02

(Dallas)

As irritantes e potentes batidas na porta não dão um sossego, viro para o lado e cubro a cabeça no travesseiro. Ele não desiste?

Persistência. Anotem aí, mais um traço de personalidade de Siegfried Turgard que eu não sei dizer se é uma qualidade ou defeito. Ele também é bruto, egocêntrico, barulhento e beberrão, aliás todos esses vikings são.

Acabei de conhecer Siegfried, embora eu já soubesse que estávamos destinados a nos casar há muitos anos. Aliás, não consigo me lembrar nenhuma vez que passei um dia da minha vida sem que tivessem que mencionar o fato. Tanto minha mãe quanto meu pai, sempre apontavam o quanto eu só poderia ir até o jardim de casa, se quisesse sair e fazer alguma diferente além de estudar. É uma grande responsabilidade quando todo mundo espera o dia do seu casamento para considerar que as famílias estão em paz.

Herdei uma guerra ancestral. Não sei exatamente porquê. Talvez seja apenas o cúmulo do destino, o tal do nascer na hora errada, no lugar errado.

Vim para essa ilha no meio do pacífico e embora eu tenha ficado um pouco animada com a possibilidade de finalmente deixar os muros da mansão em que eu morava no Canadá, já me arrependo de ter vindo! Não estou acostumada com derramamento de sangue, especialmente, um no qual nenhuma causa verdadeiramente necessária estava por trás.

Escuto o destravar da maçaneta eletrônica e a porta abre, um quadrado de luz se forma no assoalho, iluminando um pouco o quarto. Não acredito! Tiro o travesseiro da cabeça e me sento na cama.

Você invadiu o meu quarto, seu desgraçado? — Atiro o travesseiro contra a porta, acertando Siegfried, que apenas pisca os olhos nada impressionado. Claro, um travesseiro não é exatamente algo que causa dor.

Estou batendo há mais de uma hora sem obter uma resposta, comecei a achar que escorregou no banheiro, bateu a cabeça e morreu. — Siegfried dá um passo para frente invadindo o quarto. Sua bota de neve tem o bico anti-choque pesado, fazendo um barulho oco e que deve ser assustador para seus oponentes.

Ah, você ia adorar. Seus problemas acabariam. — Cruzo os braços, enquanto Siegfried soca o interruptor de luz acendendo o interior do quarto e fecha a porta atrás de si. Ele está segurando um lírio branco, que nitidamente tirou do arranjo da mesa, o que me faz estreitar os olhos.

É uma visão peculiar ver aquele homem bruto, cheio de tatuagens que escapam pelas bordas de suas roupas nos punhos, mãos e pescoço, com um piercing no nariz, cabelos extremamente claros raspados como um punk e barba grossa, segurando uma flor delicada em suas mãos, sem esmagá-la.

Dallas, o menor dos meus problemas é você. Ou um garçom estúpido. — Siegfried se aproxima, falando um inglês cheio de sotaque que soa tão bruto quanto seus músculos fortes, que só imagino que existem debaixo daquela roupa de frio toda. Solto um suspiro e ele me oferece a flor, sugerindo trégua.

Mas você o matou.

Claro. Não teria outra opção. — Ele balança a flor na minha frente. — Pegue logo, é para você. — Insiste, com os olhos azuis como as geleiras da ilha sobre mim. Estico a mão, pego a flor e cruzo as pernas sentando debaixo do cobertor. Sim, estou de pijama, eu estava querendo que ele fosse embora para eu ir dormir. — Foram todos muito bem instruídos e o que ele estava fazendo ia contra minhas ordens. — Siegfried senta-se na ponta da cama king size, com aquelas roupas nojentas.

Não sente aí!

Você sabe como as coisas são. — Siegfried me encara como quem não vai levantar e continua falando. — Se eu deixar que pensem que podem me desrespeitar, não será apenas um.

Você pelo menos lavou as mãos? — Rosno, entre dentes. Ele franze as sobrancelhas claras e quase transparentes, sem me entender. — Os germes. O sangue… — Enumero. — Está sujando a minha cama.

Que merda, você é mais fresca que Alyssa! — Ele se levanta, desatando o nó da gravata e atirando-a dentro do lixo. Fico calado, quem diabos é Alyssa? — Minha irmã do meio, mas também, ela é uma kindred e das boas. Até eu fico parecendo um covarde do lado dela.

Isso eu duvido muito. — Comento, olhando para o lado, onde tem um criado mudo e soltando a flor ali por cima, ao lado do meu Rolex Lady Datejust everose gold com diamantes. — O seu apelido é berserk. Não sabia o porquê, até agora.

