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Capítulo 06 - O poder dos argumentos

As dúvidas retumbavam na minha cabeça, a atitude ridícula e imprudente que tomei prejudicaram imensamente o senhor Ernie. Pensei em voltar para loja, pedir desculpas ou ir embora antes de ter que explicar o inexplicável que acontecera com o gato, mas não conseguia nem sair do lugar. Pensava e repensava como havia deixado aquilo acontecer, mesmo com os avisos de Perséfone para não me aproximar, mesmo sabendo que estávamos unicamente tentando encontrar o velho e não gastando o dinheiro com besteiras.

Alguma força maior parecia ter me atraído até o gato. Eu pelo menos deveria ter perguntado a ele onde estava o velho, e não uma coisa tão inespecífica.

Depois de um tempo, vi Perséfone saindo do meio da feira a passos pesados, um cachecol laranja enrolado no pescoço, escondendo os arranhões de Lya. Embora uma parte minha se sentisse aliviada por vê-la, outra parte se preparava para um sequencia de chutes e socos pela fúria contida em seus olhos.

Fiquei de pé, encarando o seu rosto pronta para ter o que merecia. Ela parou a poucos centímetros de mim, respirando profundamente e arrumando o cachecol no pescoço.

— Onde você estava?

— Me acalmando, e também comprei esse troço para cobrir os arranhões.

— O que vamos fazer?

— Estou pensando na melhor maneira de te matar, caso contrário nem teria voltado.

— Eu não sei, realmente não entendo o que aconteceu lá! Você sabe que não sou impulsiva, eu jamais teria me aproximado do gato sem antes resolvermos o que nos trouxe aqui. Tinha alguma coisa nele, Perséfone! Você tem que acreditar em mim! Era uma aura que atraía e hipnotizava. Mas sabe, além de tudo, todo o dinheiro do velho ficou na loja. Devíamos tentar recuperar antes de voltarmos e você me matar.

Falei tudo muito depressa, exasperada com minhas justificativas e medo. Perséfone cruzou os braços, analisando as palavras, as sobrancelhas erguidas. parei de falar por perceber que estava exagerando, ela mordeu o lábio e assentiu.

— Vamos buscar a maldita carteira. Mas você vai na frente e se o gato estiver lá vamos embora.

A possibilidade de ficar frente a frente com Aristóteles novamente me apavorou, e uma inquietação me fez dar pequenos pulinhos no mesmo lugar, enquanto as mãos tremiam descompassadamente.

— Claro.

Perséfone se virou, andando calmamente em direção a barraca. Abracei meu corpo a seguindo de perto, o coração saltando até a garganta. A morte poderia ser melhor que encarar aquele gato, mas tentei mentalizar o fato de que não precisava me aproximar ou encarar os olhos dele, e talvez uma certa distância fosse segura.

Ao redor da loja, algumas pessoas olhavam curiosas, mas sem entrar. Tentavam espiar o estrago que estava lá dentro. A lona estava torta e alguns fungados constantes vinham de dentro. Perséfone me segurou pelos ombros e me jogou com força pela entrada, estendi os braços para frente buscando o equilíbrio ao entrar. Estava tudo destruído, como deixamos. Com um olhar rápido, mas cuidadoso, analisei cada pequeno espaço até concluir que Aristóteles não estava lá.

— Tudo limpo!

Lya, encostada em um canto, abraçava os próprios joelhos na frente do corpo, a carteira do velho pendendo entre os dedos. Seus olhos molhados me encararam com um ódio mortal; mais alguém que queria me matar. Ficou de pé em um movimento brusco, vindo em minha direção, mas parou quando Perséfone entrou.

Com alguns passos vacilantes, Lya recuou, apertando a carteira do velho contra o peito.

— VOCÊ!

— Sim, sou eu — Perséfone falou com escárnio.

— O que querem aqui? Terminar de me matar?

— Eu adoraria, mas infelizmente não elaborei um plano para esconder seu corpo. Por enquanto apenas quero que me devolva a carteira.

Lya olhou para a carteira apertada entre os dedos, como se só então se desse conta dela. Senti um medo extremo de que ela e Perséfone recomeçassem uma luta física.

— Não vou devolver! Isso fica como pagamento por terem destruído meu negócio, embora não seja suficiente.

Perséfone cerrou os punhos, e antes que outro espetáculo despontasse, uma ideia solta surgiu na minha cabeça e sussurrei em seu ouvido.

