A escolhida do Don
A escolhida do Don
Por: Joelma Dejesus
Prólogo

Querido diário,

Hoje eu me peguei pensando novamente sobre o amor e o que isso realmente significa para mim. A forma como a minha irmã está se entregando a um relacionamento com alguém que nunca conheceu realmente me deixou intrigada. A ideia de abrir mão das minhas próprias escolhas, dos meus próprios desejos, para agradar outra pessoa, parece tão distante da minha realidade, Scarllet parece fazer isso com grande facilidade. 

A verdade é que não consigo me ver vivendo assim, submissa a expectativas e ajustando minha vida para se encaixar na de outra pessoa. Sinto que meu futuro não é necessariamente ao lado de um homem, nem que eu precise abrir mão do que sou para estar com alguém. A ideia de ter que aprender todas as preferências de alguém, esquecendo das minhas, e sempre temer desagradar, é algo que não consigo aceitar, é como abrir mão da minha vida, em prol de outro.

Além disso, vejo como a admiração por esse Giovani, que nem se quer conheçemos, é quase como um culto à aparência ou função. Ele pode ser bonito, mas será que isso realmente faz dele alguém que merece tanto sacrifício? A foto dele, que Scarllet carrega consigo em seu pingente, é de anos atrás; será que ele é realmente assim ainda? Será que beleza e poder é motivo suficiente para abrir mão da nossa própria identidade?

Acho que, no fim das contas, o que eu desejo é encontrar um equilíbrio onde eu possa ser eu mesma, onde possa manter meus desejos e valores intactos. Talvez o amor seja algo diferente do que eu vejo ao meu redor, algo mais alinhado com o respeito e a parceria verdadeira, e não com sacrifícios e expectativas infundadas.

Por enquanto, vou continuar me conhecendo e buscando o que realmente faz sentido para mim, sem me deixar levar pelos padrões que os outros tentam impor.

Até mais,

Antonella Bellini

Dois anos depois

Já se passava da metade da manhã,  o som dos saltos de Scarllet ecoava pelo corredor, enquanto ela corria apressada, cheia de energia pela casa. — Ele está vindo! — Sua voz, transbordando de puro entusiasmo, fez-me aguçar os meus ouvidos, dando uma certa atenção. Ela parecia quase tropeçar em suas próprias pernas, levada pela agitação, mas a alegria de Scarllet era inconfundível.

Com seus cabelos loiros claros e olhos azuis oceânicos brilhando, Scarllet estava mais animada do que nunca. Seu celular estava na mão, e ela mal conseguia esconder a felicidade ao anunciar a notícia. Eu estava deitada no chão da sala, absorta no meu livro *Como Convencer Alguém em Noventa Segundos, e apesar de ser a mais velha, Scarllet tinha o poder de transformar qualquer evento em algo grandioso.

— Ele está voltando! — ela repetiu, como se não pudesse acreditar na própria sorte. A minha questão era saber exatamente quem, ou quê? Se tratando de Scarllet, qualquer chegada poderia ser plausível. 

Levantei um olhar breve, tentando manter o foco no livro, mas a euforia dela era contagiante. Sabia que Scarllet estava falando de algo relacionado ao Geovani, seu amado, que aparentemente era uma presença constante em seus pensamentos e conversas, mas a sua presença, nunca fora existente. O entusiasmo dela sempre indicava algo grande, mas eu estava imersa em técnicas de persuasão, e a empolgação dela me fazia reconsiderar a importância do evento.

— Scarllet, calma — Lhe disse, tentando desviar minha atenção do livro, para contér a sua euforia. — Quem é esse “ele” que está voltando? — fiz um gesto com as mãos para marcar a importância da pergunta.

Scarllet me olhou com o brilho ainda mais intenso em seus olhos, seus saltos fazendo um ritmo impaciente no chão. Nossa mãe entrou apressada, secando as mãos em um pano de prato.

— O Geovani!  O Geovani, irmã, mamãe, o Geovani está de volta! — A notícia me parecia apenas um blefe, como se estivéssemos em um ciclo repetitivo. A cada novo semestre, Geovani parecia voltar, mas os encontros sempre se desvaneciam. Era uma história antiga de amor não correspondido. 

Segurei o livro com mais firmeza, observando minha mãe sorrir amplamente, afim de acalmar a sonhadora Scarllet. A agitação tomava conta da casa, quase como se fosse uma celebração. Eu, por outro lado, me deitei no tapete, distante da euforia, novamente. — Flha calma! — Mamãe falou com certa paciência. 

— Ella? Você não está feliz? — Scarllet me perguntou, com um tom animado, como se exigisse uma animação de mim também. 

— Eu vejo que é realmente algo importante para você — respondi, tentando não deixar a falta de entusiasmo transparecer. — Espero que tudo ocorra bem desta vez. — Lhe disse folheado o meu livro para a próxima página. — Claro que vai correr tudo bem, ele está vindo, mãe, ele esta vindo! — Disse com certa urgência, tudo bem, eu compreendia a sua necessidade de casar, ter uma penca de filhos e se tornar de uma vez, a senhora Ferreti. 

