanto, hoje tudo fugiu do meu controle. Estava atrasada. Pode até parecer exagero para alguns, mas eu me cobro demais em todos os aspectos. Acordei com a minha mãe batendo insistentemente à porta perguntando se eu não iria trabalhar, e por um segundo fiquei desnorteada. Apalpei a cama com a vista um pouco turva até encontrá-lo. Quando me dei conta de que estava no silencioso, saltei em direção ao guarda-roupa pegando o primeiro vestido que vi, prendi meus cabelos na tentativa de disfarçar todo o emaranhado que a cama o deixara, pois como eu, meu cabelo cacheado e volumoso, sempre acordava de mau-humor. Passei a mão na mochila que estava sobre a mesa e calcei a sandália pela sala afora. Percebi que minha mãe terminava de pôr a mesa para o café.

Em dias normais, eu acordaria às seis horas, tomaria um banho quente e me arrumaria rápido, só pra passar mais tempo com ela à mesa. Não tínhamos muito assunto, mas gostávamos de falar sobre o capítulo anterior da novela durante o café. Ela madrugava comigo sem necessidade, mas talvez fosse porque eu era a única em casa que lhe dava atenção.

— Você não vai tomar café, Manuela? — perguntava-me, enquanto preparava o pão.

— Mãe, estou atrasadíssima! Preciso estar no escritório em vinte minutos. Prometo comer algo quando chegar lá. Vou pedir no Ifood — Enquanto respondia, ajeitava a alça de minha mochila em cima dos ombros e me direcionava para o banheiro.

— Tome ao menos o suco que fiz, vou colocá-lo na sua garrafa. — Seus pequenos olhos castanhos me olhavam fixamente e eu sabia que estava me repreendendo pelo fato de insistir em sair de casa em jejum. Também sei que não posso contrariá-la. Existe uma teoria que as mulheres baixas costumam ser bravas. Essa se aplica perfeitamente a minha mãe. Dona Estela, quando se trata dos filhos vira uma leoa se preciso. Eu não me importo com essa superproteção. Mas me incomodo com o fato de que tudo precisa ser relatado ao meu pai. Ele não é uma pessoa fácil de lidar e me controla como se eu fosse criança.

Enquanto eu escovava os dentes, ela já havia transferido a bebida para meu squeeze. Apesar de saber que eu não gosto de colocar nada ali além de água, ela persiste nos sucos e achocolatados, e eu não reclamo mais.

— Sua benção, mãe! — Dei um beijo rápido em sua testa e saí correndo em direção ao ponto de ônibus, sem nem esperar a resposta. Estava agoniada. Parecia que todos os outros ônibus resolveram passar, menos o que eu precisava. De repente ouvi alguém gritando meu nome. 

— Manuela! Manu, aqui!

Avistei Katerine debruçada na janela de um carro. Seu cabelo castanho em corte chanel era inconfundível.

— Que milagre é esse?! Você atrasada? — dizia minha amiga enquanto eu entrava e me acomodava ao seu lado.

— Kate, não sei mesmo o que aconteceu. Eu jurava que tinha tirado o telefone do vibracall. Ei, você também está atrasada. O que houve?

— Problemas lá em casa, amiga. Minha mãe resolveu colocar o namorado para morar conosco. Não aguento mais essa situação. Preciso alugar um apartamento urgente! Ela está exigindo muito da minha paciência. Se aturá-lo eventualmente já é difícil, imagine morar sob o mesmo teto? Impossível!

Falar sobre um assunto tão delicado sabendo que o motorista da Uber estava atento a nossa conversa, era constrangedor. Tudo que eu queria era que minha melhor amiga ficasse bem, mas Júlia, sua mãe, resolveu namorar um rapaz com quase a mesma idade que a nossa e acha que ela precisa tratá-lo como padrasto. Eu sei o quanto Kate está magoada com a situação, porém não sei como melhorar isso. Também não fui capaz de continuar a conversa e ela entendeu só pelo meu olhar. Nós temos uma forte conexão.

Chegamos ao trabalho com quase trinta minutos de atraso. O olhar das pessoas me incomodou; fui para o meu lugar e logo comecei a trabalhar. Já Kate pareceu não se importar. Foi para a sua mesa e a primeira coisa que fez foi arrumar a franja que sempre precisava estar impecável, e se maquiar. Ela sempre diz que o dia só começa bem depois de uma boa make, e ela é muito boa nisso. Já eu, sou o oposto da vaidade. Meu cabelo quase sempre fica preso e muito mal uso batom.