— Pensa um pouco. Se acontecer mais algum barulho aqui as pessoas vão entrar e você será a acusada. Em vez de partir para a agressão física, vença ela com argumentos através de um diálogo convincente, como os sofistas fariam.

— O que são sofistas?

Levei as mãos as boca, também não sabia o que era aquilo. O gato podia de alguma forma ainda mexer com as minhas ideias e pensamentos, era a única explicação para aquela palavra esquisita que nunca ouvi falar e a ideia dos argumentos. O enjoo que veio a seguir foi tão forte que não consegui segurar, me inclinei para o lado e vomitei.

Segurando a carteira como se sua vida dependesse disso, Lya assumiu uma posição defensiva. Mas no lugar de atacar para pegar o que queria, Perséfone relaxou os ombros e respirou profundamente. Seu rosto assumiu uma expressão calma e séria, e suas mãos se cruzaram na frente do corpo. Ficou um pouco parecida com o senhor Ernie, quando estava me ensinando uma importante lição de química.

— Minha cara senhora...

Confusa, Lya apenas flexionou os joelhos e estufou o peito, preparando-se para um golpe físico.

— De acordo com a lei vigente no reino de Artémise, a magia é terminantemente proibida no vilarejo, sendo restrita apenas ao uso da família real ou pessoas habilitadas que comprovem o domínio e extrema necessidade de sua utilização para fins profissionais. E ainda assim, nem todos os tipos de magia são aceitos, e os aceitos são severamente monitorados por um membro do governo...

Lya inclinou a cabeça, confusa. Entendi onde Perséfone queria chegar.

— A senhora é uma feirante, trabalho irregular... Sendo assim, a menos que tenha uma licença assinada pela corte, não tem permissão de usar magia dentro do reino. O seu gato parecia um tanto mágico, diga-se de passagem.

— Eu... Isso era só um jogo, adivinhação! Como os mágicos que fazem truques no circo!

— Berth é testemunha dos poderes do seu gato, e a menos que devolva a carteira, ela irá prestar uma queixa contra a senhora à uma autoridade. E considerando que sua magia causou prejuízo emocional, acho que a pena aumentaria. Só não lembro ao certo qual a punição para o uso irregular de magia...

Como se já tivesse passado por uma daquelas punições e fosse familiarizada com seu horror, Lya jogou imediatamente a carteira que defendia com tanto vigor. Perséfone a pegou no ar e agradeceu, retirando-se.

— Eu cumpri minha parte do acordo, não fale nada — Lya me implorou.

— Tudo bem, mas é melhor se livrar do gato.

Saí da tenda e me juntei a Perséfone, que rumava em direção a saída da feira. Ela certamente ainda estava fervendo de ódio, mas conseguir recuperar a carteira era uma pequena vitória. Sem saber o que esperar, me aproximei o máximo possível e andei em seu encalço.

— Que papo foi aquele de vencer com argumentos e não com agressão? — perguntou com educação, para minha surpresa.

— Eu não sei. Só pensei naquilo. E ainda não descobri o que significa a palavra "sofistas". Acho que quando sentimos muito medo acabamos inventando palavras.

—Talvez. De qualquer forma deu certo.

O problema que faltava era o de encontrarmos o velho, mas depois de tudo que passamos não sobrara energia para o procurar pela feira. Tudo que eu queria era voltar para a loja e receber minha punição, seja lá qual ela fosse.

Nos afastamos das aglomerações, dos risos e do colorido da feira. Um mundo inteiro de sonhos e brincadeiras que foi transformado em meu pior pesadelo. Conforme tudo ficava para trás, e o último riso de criança ecoou fraco em meus ouvidos, uma imensa tristeza se apossou de mim. Foram muitas emoções intensas que enfrentei em um dia só, e eu não sabia se queria viver assim. Estar com Perséfone significava nunca ter paz. Ou, por outro lado, estar comigo fosse a perdição dela. Nós duas funcionávamos como uma combinação desastrosa de compostos químicos, e enquanto estivéssemos juntas; seja em um salão de beleza, uma feira ou em qualquer outro lugar, levaríamos caos e destruição. Foi a primeira vez que pensei aquilo sobre nossa amizade e até onde poderíamos chegar. Me afastar seria o melhor, mas ainda não estava tão claro para mim que Perséfone era uma bomba relógio, prestes a explodir, uma explosão que arrastaria tudo próximo a ela.

Afastei os pensamentos, limpei uma lágrima solitária que escorria pela bochecha e fiquei. Fiquei bem ali ao lado dela, consciente da explosão.