É, talvez eu seja um pouco… — Ele coça a cabeça na parte detrás, escolhendo as palavras, passeando pelo quarto, andando de lá para cá na frente da cama, incapaz de ficar quieto.

Violento? — Sugiro.

Siegfried para de andar e me encara com um sorriso, como se eu tivesse feito um elogio. E não, não foi!

Estava pensando em “estressado”.

Muito mais que isso. — Cruzo os braços.

Ainda está brava?

Um pouco… — Empurro os cabelos longos e ondulados para trás do ombro. — Você matou o garçom por ser simpático comigo e invadiu o meu quarto.

Eu trouxe uma flor. — Siegfried range os dentes, aborrecido, como se eu devesse considerar aquela flor um presente.

Sim, mas...

E você não precisa de ninguém sendo simpático com você, só eu. — Siegfried me interrompe dando ênfase no adjetivo pesando seu significado enquanto caminha se aproximando da cama novamente, ficando do meu lado. Percebo que ele não se senta dessa vez.

Gosto de pessoas simpáticas, Siegfried, acho que ser agradável é parte da educação. Será que você se importa de dizer que os funcionários do hotel podem ser educados comigo? — Peço, com um sorriso um tanto maquiavélico enfeitando o rosto, coloco as mãos para trás, apoiando os cotovelos no travesseiro, a verdade é que quero ver até onde ele está disposto a ir. — Estou em um país que mal compreendo a língua que é falada, frio, muito longe da minha casa. Seja compreensivo e não saia matando pessoas. Odeio o cheiro de sangue.

Indisposto, ele cruza os braços de forma brusca, os músculos contraem e quase estouram a trama de suas roupas, que esticam até o limite e não deixam dobras. Siegfried é como um urso polar. Grande, forte, perigoso, que ruge para te assustar. Mas eu já conhecia a sua fama.

Antes de virmos, minha irmã do meio Pandora, fez uma investigação sobre Siegfried. Ela não queria que eu viesse no escuro e agradeci por ela ser uma habilidosa hacker e por trabalhar no setor investigativo da organização. Ela conseguiu levantar um perfil baseado em hábitos de compras no cartão de crédito, movimentação bancária e outras coisas, como invadir as câmeras de segurança. Vi um vídeo de Siegfried urinando em um devedor, como forma de tortura. Ele é um animal irracional. Sabe o tipo de pessoa que gasta fortunas com cerveja e em noitadas? Pagando por profissionais do sexo e colecionando armas estranhas que deveriam ficar em museus de tortura medievais… Não sei o que ele quer com tudo isso, mas deve estar cheio de doenças!

E você pensa que me convence com esse drama por qual motivo? — Ele nem pisca, me encarando profundamente. — Sei que você é muito bem treinada e um assassina, no melhor estilo Drake de ser. Sua família não é de padres, pensa que não sei?

E daí? Existem outros métodos, inclusive mais limpos, de se matar alguém.

Tomei banho antes de vir para o jantar, comprei até um terno. — Ele se aponta, como se eu não considerasse tudo isso. Inclusive, quando o encontrei no restaurante, ele estava cheirando bem, com um perfume sensual que quase me fez cair sentada na cadeira, mas agora, o cheiro de ferrugem que ele exala não me agrada em nada. — Se quiser, tomo outro banho agora mesmo.

Tire essa ideia da cabeça, você não vai dormir na minha cama antes do casamento. — Eu me sento abruptamente e cruzo os braços, bloqueando-o.

Siegfried sorri, nada intimidado por minha postura e um homem com sua fama não deve mesmo se espantar com muita coisa. Ele estica a mão, para tocar em meus cabelos e eu seguro em seu pulso impedindo-o.

Não encoste em mim sem lavar as mãos antes.

Belos reflexos. — Os olhos dele até brilham de satisfação, ele se solta com agilidade, girando o braço e me empurrando contra a cama, colocando um joelho no colchão. Sinto apenas o impacto macio, mas rude, enquanto suas mãos seguram meus braços no alto da cama. — Fique sabendo que nós vikings não temos essa ridícula tradição de cultuar a virgindade…

Quem disse que sou virgem?

Melhor ainda. — Ele sobe por cima de mim, me apertando contra a cama, seu rosto muito perto do meu, de forma que o cheiro de sangue morto em sua barba me incomoda. — Gostamos mesmo das mais experientes.

Saia de cima de mim agora. — Aviso, rangendo os dentes, tento soltar minhas mãos, mas ele segura-as com força, tenho certeza que ficarei com marcas nos braços depois disso. — Siegfried, saia!

