Perséfone falou rapidamente sobre a organização das prateleiras e me esforcei para decorar tudo até ter tempo de anotar. Em uns quatro minutos ela falou sobre rótulos, localizações, funções e até um pouco sobre sua vida pessoal. Eu apenas acenei como se tivesse compreendido tudo.
— E você não pode entrar na área de trabalho ou tocar nos vidros com as caveiras desenhadas sem ninguém por perto, entendeu?
— Sim.
— Ótimo, agora preciso que vá até a livraria do senhor Blunt e pegue algumas coisas. - Perséfone tirou de debaixo do balcão uma caderneta e um lápis, começou a fazer algumas anotações.
— Aposto que são livros de química. — Ela não respondeu e apenas arrancou o papel, colocando-o em uma bola amassada na minha mão.
— Considere isso como um teste.
— Não vou decepcionar você!
Saí animada e comecei a correr até a livraria, o vento agitando minhas tranças e algumas flores de cerejeira grudando-se em meu vestido. Minha vida estava começando ali. Em breve seria independente, e após guardar algum dinheiro realizaria meu sonho de costurar, desenhar vestidos e revolucionar a moda de Artémise. Com um pouco de sorte conseguiria até trabalhar para a família real.
Não via a hora de provar a Perséfone e ao senhor Ernie que podia ser prestativa, e buscar aqueles livros seria o primeiro passo. Mesmo que Perséfone e eu não tivéssemos começado bem, sabia que uma pessoa amargurada no fundo só precisava conhecer alguém gentil. E também, o comentário sobre seu nome foi mesmo idiota.
Ao chegar a porta da livraria bati o vestido e os sapatos, entrei com o olhar sério e orgulhoso de uma funcionária eficiente.
— Bom dia, senhor Blunt.
— Sim?
Olhei ao redor desejando que mais pessoas estivessem presentes para verem como estava me saindo bem, mas apenas outro funcionário organizava os livros nas imensas estantes de madeira que quase tocavam o teto.
— Minha chefe mandou que eu pegasse uns livros.
O senhor Blunt se estendeu sobre o balcão e me olhou curioso, retirando o cachimbo da boca e levantando muito uma de suas sobrancelhas.
— Quantos anos você tem?
— Quinze.
— Quem é a sua chefe?
— Perséfone, a filha do boticário.
Ele puxou um imenso livro com a capa de couro vermelho de uma prateleira atrás de si. Quando o bateu fortemente sobre o balcão uma imensa nuvem de poeira subiu e me fez coçar os olhos e tossir. Virou as páginas amareladas e começou a procurar algo com o dedo.
— Liam!
O rapaz ruivo veio correndo desegonçadamente para perto do balcão, era muito bonito, por sinal.
— Diga o nome dos livros.
Abri o papel na minha mão e meus olhos saltaram sobre as palavras, elas não faziam o menor sentido. Li e reli cada uma delas me perguntando se teria recebido a folha errada, se aquilo fazia parte do teste ou se era uma brincadeira cruel. Deixei a folha cair no chão e levei a mão ao peito, tentando me concentrar na respiração enquanto o ar faltava em meus pulmões.
— Por favor, Liam, Vamos logo com isso!
Liam recolheu o papel e foi até as prateleiras. O senhor Blunt não deu a mínima para minha crise de nervos.
Depois de tudo, eu esperava que estivesse indo buscar livros de química. Levar aqueles romances clichês poderia se tratar de um plano elaborado dela para me despedir, então teria que pedir desculpas a mamãe e voltar para casa.
Ela não tinha motivos para fazer isso, não poderia ser tão má. Tudo que eu devia fazer era obedecer e levar aqueles livros até a loja, e se ela me demitisse tentaria explicar que o papel havia sido escrito por ela. Era inegável que se tratava da sua caligrafia.
Perséfone não parecia ser alguém que lesse aquele gênero. Imediatamente comecei a tentar aceitar que era tudo verdade e que os livros eram para ela, mas as coisas simplesmente não se encaixavam. Buscar livros de romance não podia fazer parte do meu emprego.
Alguns minutos depois, Liam retornou com os quatro títulos que eu esperava e os colocou em minhas mãos, retomando seu trabalho logo em seguida.
Baixei os olhos com cuidado para a capa que estava em cima, estava um pouco descascada e o título não era totalmente visível, mas consegui distinguir as palavras: "Amor" e "Princesa".
— Senhor... — Estendi a mão para que o senhor Blunt me devolvesse o papel em que Perséfone escrevera os títulos dos livros, afinal aquela seria minha única prova de que levara os certos, não errados.
— O quê?
— O papel.
— Os pedidos escritos ficam comigo como garantia para a hora do pagamento.
Abaixei a mão e saí cabisbaixa da livraria, andei alguns passos apertando os livros com força contra meu corpo. Perséfone era mais esperta do que eu pesava.
Já estava pensando na vergonha que iria passar na frente do senhor Ernie e na decepção da minha mãe por ter perdido o emprego no primeiro dia.
