POV Abigail.
A chuva não estava dando trégua naquele dia, meu pelo estava encharcado e os resíduos que eu deveria descartar pareciam ainda mais pesados enquanto eu os arrastava pela terra lamacenta. Escorreguei várias vezes, caindo de lado no chão gelado da floresta de Nemadji, ao sul de Duluth. Nunca tive permissão de ir até a cidade, como outros jovens lobos da minha idade, o alfa jamais permitiria se eu pedisse. Como uma simples ômega, não recebi nenhum tipo de instrução, não sabia assumir minha forma humana e todos me viam apenas como um peso para a alcateia Umbra. Tudo o que eu conhecia vinha de ouvir as conversas enquanto eu passava despercebida e o que eu observava do topo das colinas.
Parei por um momento, tomando algumas respirações e permitindo um momento de descanso para os meus músculos doloridos. Estava fraca pela falta de alimentos. Fazia dias que eu não conseguia me alimentar, pois a alcateia vinha passando por uma séria escassez de alimentos enquanto nosso alfa estava focado em sua campanha para alfa supremo. Tudo o que sobravam eram ossos que mal eram possíveis serem roídos. Meu estômago roncou alto e gemi, erguendo meu focinho para o céu e permitindo que a chuva lavasse meus pelos.
― Minha deusa, nos ajude. ― Pedi em uma breve oração. Risadas soaram próximo de onde eu estava, me assustando.
Um pequeno grupo de lobos se aproximava, a elite da nossa alcateia. Entre eles estavam Marcus, Benjamin e Jason, os melhores caçadores e guerreiros, treinados desde jovens pelo próprio alfa. Eles se aproximaram, me cercando enquanto eu me deitava no chão, acoada e com minha cauda entre as patas traseiras. Eu já havia sido intimidada por eles várias vezes, estava habituada aquela situação, mas algo parecia assustadoramente diferente naquele dia. Eu não sabia se era a chuva que molhava seus pelos ou os raios que cortavam os céus, mas eu podia sentir com cada fibra do meu ser o perigo emanar daqueles três lobos.
― Acha que a Deusa ouvirá uma ninguém como você? Suja, fraca, inútil. ― Marcus, o grande lobo de pelos castanhos e brancos, disse rosnando. Seus olhos verdes brilhavam enquanto ele mostrava seus dentes para mim. ― Você só está viva pela clemência do alfa, deveria ter perecido com sua mãe.
Marcus River era um lobo cruel, famosos por sua violência desmedida em batalha e sede de sangue nas caçadas. Com a pouca comida disponível, seus ataques a mim estavam se tornando cada vez mais constantes. Para a minha sorte, a alcateia não podia desperdiçar mão de obra, ou a situação poderia ficar ainda pior com doenças se espalhando. Os demais ficaram para trás, dando risadinhas enquanto eu era a válvula de escape daquele lobo.
― O que está acontecendo aqui? ― Uma voz firme questionou, não muito longe de onde estávamos.
Não me atrevia a erguer meus olhos, afinal, uma ômega não era digna de olhar para o filho do alfa, mesmo que ele se mostrasse alguém gentil com todos, algo incomum para um possível sucessor direto. Rafael sempre foi justo, nunca discriminou ninguém pelo seu status e vivia cercado pelas lobas mais populares da alcateia. Ele passou um bom tempo estudando no mundo humano por ordem de seu pai. Eu sempre admirei Rafael de longe, desde que eu era uma filhotinha. Um lindo lobo de pelos acinzentados e profundos olhos da cor das copas das árvores. Era impossível para qualquer fêmea não se sentir atraída por ele.
― Nada Rafael, apenas vendo se essa imprestável estava ao menos cumprindo com seu dever. ― Marcus disse me chutando com força.
― Parem com isso e voltem para a alcateia. Preciso do relatório sobre a caçada de ontem.
Enquanto passavam por mim, um após o outro, eu era pisada ou chutada. Os rosnados na minha direção não eram disfarçados e deixavam clara suas ameaças. Conforme os sons dos passos se afastaram, ergui meu focinho para ver Rafael, liderando o grupo, caminhando para longe de mim. Sim, eu tinha de entender de uma vez por todas que eu jamais estaria próxima dele. Meu coração batia tão forte em meu peito, como se minha alma clamasse por aquele sonho impossível que era me tornar a companheira de Rafael Angenna.
― Sou mesmo uma idiota. ― Retomei ao meu dever, arrastando o grande saco até a beira da estrada, onde a coleta de resíduos dos humanos costumava passar em dias específicos.
Mesmo de longe, me dei o prazer de observar Rafael, que parecia sempre muito ocupado. Tentava não ser vista, já que ele estava constantemente cercado por aqueles lobos horríveis. Grande parte do tempo eles andavam pela alcateia em sua forma humana, por ser mais prático, mas não diminuia em nada a beleza de Rafael, que era um homem alto, com corpo atlético e forte, cabelos platinados, e os lindos olhos verdes brilhantes.