Está muito bom aqui.

Já passa de meia noite e deve respeitar a tradição de que os noivos não podem se ver por vinte e quatro horas antes do casamento.

Que besteira! — Ele gargalha, fazendo o meu corpo chacoalhar. — Vou te dar essa vantagem, em consideração ao fato de que sua vida toda foi como a de um passarinho assustado protegido por uma gaiola. — Sua barba roça em meu rosto, escovando e ele funga meu pescoço. Fecho os olhos apenas desejando que ele vá embora, com o coração palpitando forte. — Mas se acostume com a ideia de que é uma questão de tempo para você ser definitivamente minha.

Siegfried beija meu rosto e se afasta, pulando para fora da cama, rindo e saindo do quarto. Ele abre a porta e eu me sento, respirando como alguém que se afogou em uma piscina.

Chame alguém para trocar os lençois! — Grito.

Ele estala a língua nos dentes e sai do quarto, fechando a porta.

❖❖❖

E você não aproveitou nada? — Pandora sorri por entre seus lábios pintados de gloss rosado, exibindo dentes simétricos. Seus olhos azuis se abaixam para a xícara de café. — Que desperdício, Dallas, um deus nórdico daqueles!

Tiro os olhos da grande janela na frente do balcão de madeira em que estamos sentados em cadeiras altas para encarar minha irmã. Seu casaco impermeável azul marinho está apoiado em sua cadeira e ela usa um suéter azul clarinho que deixam seus olhos ainda mais belos e brilhantes.

Pandora tem os cabelos cortados em chanel, em um tom castanhos escuros e ondulados, seu celular ultramoderno e cheio de aplicativos que nem mesmo um agente da CIA sabe que existem, mas com uma capinha brilhante e cor-de-rosa que toda menina adora ter. Ela é apenas dois anos mais jovem que eu, mas já terminou a segunda faculdade, um gênio da matemática e uma total sem jeito para relações pessoais, que se esconde na timidez e nos livros de romance que adora ler.

Olho para os lados, tendo certeza que ninguém está escutando nossa conversa. Até que nos misturamos bem com a população, embora fique óbvio que somos turistas e pessoas importantes, especialmente quando os soldados da máfia fecham o café para que possamos degustar de duas xícaras de qualquer coisa escolhida na sorte no cardápio. Na verdade, Pandora até usou um aplicativo de tradução de imagens, mas eu não estava com cabeça e nem prestei muita atenção, só exigi que viesse algum café aromatizado com qualquer coisa bem alcóolica.

O local é extremamente agradável, colorido, meio mal organizado com prateleiras cheias demais que dão um charme aconchegante, uma empresa familiar com certeza. Apesar do chão molhado e a neve que se acumula nas calçadas, dentro de todos os locais é bem quente por causa do sistema de calefação e ficam bem cheios de gente. As pessoas saem de suas casas para variar o ambiente. Eu sei bem como elas podem se sentir presas em um mesmo lugar, não que eu tenha direito de reclamar quando morei em uma mansão que tinha inclusive lojas no andar de baixo, mas, ei, uma pessoa fica de saco cheio de não ter mais opções.

Não diga essas coisas, Siegfried é por demais desagradável. — Reviro os olhos querendo esquecer, tiro a xícara do pires e dou um gole no café com gosto de amêndoas. Pandora ergue as sobrancelhas bem desenhadas por um estilista famoso, querendo mais detalhes. — Vou confessar que lavei o rosto sete vezes depois que ele saiu, incomodada com a sensação de sua barba na minha pele que parecia mais marcada que as tatuagens que ele possui.

Ai, eu sabia! — Ela bate as mãos finas, de unhas compridas e esmaltadas de cor-de-rosa, com animação. — Aposto que ficou excitada!

Claro que não, ele estava com a barba cheia de sangue, matou um garçom, lembra? Eu estava irada.

Que bruto. — Ela sorri pegando sua xícara e dando um gole rápido, apoiando-a de novo no pires. Ela pega a bolachinha de nozes que veio no pires, mas antes de colocar na boca, comenta: — Se todos esses kindreds (1) forem assim, vou ficar com a calcinha molhada o tempo todo!

Nem pense. Se fizer qualquer coisa, o pai te mata.

E o Sr. Drake não tem nada a ver com isso, se você não contar, eu não vou contar... — Ela coloca a mão livre no ombro, fazendo charme. — E ele nunca vai saber! — Encerra colocando a bolacha na boca, mastigando.

Que bom que ele está ocupado demais com as negociações do casamento para prestar atenção em você aprontando mais das suas, não é? — Friso, dando mais um gole no café.