Sim, eu tirei conclusões precipitadas sobre ela naquele dia. Enquanto algumas pessoas julgavam as outras pelos sapatos, eu costumava julgar pela sua literatura. Eu achava que as pessoas que liam fantasia eram sonhadoras irrecuperáveis, os que liam terror possuíam uma sede de sangue escondida em seu interior e os que liam romance eram meninas boas e apaixonadas. Eu estava errada. Mais tarde conheci todo tipo de leitor que lia todo tipo de livro, então passei a ser alguém mais normal e a julgar pelos sapatos.
Na minha cabeça, Perséfone me acusaria de falhar em uma tarefa simples como buscar livros. Aqueles livros não podiam ser realmente para ela. Ao ver meu erro tão ridículo, o senhor Ernie iria reconsiderar se queria meus serviços.
Meus devaneios foram interrompidos pelo som de cavalos galopando, e me afastei um pouco do caminho para vê-los passar.
Montado no primeiro cavalo, estava um rapaz trajando uma bela armadura com o brasão da realeza, duas espadas cruzadas sobre uma lua minguante. Era alto, porte de atleta. A pele negra e o cabelo crespo brilhavam sob os raios de sol. Seus lábios pareciam duas pétalas, e os olhos eram de um castanho caramelado intenso que me fariam derrubar os livros se me fitassem.
Aproximei-me sorrateiramente de um grupo de mulheres que fofocavam. Uma senhora com a cesta cheia de cerejas na cabeça, falava:
— O nome dele é Justin, é o filho do mais experiente membro da guarda real. Acabou de assumir o lugar do pai e está conhecendo o vilarejo.
Suspirei sonhadoramente, pensando em como seria bom que ele tivesse me notado. A boa fada azul poderia me conceder um desejo. De repente não me pareceu tão ruim ser demitida, maltratada, cuspida, pisada e humilhada por Perséfone. Certamente alguma fada me veria e usaria da sua magia para me conceder o tão puro e singelo amor verdadeiro. Tentei balbuciar uma música sobre minha triste vida, sonhos e amor eterno enquanto caminhava de volta à loja. Certamente era um momento oportuno para cantar sobre minhas desgraças e fazer drama, mas infelizmente não formulei nada muito bonito.
Justin ainda causaria alguns problemas, mas não para mim.
Perséfone esperava pacientemente atrás do balcão com o lápis atrás da orelha e a caderneta na mão. Não me atrevi a falar nada e coloquei os livros delicadamente perto dela, que passou os olhos rapidamente pela capa de todos e os levou para dentro.
Ela não ia me humilhar? E a fada?
Estaquei na frente do balcão esperando que algo acontecesse, mas ela simplesmente retomou seu lugar e voltou a ler a caderneta.
— Senhora...
— O que é?
— Os livros estavam certos?
— Sim.
Suspirei aliviada, pelo menos não perderia meu emprego. Precisava naquele momento tentar descobrir mais sobre Perséfone para lidar melhor com ela.
— Eu tenho quinze anos, e você?
— Por que quer saber?
— Pra te conhecer melhor.
— Tenho dezoito.
Coloquei um dos braços sobre o balcão, admirando com felicidade todos os detalhes daquele confortável lugar que a partir dali seria minha segunda casa.
— Hoje eu vi um cavaleiro esplendido passando...
— Eu não ligo.
Perséfone se retirou para a sala de trabalho, e fiquei na mesma posição pensando em como era idiota por tentar fazer alguma amizade com ela. Talvez fosse muito cedo, ou talvez aquele assunto idiota se parecesse com uma fofoca desastrosa e desinteressante. Minhas bochechas devem ter ficado muito vermelhas. Procurei alguma coisa para fazer até a hora de ir para casa chegar.
Depois de pagar mamãe por ter me criado iria procurar uma moradia e sair da casa do meu irmão, então começaria a investir em meu sonho de costurar até poder largar a loja.
Teria sido assim se Perséfone não precisasse da minha ajuda, ou mesmo se eu não tivesse me envolvido tanto com ela.
Os dias foram se passando e continuei exercendo o trabalho na loja com tranquilidade. O senhor Ernie saia de vez em quando, mas sempre que estava presente me ensinava algumas coisas básicas. Geralmente eu ficava responsável por anotar os pedidos dos clientes e fazer algumas entregas, tomando muito cuidado para não cometer nenhum erro. Perséfone estava sempre por lá, ajudando o pai com alguns produtos ou lendo alguns dos seus livros. Não conversávamos muito, e o clima era meio chato.Um dia, o senhor Ernie resolveu piorar um pouco nossa relação.- Berth, preciso que deixe alguns produtos para a cabeleireira. Posso contar com você?- Claro.- Ah, e quero que leve a Per
O senhor Ernie me permitiu descansar no dia seguinte, mas logo após o almoço recebi um recado de que me esperava na loja. Apesar da dor de cabeça e do tornozelo inchado, fui com ânimo esperando que fossem apenas as necessidades do trabalho. Chegando lá, ele me convidou para acompanhá-lo até sua casa.Mesmo mancando, consegui acompanhar os passos dele sem cair. A casa ficava na mesma rua, não muito longe da loja. O jardim, apesar de mal cuidado, era bonito e espaçoso. Seguindo o padrão das outras do vilarejo, a casa possuía dois andares e sua cor era de um belo tom de azul-royal. Pelo lado de dentro, o papel de parede novo era amarelo quadriculado, com algumas pequenas flores cor-de-rosa. O que chamava mais atenção, era a quantidade de quadros de uma mesma mulher dispostos na parede.