Das sombras, eu suspirava, sonhando acordada com situações improváveis onde Rafael olhava para mim além da fraca loba sem nenhuma instrução. Estava tão perdida em meus pensamentos que não notei a aproximação de algumas lobas, dentre elas Evangeline, a loba com maiores chances de se tornar a companheira de Rafael.
― Chega a dar pena, te ver babando assim pelo Rafael. ― Evangeline disse com sua voz doce e suave carregada com veneno. ― Já se olhou no espelho alguma vez? Uma loba magra e pequena como você, tão desleixada, terá sorte se um lobo doente te aceitar como companheira.
As lobas ao redor de Evangeline riram, balançando suas caudas com alegria enquanto eu só podia me encolher e aceitar seus insultos.
― Uma coisa dessas nem deveria estar viva. ― Uma das lobas, amiga de Evangeline, disse, dando um passo a frente. ― Já que foi mesmo sua culpa sua mãe ter sido executada pelo alfa, o mínimo era você ter morrido com ela.
Meus olhos se encheram de lágrimas enquanto as lobas continuavam a rir e debochar de mim. Meu coração doía horrivelmente cada vez que eu me lembrava daquele maldito dia.
― Faça um favor a si mesma, e desapareça daqui antes que eu me encarregue de fazer o que o alfa não foi capaz. ― A ameaça de Evangeline fez meu corpo inteiro tremer, imediatamente me coloquei a correr debaixo de gritos e ofensas.
POV Abigail.A alcateia Umbra há dias andava bem agitada. Marcus fazia rondas constantes enquanto Benjamin era visto com alguns anciões. Jason estava sempre ao lado de Rafael e todos os lobos pareciam preocupados. Como eu vivia mais afastada, não tinha ideia do que estava acontecendo, mas ao que parecia, era algo muito sério.Consegui encontrar um pequeno coelho e estava me alimentando quando o alarme soou. Um som que fez meu corpo inteiro tremer. A última vez que a alcateia foi convocada, foi para a execução da minha mãe diante de todos. Com relutância, me limpei e voltei para a alcateia. Todos estavam em suas formas lupinas para ouvir as palavras do alfa. Pensando bem, já tinha um bom tempo que ninguém via o alfa, desde que ele tinha partido em campanha para alfa supremo.Os cochichos estavam espalhados entre os vários grupos que aguardavam ansiosos pelas notícias. No toco do grande carvalho, bem no centro da alcateia, Rafael e Jason surgiram, ambos tinham um ar de autoridade enquan
POV Abigail.Trabalhei com afinco, decidida a mostrar para Rafael o meu valor dentro da alcateia. Mesmo a função de uma ômega era importante para o bem-estar de todos. Todos estavam como eu, animados e trabalhando duro, pois viam em Rafael uma nova era para a alcateia Umbra.Após levar as últimas carcaças para longe do território, fui até um riacho próximo para limpar meus pelos. Olhando meu reflexo, percebi o quão horrível eu estava. Meus longos pelos estavam emaranhados e cobertos por sangue seco e lama, meu corpo era pequeno e magro, por conta da desnutrição que passei desde filhote. Eu sabia que não era atraente para os machos por vários motivos, mas eu também sabia que tinha atributos que se destacavam, como meus olhos de cor dourada. Apenas minha mãe e eu dividimos essa característica, enquanto os demais tinham, em sua grande maioria, olhos verdes ou castanhos.Sentei-me sobre uma grande pedra, aproveitando os poucos raios de sol para me secar, quando ouvi alguém se aproximando.
POV AbigailPor mais que estivesse feliz, sentia uma barreira entre mim e Rafael. Minha cauda não parava de abanar enquanto o silêncio prolongava. Os lobos ao nosso redor estavam tensos, olhando para Rafael, esperando alguma palavra dele. Eu também estava.Conseguia entender o choque do Rafael, afinal ninguém espera ter seu destino ligado a uma loba ômega, mas o lobo por quem me apaixonei era justo e gentil, ele jamais olharia para um lobo e julgaria por sua casta, mas sim por seu real valor. ― Rafael. ― Marcus se aproximou de Rafael, o surpreendendo. Os pelos cinza de Rafael se eriçaram e um rosnado baixo ecoou pela floresta, como um aviso silencioso.― Vamos voltar. ― Rafael disse se virando, sem olhar uma segunda vez para mim. O medo me dominou por um momento e antes que pudesse me deter, saltei na frente dele o olhando diretamente e sentindo mais uma vez a forte conexão de destino que nos ligava.― Meu alfa, perdoe a minha ousadia, mas eu gostaria de solicitar um momento…― Saia.