Ao chegarmos na loja, Perséfone começou a arrumar algumas coisas, dizendo que iria fechar mais cedo, antes do senhor Ernie chegar. Coloquei a carteira do velho em cima do balcão e fechei os olhos, deixando o silêncio reinar. Não sabia bem o que dizer nem como dizer. Pedir desculpas novamente poderia muito bem desencadear outra onda de raiva nela.

— O que eu faço?

— Passe os pedidos de hoje para amanhã no caderno.

— Não quer que eu vá embora?

Perséfone parou e me encarou nos olhos, mexendo no cachecol. O suspense antes de suas palavras faziam meu coração bater muito forte, e o som da minha respiração foi amplamente ouvido.

— Eu deveria fazer isso, mas eu sei que a magia mexeu com a sua cabeça. Então não foi sua culpa. E também, tinha um gato envolvido, não posso culpar alguém que faça besteiras na presença de um bicho tão peçonhento.

— Quando entramos na barraca você sentiu medo de cara. Foi a aura do Aristóteles ou você tem medo de gatos?

— Não interessa.

Satisfeita por não ter sido demitida, resolvi deixar o assunto um pouco de lado no momento. Antes de pegar o caderno e fazer o que Perséfone mandou, abri a carteira do velho e contei o dinheiro.

— Está faltando o que eu paguei para falar com o gato e mais uma pequena quantia, provavelmente Lya tirou.

— Se o dono vier buscar...

Nesse exato momento Perséfone foi interrompida, o velho da cartola entrou anunciando que viera buscar sua carteira esquecida. Ou seja, se tivéssemos esperado simplesmente que voltasse, no lugar de ir procurar ele, não teríamos perdido o dinheiro e evitaríamos muita coisa. Engoli em seco, desviando do olhar aterrador de Perséfone.

— Sim, o senhor esqueceu sua carteira. Permita-me buscar, guardei em um local seguro. Fique a vontade - falei e o velho assentiu.

Perséfone cruzou os braços, e observou com desdém meu desespero, esperando para ver o que faria. Escondi a carteira do velho e fui até atrás do balcão, onde guardei em uma bolsinha o primeiro pagamento que o senhor Ernie havia me dado há um dia. Completei o que faltava na carteira do velho sem muita demora e a devolvi.

— Pronto.

— Desculpe por isso, e obrigado por ter guardado pra mim. — O velho sorriu amigavelmente e se retirou.

Olhei com expectativa para Perséfone, pensando se aprovaria ou não minha solução, mas não encontrei nenhuma pista em sua expressão. Completar com meu pagamento foi a primeira coisa que me ocorreu, e existiam vários motivos que tornavam aquela ideia perfeita.

— Por que fez isso?

— Eu não podia tirar o dinheiro do seu pai, seria injusto. E tudo isso só aconteceu por minha culpa. Você viu que ele veio buscar, não precisávamos ter ido até a feira. A verdade é que eu achei uma boa oportunidade de fazer uma visita e dar uma olhada nas coisas, e por causa disso toda a confusão aconteceu. Me desculpe, é a verdade. O mínimo que poderia fazer era pagar.

Perséfone assentiu, mas alguma coisa ainda a incomodava.

— Justo. Mas isso não vai te fazer falta para comprar comida ou alguma coisa do tipo?

— Não. Pelos meus cálculos só tirei a parte que seria da minha mãe, eu converso com ela.

— Espera, que história é essa de você ter que dar parte do seu pagamento a sua mãe? — perguntou, levando a mão ao queixo e saindo de trás do balcão.

— Eu te falei. Preciso reservar uma quantia do meu pagamento por um ano a ela, por ter me criado.

— Isso é ridículo! — Arrancou o cachecol do pescoço e o atirou no chão, pisando em cima logo em seguida.

— Acho justo.

— Seu senso de justiça é terrível.

Afastei o cabelo emaranhado do rosto, e Perséfone continuou pisoteando o cachecol com a ponta do sapato enquanto maquinava alguma coisa. O que ela fez no dia seguinte me dividiu de uma forma esquisita. Senti uma mistura de revolta com gratidão. Era uma coisa legal de se fazer por um amigo, ou não, dependia muito do ponto de vista. Ainda não sei se foi exatamente bom, mas suas intenções foram boas.

Será que o que vale é a intenção ou o que acontece?

— Ainda quer que eu passe os pedidos de hoje para amanhã no caderno?

— Sim, mas registre tudo detalhadamente para o meu pai. Amanhã nós não vamos ficar na loja. Vamos fazer uma certa visita.

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