Alguns dias se passaram e Perséfone se mostrou minimamente amável comigo, conviver diariamente com ela tornou-se suportável. O que o senhor Ernie tinha falado sobre fazer cortes se cumpriu, alguns produtos menos essenciais começaram a faltar, gerando reclamações dos clientes. Porém, comecei a receber uma refeição diariamente, que infelizmente era sempre torta de cereja.O ponto alto da nossa semana foi quando uma grande feira foi anunciada na praça central, em comemoração ao aniversário da rainha. Todos falavam sobre como estava bonito, decorado, sobre a animação e o baile real. Apesar do meu desejo de ir até lá, não tinha tempo e nem dinheiro. Era impossível não fazer comentários de vez em quando.
As dúvidas retumbavam na minha cabeça, a atitude ridícula e imprudente que tomei prejudicaram imensamente o senhor Ernie. Pensei em voltar para loja, pedir desculpas ou ir embora antes de ter que explicar o inexplicável que acontecera com o gato, mas não conseguia nem sair do lugar. Pensava e repensava como havia deixado aquilo acontecer, mesmo com os avisos de Perséfone para não me aproximar, mesmo sabendo que estávamos unicamente tentando encontrar o velho e não gastando o dinheiro com besteiras.Alguma força maior parecia ter me atraído até o gato. Eu pelo menos deveria ter perguntado a ele onde estava o velho, e não uma coisa tão inespecífica.Depois de um tempo, vi Perséfone saindo do meio da feira a passos pesados, um ca
No dia seguinte, ao chegar bem cedo na loja, encontrei o senhor Ernie contrariado, cuidando de todas as encomendas e pedidos de última hora. Tentei começar a ajudar com o que podia, mas ele me impediu. Perséfone queria que eu a esperasse para sair. Tinha pensado um pouco para qual lugar ela queria ir comigo. A possibilidade certa passou por minha cabeça, mas não havia lógica em seu desejo de visitar minha mãe. Aquilo só se tornou realmente palpável quando o senhor Ernie confirmou minhas suspeitas.— Você não precisa trabalhar hoje, a Perséfone disse que vão sair juntas. E antes que pergunte, sim, eu estou muito preocupado. Mas ela falou que iria visitar sua casa e conhecer seus pais. Não pode ser tão ruim.— É s&eac
Fiquei dois dias inteiros em casa refletindo. Não quis contar a meu irmão, Devan, sobre ter pedido demissão, pois ele poderia ficar desesperado e pensar que teria que me sustentar. Também não podia, de maneira nenhuma, voltar para a casa dos meus pais depois de tudo. Estava pensando em sair e procurar emprego. Seria fácil conseguir algo na feira, mas quando ela fosse embora ficaria desempregada de novo, portanto preferi me concentrar em algo mais sério e duradouro.Com o passar do tempo as emoções foram se aquietando, e comecei a lidar de uma maneira melhor com o que havia acontecido. Afinal, Perséfone me mostrara o que minha família pensava sobre mim, e seu ato não foi de todo tão ruim. Seria melhor que tivesse pensado um pouco e me emprestado o dinheiro no lugar de armar a cena. O tempo sozinha foi proveitoso para me acalmar e colocar as ideias em ordem.No terceiro dia o senho
Os olhos verde-escuros de Aylet analisavam a loja com atenção, os cabelos castanhos caiam-lhe em uma trança assanhada até a cintura, e seu sorriso encantador evidenciava os finos traços de seu rosto. A aura que emanava dela assustava tanto que Perséfone parecia não me representar mais nenhum tipo de ameaça. Deixei o balde com sabão no lugar onde estava e me dispus atrás do balcão como a mais simples das empregadas, observando as duas com curiosidade.Aylet era mais alta que Perséfone, um pouco parecida, todavia mais bela. Eu não diria, jamais, que Aylet seria sua mãe, principalmente por sua aparência excessivamente jovem. Ela retirou a capa preta que usava, de um tecido fino adornado com pequenos detalhes dourados, jogou-a de qualquer jeito sobre uma estante de remédios, revelan
No dia seguinte, foi anunciado que o palco coberto pela lona gigante na feira seria descoberto ao pôr do sol. Todas os estabelecimentos fecharam-se cedo, pois todos estavam animados com a novidade. Eu também estava, afinal, era uma boa oportunidade para me divertir um pouco, e também estava curiosa com as comemorações daquele ano.Infelizmente, os planos de Perséfone incluíam me prender na loja. Ela anunciou que ficaria organizando e arrumando tudo para não restar trabalho atrasado.— Minha filha, não faz sentido ficar aqui. Não há tanto para fazer — o senhor Ernie rebateu, preocupado.— Um cliente pode aparecer.— Ninguém vai ap