— Vai sim, meu amor, claro que vai! — Mamãe cogitou, sorrindo para Scarllet, por outra via, encarando-me, como se pudesse me persuadir. — óbvio que vai! — Lhe disse, ignorando-a.

Scarllet sorriu ainda mais, radiante, e se preparou para sair, com seu entusiasmo quase inabalável. Enquanto ela saía da sala, suspirei levemente e olhei para a minha mãe, que estava parada.

— Você não acredita mais que ele venha, não é? — perguntou-me mamãe, com uma pontada de preocupação. Dois anos de noivado e Geovani nunca havia vindo vê-la, nem mesmo para o sepultamento do próprio pai, compareceu . O que poderia esperar do meu futuro cunhado? Se ele aparecesse no exato momento seguite, para mim, estaria em atraso. 

— É um pouco difícil — afirmei,  buscando me concentrar no meu livro novamente, por mais que eu ame a minha irmã, no momento, persuadir, me parece mais interessante. 

Minha mãe me olhou com um misto de tristeza e resignação. Eu entendia a necessidade de Scarllet acreditar no retorno de Geovani, mas para mim, a falta de presença dele era uma constante lembrança de que talvez as promessas e expectativas fossem apenas palavras vazias. 

Enquanto voltava ao meu livro, pensei sobre o que realmente importava para mim e para Scarllet. Eu desejava que ela encontrasse a felicidade, mesmo que a realidade parecesse mais complexa do que as promessas de um futuro perfeito.

Com a morte do Don, a cidade mergulhou no caos. Nunca antes a falta de um cérebro numa organização tinha sido tão devastadora. A ausência de liderança deixou um vácuo que rapidamente se tornou um terreno fértil para a máfia inimiga, se é que podíamos, chama-los assim, um bando de moleques, homens sem futuro, que se aproveitou da fragilidade para dominar a cidade.

A nova administração criminosa não apenas interferia no comércio local, mas também desrespeitava as regras estabelecidas que mantinham um frágil equilíbrio entre as facções. O caos se espalhou, com disputas de território, operações ilegais em alta escala e uma crescente onda de violência que ameaçava desestabilizar completamente a cidade.

A antiga ordem, antes controlada com uma mão de ferro, estava agora em ruínas. As regras e protocolos que garantiam algum grau de estabilidade e previsibilidade foram ignorados, a cidade se via presa em um ciclo incessante de crimes e corrupção. As famílias que antes temiam ao Don, agora lutavam para sobreviver sob a nova tirania, e o comércio legítimo estava sendo destruído pela competição desleal e pela extorsão.

O vácuo deixado pela morte do Don não apenas enfraqueceu a estrutura da organização, mas também expôs a fragilidade dos acordos de poder estabelecidos. A cidade, antes uma entidade complexa e organizada, agora parecia uma máquina desgovernada, e a luta pela supremacia estava levando todos a um estado de desespero e instabilidade.

O domínio da máfia rival parecia imbatível de certo modo, mas dentro da sombra da crise, grupos descontentes e facções internas começaram a se reorganizar, planejando o que poderia ser a próxima grande virada na história criminosa da cidade. O cenário estava pronto para novos jogos de poder, colocando o futuro da cidade em jogo, dependendo de quem conseguiria reverter a maré ou aproveitar a situação ao máximo.

A presença de Geovani poderia sinalizar o início de uma nova era, uma esperança de estabilidade em meio ao caos que tomava conta da cidade. Isso, claro, se ele possuísse a mesma inteligência e sagacidade do pai, algo que ainda permanecia uma incógnita. No entanto, a incerteza sobre suas capacidades e a promessas de uma mudança significativa eram tópicos para uma discussão futura. 

Enquanto isso, a agitação constante de Scarllet dentro de casa tornava-se cada vez mais insuportável. Sua euforia e nervosismo, embora compreensíveis, não se alinhavam com meus planos de passar o dia mergulhada na leitura. O ambiente em casa estava carregado de uma tensão que parecia se intensificar a cada instante.

Com Scarllet ocupada com preparativos para receber a sua futura sogra, juntamente com as suas constantes idas e vindas, a pressão se acumulava. O que deveria ser um dia tranquilo com um bom livro nas mãos estava se transformando em um cenário de caos e ansiedade. Decidi que sair de casa era a melhor solução para preservar minha sanidade mental e aproveitar o dia da maneira que planejei.

Peguei meus pertences e, em vez de me deixar ser arrastada pela agitação da casa, saí para respirar um pouco de ar fresco e encontrar um refúgio em algum lugar tranquilo. Caminhei pelas ruas da cidade, buscando um espaço onde pudesse relaxar e retomar o controle da minha própria calma, longe da confusão e da expectativa que Scarllet com o retorno de Geovani traziam para o ambiente doméstico.

A cidade, apesar de seu tumulto, oferecia diversos lugares onde eu poderia encontrar paz momentânea. Ao encontrar um pequeno café escondido entre os edifícios, entrei e me acomodei em uma mesa silenciosa, esperando que a tranquilidade do lugar pudesse me ajudar a recuperar a concentração e aproveitar finalmente o dia como eu havia planejado.

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