POV AbigailTentei encontrar com Rafael no dia seguinte, mas ele havia partido para uma reunião com a aliança das alcateias. Sem um alfa supremo, as relações entre os alfas estava ficando cada vez mais tensa. Ragnar era o mais cotado, mas sua morte surpreendeu a todos e deixou uma grande dúvida sobre o futuro da aliança. Eu preferi me manter a margem, escondida de todos, afinal Rafael ainda não havia oficializado nada e eu não tinha o direito de falar pelo alfa. Mantive minha rotina e suportei os maus tratos dos lobos. Fui até o rio após cumprir meus deveres, em um local mais escondido e longe do caminho que alguns lobos pudessem tomar. Lavei meu pelo o melhor que consegui, afinal a futura companheira do alfa não podia ser vista suja. Aquele pensamento me fez pular na água, espalhando gotas por todos os lados enquanto eu dava gritinhos de alegria.― Eu serei a companheira do Rafael. Minha deusa! ― Continuei pulando feliz, até que ouvi passos se aproximando.Diferente da outra vez, nã
POV AbigailPassei aquela manhã me arrastando pela margem do rio. A dor por todo o meu corpo, até mesmo por dentro, era horrível. Me arrastei pela margem do riacho, até um trecho que eu sabia ser mais raso e tranquilo. Tentei me erguer, mas minha pata traseira direita estava quebrada, eu gemia e chorrava baixinho, com medo de que alguém pudesse me ouvir.Entrei no riacho e segui por ele, subindo até um grande lago. O sol estava alto, o calor e a fome já se tornando insuportáveis, mas eu não podia parar. Meu cheiro estava muito forte por conta do sangue e do abuso que sofri. Me sentia suja, então deitei na água corrente, deixando que o fluxo da água levasse tudo para longe. Acabei adormecendo e acordei com o anoitecer.O calor deu lugar ao frio, meus pelos encharcados e pesados dificultaram um pouco minha movimentação. Pelo menos o sangramento havia parado. Manquei para fora do riacho e entrei na floresta. Eu conhecia bem aquela região e logo encontrei uma pequena toca onde poderia me
POV AbigailMinhas patas batiam com força contra a terra seca da floresta, poeira subindo cada vez que eu deslizava, escapando de um ataque lateral. Ainda sentia muitas dores por todo o meu corpo, mas não podia me dar ao luxo de parar de correr, ou seria morta pelos lobos da alcateia Umbra, o lugar que um dia chamei de lar.Estava ficando mais difícil respirar, minhas costelas ainda doíam muito e tive medo que um movimento mais repentino pudesse causar algo mais sério. Os uivos e risadas ecoavam pela mata enquanto eu era caçada, mas nenhum deles conhecia aquela floresta como eu. Mesmo ferida, eu ainda tinha várias coisas ao meu favor e usei todas elas para me manter viva.Umbra fazia fronteira com outra grande alcateia, a Rivermoon. Maior em território e força, Umbra nunca teve o poder de ir contra o alfa da alcateia vizinha, mantendo assim a política do bom vizinho e respeitando as fronteiras, mas havia uma área neutra que poucos conheciam. Aquele lugar era utilizado para os descarte
POV FelixNão fazia ideia de onde aquele cachorro tinha aparecido, quando percebi já era tarde e não tinha mais como desviar dele. Tinha acabado de pegar minha moto no concerto e já estava destruída novamente. Minha vontade era chutar aquela bosta de cachorro, mas quando olhei com mais atenção percebi que se tratava de um lobo, uma loba para ser mais exato. Aproximei meu rosto de seu focinho, sentindo a respiração fraca.― Ei, loba. Você está viva? ― Não tive nenhuma resposta. Os batimentos estavam cada vez mais fracos e, mesmo que eu não quisesse me envolver com a merda de uma errante, não podia apenas ignora-lá.Peguei meu celular e mandei algumas mensagens, mas não tinha tempo para esperar uma resposta. Levantei minha moto, confirmando que tudo estava funcionando, então peguei a loba e tentei imaginar a melhor forma de colocá-la na minha moto. ― Que merda. ― Coloquei a loba no chão, tirei minha jaqueta e a vesti na loba, prendendo suas patas com cuidado. Depois de acomodar a gran
POV AbigailAchei que a morte seria silenciosa e tranquila, mas os barulhos ao meu redor estavam me perturbando, sem falar pelas dores que estavam por todo o meu corpo. Abri meus olhos lentamente, diante de mim estavam duas pessoas vestindo roupas azuis. A luz branca era muito incômoda, e grunhi com o desconforto, voltando a fechar meus olhos. Tentei me mover, mas algo prendia minha pata. Logo várias pessoas, todas com as mesmas roupas, estavam ao meu redor, falando alto, escrevendo em pranchetas e apertando botões aleatórios em máquinas.― Verifiquem os sinais vitais, administrem a medicação e chamem o médico responsável pelo caso. ― A voz de uma mulher distribuia ordens com firmeza.O cheiro de gesso misturado com o característico odor de hospital estava incomodando meu nariz. Escondi meu focinho embaixo da pata, tentando amenizar o mal-estar que sentia e tentei abrir os meus olhos novamente.Uma mulher de azul estava ao meu lado e pude ver a última pessoa saindo pela porta. O cheir