Giovani Ferreti

Alguns anos atrás

O cheiro de metal enferrujado e frio que penetrava os meus ossos. Minhas mãos estavam atadas, os pulsos cercados por ferros duros que pareciam se aprofundar a cada movimento. A dor pulsava, um lembrete constante da minha prisão. 

O ambiente ao meu redor era sombrio e claustrofóbico, as paredes impregnadas de um silêncio opressivo, quebrado apenas pelo eco distante de passos. Eu sentia cada ferimento, cada contusão, como se meu corpo estivesse gritando por liberdade. O atrito do metal contra minha pele era agonizante, e a pressão incessante me deixava à beira da loucura.

Minhas lembranças eram turvas, mas algumas imagens persistiam: rostos conhecidos, risadas, um mundo além dessas paredes. A cada instante, a dor se tornava mais insuportável, como se tentasse arrancar algo de mim. Eu me sentia fragmentado, uma sombra do que sou, lutando contra o desespero que tentava me consumir.

A luz que filtrava pelas frestas era um lembrete cruel de quem eu sou, e o futuro que me espera. Sussurros de esperança pareciam tão distantes quanto o sol. Eu sabia que precisava resistir, que não posso deixar que a escuridão me definisse. Com cada batida do meu coração, eu jurei que lutaria, mesmo que cada segundo parecesse um século.

Fechei os olhos e mergulhei na escuridão do porão, um espaço que se tornara a minha prisão por  trinta e seis dias. Cada dia se arrastava como uma eternidade, e as sombras me envolviam, quase como se fossem uma extensão de mim. Os rostos familiares vinham à mente, imagens vívidas que, embora reconfortantes, carregavam também uma tristeza profunda.

Lembranças de risos e brincadeiras surgiam, mas logo se dissolviam em uma névoa de dor. O olhar distante do meu pai, a falta de atenção, os momentos em que eu ansiava por sua aprovação, tudo isso se transformava em uma faca afiada, cortando mais fundo a cada recordação. Era um paradoxo cruel: os bons momentos eram ofuscados pelo desleixo e pelo vazio que ele deixava.

Na solidão do porão, a raiva e a saudade se entrelaçavam. Eu me perguntava se ele sabia do que eu estava passando, se tinha alguma ideia do peso que suas indiferenças carregavam. A cada estalo das correntes, a cada suspiro cansado, eu lutava contra a ideia de que aquela escuridão era tudo o que eu tinha agora.

Mas mesmo na dor, havia uma faísca de resistência. Essas memórias, embora pesadas, eram também um lembrete do que eu desejava recuperar. O amor que eu buscava, a conexão que parecia tão distante, se tornavam meu combustível. Enquanto o tempo continuava a se arrastar, eu prometia a mim mesmo que, quando a luz finalmente retornasse, eu não deixaria que a escuridão definisse quem eu sou. 

E embora tudo parecesse indicar que estava no fim, dentro de mim havia uma certeza inquietante: meu pai preferiria mil vezes que seu herdeiro morresse corajosamente nas mãos do inimigo do que ser resgatado como um covarde. Aquela ideia se aninhava em minha alma, pesada e cruel. Era um fardo que eu carregava, a certeza de que a minha valia, aos olhos dele, estava atrelada à bravura e ao sacrifício.

Aquelas paredes frias do porão, a opressão da escuridão, tudo me lembrava que a minha saída dependeria de mim, e apenas de mim. Seria um caminho tortuoso, repleto de dor e incertezas,  eu sabia que não havia outra alternativa. Era viver ou morrer, e eu escolheria a vida, mesmo que isso significasse enfrentar a desaprovação de um pai que mostrou o que é amar.

Com cada batida do meu coração, a determinação crescia. Se a coragem era o que ele esperava de mim, então eu me tornaria isso. As memórias de sua indiferença se tornariam um combustível, um impulso para desafiar essa prisão e todos os demônios que ela trazia. A saída não seria fácil, mas eu não me permitiria ser lembrado como um covarde.

Assim, em meio à escuridão, uma luz tênue começou a brilhar. Era a chama da esperança, alimentada pela vontade de viver e pela certeza de que, ao final, eu teria de escrever minha própria história, e não deixar que a sombra do meu pai a definisse. A luta começaria agora, e eu estava pronto para enfrentar o que viesse.

O silêncio do porão era ensurdecedor, mas dentro de mim havia um tumulto de determinação. Com as mãos ainda atadas, comecei a explorar as correntes que me prendiam. Cada movimento era um desafio contra a dor que pulsava em meus pulsos, mas eu não podia me render. A necessidade de escapar queimava em meu interior.

Concentrei-me na corrente que prendia minhas mãos. Através do atrito constante, comecei a sentir a fricção das algemas contra a pele. Cada esforço fazia o metal deslizar um pouco mais, e a esperança crescia a cada centímetro conquistado. Finalmente, depois de um esforço interminável, a corrente se soltou. Uma onda de alívio percorreu meu corpo, mas não havia tempo para comemorar.

Com um movimento rápido, desci ao chão e me arrastei, buscando qualquer sombra que me protegesse da luz que poderia me denunciar. O cheiro de umidade e poeira preenchia o ar enquanto eu me esgueirava pelas frestas do porão. Cada passo era meticulosamente calculado, os ecos de passos distantes reverberando como um alerta em minha mente.

Finalmente, encontrei uma pequena abertura que levava ao corredor escuro. A luz da entrada parecia uma promessa, mas eu sabia que a liberdade ainda estava longe. Com cuidado, avancei pelo corredor, mantendo-me próximo às paredes frias, os batimentos do meu coração ressoando como um tambor na quietude.

Ouvindo vozes ao longe, escondi-me atrás de um barril, a respiração pesada, cada músculo tenso. Eles passaram, alheios à minha presença, e quando o silêncio retornou, tomei coragem para continuar. A sensação de liberdade estava quase ao meu alcance, mas o medo me acompanhava como uma sombra.

Finalmente, cheguei à porta que levava ao mundo exterior. A luz ofuscante iluminou meu rosto, e a brisa fresca pareceu me reanimar. Com as mãos agora livres, empurrei a porta com toda a força que consegui reunir. Ela cedeu, e eu me vi diante da liberdade, pulsando com a promessa de uma nova vida.

Corri, abandonando as correntes do passado. Cada passo longe do porão era um passo mais próximo de ser quem eu realmente era. A noite envolveu-me, e com ela, uma determinação feroz de nunca mais voltar. A fuga não era apenas física; era a reafirmação de minha existência, uma luta pela liberdade que eu sempre almejei. Eu estava livre!

— Splah! — Ao menos foi o que eu pensei, antes de chegar em casa, recebendo um tapa ensurdecedor do meu pai ao pé da orelha. — Fugiu como um covarde! Você me envergonha Giovani! Não é digno de ser meu filho, meu herdeiro, meu substituto. — As palavras rancorosas do meu pai, ecoaram por todos os cantos da sala, fazendo todos os presentes olharem para nós. 

Meu rosto queimava pela vergonha, eu deveria estar morto? Como um garoto de onze anos poderiam lutar contra inimigos? — Giuseppe! Não fale assim conostro filho, ele...— Nem mesmo as palavras de defesa da minha mãe serviram para acalma-lo, com um olhar severo, o meu pai a fez calar-se. 

Outros sequestros vieram, varias tentativas de morte ao substituto do don, longe de casa, eu sequer sabia se eu era mesmo isso. Mas não havia como fugir, mesmo quando, seu pai ordena que você não esteja presente no seu funeral. Para ele, eu sempre serei um covarde, nunca mudará este fato. 

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