O dia foi bem corrido, precisei atualizar milhares de planilhas; lidava com receitas de diversas empresas e precisava ficar sempre atenta às folhas de pagamentos e ao Hangout. Sr. Alexander, nosso chefe, sempre fazia pedidos urgentes por lá. E hoje, não foi diferente. Precisei fazer um relatório um pouco complexo, logo quando não estava bem. 

Ele não saiu de sua sala e eu só tive coragem de me dirigir até ele no final do meu expediente, para entregar o relatório e me desculpar. A verdade é que eu não tinha uma boa desculpa. Só estava cansada e, para minha surpresa, ele parecia saber disso.

— Manuela, se você conseguiu fazer tudo que estava programado para hoje, pare de se cobrar, menina. Você vai acabar adoecendo assim. E por favor, para com essa ideia de pagar hora. Não estou preocupado com isso. Só tenta descansar. — Foram essas suas palavras. Eu deveria ficar feliz e aliviada por ter um chefe tão compreensivo. Mas suas frases ecoaram na minha cabeça. Só consegui pensar em quando eu conseguiria descansar.

Como sempre, esperei Kate retocar a maquiagem para irmos embora. Mesmo me sentando nos últimos bancos do ônibus, ainda me sentia observada e não era pra menos, minha amiga atraia olhares por onde passávamos, não só pela beleza, curvas e cabelo sempre intacto, como também pelo seu jeito articulado e sorriso fácil. Ela parece com essas blogueiras famosas, mas para isso faltam os "K" de seguidores e tempo para se dedicar às mídias sociais. Sua vida, assim como a minha, é agitada; ela que dá suporte aos seus avós no lugar de sua mãe, que só pensa em relacionamentos. Fomos o caminho todo falando disso. Eu queria ter boas palavras pra tentar amenizar o problema, porém sempre que me coloco no lugar da minha amiga, minha postura é a mesma. Também me revolta as atitudes de sua mãe.

Cheguei em casa por volta das dezoito horas, tomei um banho quente e coloquei uma roupa confortável. A noite só estava começando para mim. Minha mãe já deixava tudo preparado para esse horário, a massa, o recheio para começarmos a enrolar os salgadinhos e passávamos ao menos quatro horas ali. Quase não conversávamos, pois as novelas prendiam nossa atenção. Quando acaba a programação, eu coloco na internet para rever as da tarde que perdi por conta do trabalho.

Sim, sou uma fã de carteirinha de novelas mexicanas, pois elas não são só apaixonantes, mas também motivantes. Não tenho vergonha de falar isso para ninguém, apesar de sofrer um certo bullying de amigos (exceto por Kate, que é tão fanática quanto eu e minha mãe). Dona Estela que me viciou em novelas; cresci chegando da escola e correndo para o sofá de uniforme e tudo para assistir “Carrossel”, “Carinha de Anjo”, “O Diário de Daniela” e tantas outras grandes produções infantis. E mesmo agora sendo mais velha, ainda mantenho acesa a fascinação por esse estilo de teledramaturgia. Já perdi a conta de quantas vezes eu assisti “A feia mais bela” pelo Youtube, e preciso confessar que é a minha novela preferida.

— Dá para baixar o volume dessa televisão, Manuela? Até o vizinho está ouvindo o Julian Saldanha falar — disse meu irmão saindo do quarto e vindo em nossa direção.

— Nossa! Cristiano! Não sabia que você também era fã. Já sabe até o nome.

— Para você ver; de tanto que é viciada, está enlouquecendo a todos nessa casa.

Ele sabia exatamente como me irritar. Não bastava, aos vinte e um anos, não estudar e muito menos trabalhar. Dedicava seu tempo para me tirar do sério. Passava boa parte do dia malhando, postando fotos ou jogando vídeo game na casa de amigos. Além de implicar com Nathan, nosso irmão mais novo. 

O que me deixa mais chateada é que, após um longo dia de trabalho, eu que preciso ajudar a minha mãe com as encomendas e com a casa, enquanto os dois não arrumam nem o próprio quarto. E pior, sei que quando meu pai chegar do trabalho dará razão a Cristiano sobre a novela, mesmo o áudio não estando alto. Ele sempre chega no meio da minha novela preferida e, às vezes, já desligando a TV. Isso me deixa profundamente triste e irritada. E essa noite não foi diferente.

— Essa novela nunca vai acabar? Manuela, abaixe o volume ou desligue isso, senão eu o farei.

— Boa noite, pai — falei, já me levantando para lavar a mão e correr para diminuir o volume antes que fosse tarde demais. 