Ele está muito ocupado procurando a gravata perfeita para usar amanhã. Você seja boazinha e curta a sua folga sem sorrir para mais ninguém e não aborreça o seu futuro marido.

Não diga isso assim.

Só disse verdades. — Ela encosta a cabeça na mão e fica me encarando, observando enquanto termino o café. — Essa cidade é tão monótona que não sei onde devo levar você para a despedida de solteira!

De que adianta? Se eu for para qualquer lugar aquele viking vai aparecer para me tirar de lá, daqui a pouco estou usando uma coleira com o nome dele em dourado!

Hmmm, eu gostaria de ver isso. — Ela lambe o gloss, incapaz de esconder o sorrisinho detestável de deboche.

Ah, pare.

Dallas Drake, finalmente domada! — Ignorando os avisos, ela continua rindo, tapando a boca e alcançando o celular. — Vamos ver se encontro um bom lugar para sua despedida de solteiro, não vou deixar o minha irmã favorito e melhor amiga se casar sem uma festa à altura!

Sabe que não gosto de multidões e não aprecio confusão, querida irmã. Sei que quer ir para uma festa e me usar como desculpa, mas vou passar! — Reviro os olhos e desço da banqueta, pegando o casaco cinza de lã e vestindo. Alcanço as luvas de couro ao lado da xícara vazia. — Quero conhecer a cidade, vamos para um museu.

Claro, ótimo! — Ela rapidamente digita em seu celular. — Tem um museu mesmo que eu quero te levar, vai ser imprescindível para agregar conhecimentos para a lua de mel.

Qual? O museu de história viking? — Pego minha bolsa Hermes branca.

Não, o Museu Falológico Islandês. — Ela dá uma gargalhada, pisando com as botinas de salto fino no assoalho. — O museu do pênis!

Ah, vai se ferrar! — Até me afasto dela, dando passos em direção a porta de saída. Os soldados de ternos pretos se levantam de suas cadeiras e dois deles se adiantam, abrindo a porta, deixando o vento frio entrar, um deles checa a rua antes de me deixar sair.

Pandora vem atrás de mim, colocando a bolsa Balmain de couro cor-de-rosa com pedrarias de ouro. Minha irmã tem uma coleção de sapatos e bolsas que precisa de dois quartos para ser guardada, mas sua paixão mesmo são computadores e outros eletrônicos, como videogames e um simulador espacial réplica de um que tem na NASA, presente de Natal de nossos pais.

Você adora arte e quanto mais esquisita melhor. — Ela fecha o zíper da jaqueta cobrindo o corpo, colocando o capuz para se proteger do vento frio. — Li que o maior exemplar exposto é o pênis de uma baleia azul.

Depois de ontem, prefiro evitar qualquer localidade que se transforme em uma “DR” com Siegfried depois.

Uau! — Ela aponta o celular para mim e tira uma foto, enquanto estou assoprando as mãos para me livrar um pouco da sensação de frio antes de por as luvas, se você fizer isso, ficam mais quentes. — Que momento histórico para a humanidade, o dia que Dallas Drake evitou uma discussão! Vou considerar que isso é uma prova de amor, sabe, quando os namorados mudam seus hábitos em prol do relacionamento.

Em prol da minha sanidade, Pandora, da minha sanidade. — Prendo o botão das luvas no pulso e caminho pela calçada em direção ao 4x4 blindado que nos espera. Minha irmã costuma andar de moto, mas nesse frio, até ela prefere o conforto de um luxuoso veículo. — Se tem algo que aprendi sobre Siegfried Turgard é que ele não conhece limites. Se eu quiser vencer esse jogo, tenho que saber quais são os limites dele.

Pelo amor de Deus, Dallas, é uma lua de mel, não uma guerra. — Pandora exaspera guardando o seu celular.

Um soldado loiro de óculos escuros abre a porta do carro para nós. Pandora confere cada pedacinho do corpo desse homem.

Não se esqueça de que nossas famílias são inimigas. — Eu a lembro, em pé na frente do veículo, antes de entrar.

É de repente que acontece, escuto os barulhos dos disparos violentos de um rifle, os vidros do café quebrando e os soldados gritando em uma língua incompreensível. Pandora se assusta, se abaixando, até que um dos soldados puxa o meu braço para me abaixar e me joga dentro do carro, empurrando minha irmã em seguida. O motorista não liga o motor para sair da vaga e percebo sua janela aberta, o sangue na parte de dentro do para-brisa, escorrendo.

(1) Kindreds: Significa familiares, parentes, mas na família viking, significa qualquer um que tenha feito um pacto e seja da organização.

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