Minha mãe e ele se entendem bem. Ela parece não ligar para tantas grosserias, mas eu sim, e isso me faz muito mal. Ele não é carinhoso, só parece se importar com a aparência e com a superficialidade. 

Ao terminar o recheio do dia, dei graças a Deus por termos sido rápidas e pela encomenda não ter sido grande como de costume. Isso é ruim para o orçamento, mas eu estou tão cansada mentalmente que o que eu mais quero é ficar sozinha. Lavei a louça e, por fim, passei uma vassoura na sala para retirar os fiapos de linha e pedaços de tecidos que ficam caídos no chão após o dia de trabalho da minha mãe. Ela passa quase o dia inteiro na máquina de costura, além de cozinhar, lavar e passar; e ainda prepara a massa e o recheio dos salgadinhos. Se meu irmão trabalhasse para ajudar nas despesas, minha mãe poderia trabalhar menos. Mas parece que só eu enxergo isso ou somente eu me importo. Terminei o serviço, me despedi de todos e fui para o meu quarto.

Agora sim, finalmente estou em paz. Meu quarto é uma espécie de refúgio, aqui eu me encontro; é uma sensação grandiosa chegar e ver que está tudo conforme eu deixei. Ao menos aqui eu tenho privacidade e espaço.

Esse é o meu momento, posso viajar em meus pensamentos, cantar, dançar e até dar uma de louca sem me preocupar com o que dirão a meu respeito. Aqui eu posso chorar se tiver vontade e, como qualquer jovem da minha idade, manter minha rede social em dia. Me orgulho de cada conquista, pois tudo foi comprado por mim. Meu notebook foi a última aquisição. Lembro que guardei dinheiro por quase dois anos para isso. Desde pequena, trabalho com minha mãe fazendo salgadinhos, claro que isso não gera lucro para mim, mas ajuda na casa e isso já é gratificante. Logo que completei dezoito anos, comecei a trabalhar fora. Fiquei dois anos como assistente administrativa em uma empresa de telefonia, agora estou há quatro anos trabalhando como secretária do Sr. Alexander, em uma empresa de contabilidade. Eu gosto do meu emprego, faço muitas coisas que exigem formação acadêmica e por isso ele quem assina por mim. Infelizmente, eu sei que não tem como crescer mais na empresa, a não ser que faça faculdade. Ele e Kate são os únicos que me incentivam a isso. Ela, por ter uma formação acadêmica, ganha quase três vezes mais do que eu, e graças a ela estou empregada. Além da indicação, foi ela que me ensinou todo o serviço. Por Kate, eu já estava cursando Ciências Contábeis, mas a metade do meu salário vai para as despesas de casa. E confesso que meu sonho sempre foi Comunicação Social, um curso com investimento bem alto, e pior, só na modalidade presencial. Até cheguei a passar para uma universidade pública; mas desisti quando vi que ficava impossível conciliar o trabalho, com uma carga horária integral do curso. Perdi muito conteúdo e acabei desanimando logo no primeiro mês. Me arrependo muito de não ter persistido, mas estava sozinha, sem apoio dos meus pais e ainda com toda a pressão psicológica de ter que ajudar com as despesas. Agora, estou feliz pelo meu investimento pessoal; Faz seis meses que iniciei meu curso de espanhol. E desse eu não abro mão! O meu interesse pela língua não é só pelas novelas mexicanas, pretendo um dia conhecer o México e quero estar fluente até lá. Enquanto eu viajava nas lembranças e nos pensamentos, o telefone tocou e minha mãe logo me gritou para pegar a extensão.

— Oi, Kate! Por que não ligou para o meu celular? 

— Como sabia quem era se sua mãe não disse o meu nome?

— Quem mais seria?

— É verdade. Eu liguei sim, várias vezes. Como você não me retornou, eu liguei para sua casa. Bem, só queria te avisar que hoje vai passar um filme inédito na TV com o Julian.

— Obrigada, amiga! Eu vi o anúncio ontem à noite e programei o despertador para eu não perder a hora. Provavelmente esqueci ele no silencioso. E você, como está? Resolveu o assunto com a sua mãe?

— Não, já encontrei um apartamento para alugar, duas ruas atrás da sua. Você bem que poderia vir morar comigo e começar a controlar mais a sua vida.

— Você sabe que esse é um dos meus sonhos, mas também sabe como eu partiria o coração dos meus pais se saísse de casa sem estar casada. 

— Manuela, você só tem vinte e quatro anos e nem namorado tem, casar está totalmente fora dos seus planos. Até porque o único plano que eu conheço na sua vida é o Julian. E falando nele, você viu a foto que ele postou?

— Nem me fala dessa foto! Ele não sabe como parte meu coração quando posta fotos com ela. Eu sei que ela é linda, que eles namoram há mais de um ano e que eu já deveria ter me acostumado com isso. Mas não sei, Kate... Tem algo nela que não me convence. E não é só ciúme de fã... Tem alguma coisa que eu não consigo explicar. Me incomoda o jeito dela e aquele cabelo escorrido — falei, quase bufando.

— Eu só vejo reportagens sobre a Samantha se for para falar sobre sua beleza ou para falar de como ela não desgruda do Julian. Deve ser difícil para ele ficar vinte e quatro horas com uma ruiva de farmácia grudada para cima e para baixo. Porque eu duvido muito que ela seja ruiva natural.

— Só você mesma, Kate, para me fazer rir depois de um dia tão monótono como o de hoje.

— Pois é, amiga, mas graças a Deus amanhã é sábado e, aproveitando a deixa, será que você pode me ajudar com a mudança para a minha casa nova?

— Claro que sim! Mas vai se mudar amanhã? Não está se precipitando? — perguntei, abismada pela rapidez.

— Você sabe como é difícil achar algo por aqui alugando... E pra que esperar mais?

— E por que não mora com os seus avôs?

— Prefiro ter o meu canto mesmo. E lá na casa deles eu não vou poder receber visitas..

— Eu te entendo. Irei assim que sair do curso.

— Já estava esquecendo que agora tenho uma amiga bilíngue. Graças ao Julian.

— Futura amiga bilíngue, Kate! “Não vá com tanta sede ao pote”. Como diz minha mãe.

Ela sabia como me animar, mesmo que fosse com suas brincadeiras e sarcasmos. Isso faz parte dela e eu amo sua forma de falar. O que eu mais admiro em seu jeito de ser é que, mesmo estando repleta de problemas, sempre acha um lado bom em tudo; sempre tem um ponto de vista melhor do que o meu para enxergar as dificuldades e transformá-las em oportunidades. Ela me motiva e, às vezes, me sinto mal por não conseguir ser assim também. Eu sempre a comparo com a Poliana — a menina do livro de Eleanor H. Porter, um clássico da literatura que li quando era adolescente —, e como o seu otimismo parece superar o da personagem.

Ficamos um bom tempo falando de Julian e Samantha, também sobre o trabalho; evitava falar de mim, pois sabia que as extensões do telefone tinham vida própria e logo poderiam estar no ouvido de alguém. Principalmente nos de Nathan, que ainda não aprendeu o que é privacidade e educação. Ao desligar, não consegui mais evitar os meus pensamentos. Havia tentado, ao longo do dia, permanecer focada na minha realidade, no entanto, agora não conseguia mais. Falar com Kate ao telefone só trazia à tona todos os meus anseios, e eles parecem ser mais fortes que eu. Existe em mim uma necessidade de verificar sua página e suas publicações. Precisava deixar uma mensagem, curtir suas fotos e postagens (exceto a foto com Samantha, pois eu não sou hipócrita a esse ponto).

Às vezes eu mesma acho que estou ficando louca, e, sim, ele me enlouquece sem saber disso. Acho que realmente estou precisando de um psicólogo. Isso não pode ser normal. Parei em frente ao notebook, já aberto na página dele, e fiquei observando o meu quarto; fotos em todas as paredes. Eu fiz um mural de cortiça e fui pregando as inúmeras mensagens que escrevi para ele. Deixei em evidência com a canetinha vermelha o like dele. Para mim, elas eram mais do que especiais... Eram verdadeiras relíquias. Lembro quando fiz um escândalo em casa quando eu havia publicado uma mensagem em seu mural do F******k e, minutos depois, recebi uma notificação de curtida. Eu comecei a chorar, gritar e não me contive dentro do quarto. Corri por toda a casa feito uma louca e assustei a todos! Até eu conseguir explicar a minha mãe o motivo de tanto alvoroço, demorou minutos. Por sorte, meu pai não estava em casa nesse dia. Desde então eu virei uma colecionadora de “likes do Julian”. Cada um é uma conquista, pois sei que ele leu cada mensagem, uma vez que ele só curte as que realmente o tocam de alguma forma. E ter a certeza de que eu consegui isso diversas vezes é quase um Oscar para mim; quase como um prêmio Nobel. Eu espero o dia que conseguirei receber tudo de uma só vez, o dia que, finalmente, irei o conhecer, ganharei um abraço e poderei tirar uma foto com ele... Aí sim, eu terei todos esses prêmios comigo e para sempre.

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