Capítulo 07 - A família de Berth

No dia seguinte, ao chegar bem cedo na loja, encontrei o senhor Ernie contrariado, cuidando de todas as encomendas e pedidos de última hora. Tentei começar a ajudar com o que podia, mas ele me impediu. Perséfone queria que eu a esperasse para sair. Tinha pensado um pouco para qual lugar ela queria ir comigo. A possibilidade certa passou por minha cabeça, mas não havia lógica em seu desejo de visitar minha mãe. Aquilo só se tornou realmente palpável quando o senhor Ernie confirmou minhas suspeitas.

— Você não precisa trabalhar hoje, a Perséfone disse que vão sair juntas. E antes que pergunte, sim, eu estou muito preocupado. Mas ela falou que iria visitar sua casa e conhecer seus pais. Não pode ser tão ruim.

— É sério?

— Vocês não tinham combinado? 

— Eu não sei, acho que sim. — A intenção de Perséfone ainda permanecia em mistério.

— Ela contou uma mentira ou você acha que tem alguma outra pretensão com isso? Desculpe, mas parece absurdo ela decidir visitar alguém. Mas claro, eu reconheço que vocês podem ter formado uma amizade.

Não soube ao certo o que falar, nossa amizade não parecia muito profunda, se é que já estávamos no nível da amizade. Era certo que estava tramando algo, mas não podia ter certeza e nem acusar, então simplesmente não respondi ao senhor Ernie. 

— De qualquer forma, eu fico satisfeito que ela tenha interesse em conhecer sua família. Uma menina como você deve ter uma família linda.

— Ou horrível.

— Como?

— Eu preciso ir, senhor Ernie. Que horas eu devo vir encontrar a Perséfone para irmos até minha casa?

— Não era na hora do almoço? — perguntou confuso.

— Sim, obrigada. 

Dito isso, corri o mais rápido possível até minha antiga casa. Quase fui pisoteada por dois cavalos no caminho, e algumas mulheres me xingaram quando esbarrei nelas. Por fim, cheguei completamente suada e descabelada, com a esperança de preparar minha família para a chegada de Perséfone.

A casa estava exatamente igual ao dia em que saí, as janelas estavam abertas e visualizei meus irmãos mais novos correndo e fazendo bagunça. Nossa casa era grande e espaçosa, apesar de um pouco decrépita. Tínhamos quatro quartos, um deles eram dos meus pais e os outros eram divididos ente os 12 filhos. Dos meus 11 irmãos, apenas eu e mais dois havíamos saído de casa, mas mamãe já estava providenciando a saída dos outros. Nosso jardim era amplo, mas não havia nenhum pouco de grama, apenas terra esburacada pelas crianças. As paredes cor-de-rosa eram arranhadas de desenhos que fazíamos com pedras. 

Bati na porta por educação, sabendo que o meu lugar já não era ali. Um dos meninos atendeu, o cabelo bagunçado e um dos sapatos do meu pai na mão.

— Mãe, é a Berth! —  gritou antes de correr.

— Berth? — Mamãe apareceu limpando as mãos no avental branco, claramente desgostosa por me ver. 

— Oi, mãe. Estava com saudades.

— AH! Você veio deixar o pagamento da criação. Entre, por favor. Quer um suco de cereja?

— Não vim deixar o dinheiro, tive um contratempo e na verdade não conseguirei te pagar esse mês. 

Mamãe cruzou os braços, me encarando com um olhar tão ameaçador que baixei a cabeça, amedrontada.

— Já sei, foi demitida ou Devan te expulsou? — perguntou, referindo-se ao meu irmão com quem me obrigara morar. — Eu não acredito, Berth! Depois de tudo que fiz por você! Fique sabendo que não há mais espaço para ninguém nessa casa, sua pequena incompetente!

— Nem fui demitida nem Devan me expulsou, ele tem me suportado bem, apesar de tudo. Tive alguns contratempos mas estou mantendo o emprego.

— Então o que você quer? Quais motivos tem para vir aqui se não foi pra deixar o dinheiro? 

— Minha chefe quer te conhecer.

— Sua chefe? Qual o motivo?

— Eu não sei. Mas resolvi te avisar antes.

— Bom, se ela é dona da loja deve ser gente importante, não é? — mamãe falou, torcendo as mãos nervosamente —, ou será que vem reclamar de você?

— Não, a visita dela é por um bom motivo. — Mesmo tendo altas chances de ser por um péssimo motivo, e de fato era, não queria levar um do famosos puxões de orelha da mamãe, então menti. — Vamos vir para o almoço.

— Certo! Então eu preciso cozinhar algo decente, limpar a casa e dar um jeito nos seus irmãos. Gente decente não gosta de bagunça. Até mais, e veja se trata a senhorita bem. — Empertiguei-me, e com um sorriso fiz menção de entrar para dizer oi aos meninos, brincar um pouco ou pelo menos relembrar o passado visitando meu antigo quarto, mas ela bateu a porta violentamente na minha cara, e ouvi quando começou a gritar ordens. 

Um pouco envergonhada, fiquei andando sem rumo por aí, mil possibilidades de coisas que poderiam dar errado passavam por minha cabeça. Comprei algo para comer e continuei vagando, temerosa com o horário do almoço

O vento soprava balançando as folhas das árvores, que flutuavam lentamente até o chão. Não haviam conversas ou barulho, todos estavam dentro de suas casas. O sol escaldante do meio dia fazia até mesmo os pássaros se esconderem. O suor escorria por minha testa enquanto andava inquieta pela frente da loja, esperando por Perséfone. Por fim, ela apareceu; usava um vestido marrom simples de mangas curtas e cinto de couro preto, o cabelo estava preso em um rabo de cavalo. Comparada com minhas roupas amarrotadas e coque frouxo, estava muito melhor. Sorri meio sem jeito e indiquei o caminho, andando um pouco à frente. Soltei o cabelo para tentar melhorar a situação e esfreguei o rosto para amenizar toda aquela oleosidade. Não conversamos muito, mas arrisquei algumas poucas palavras sobre o clima, que Perséfone não respondeu.

Ao chegarmos na frente da casa de mamãe, fiquei surpresa ao perceber que a terra esburacada agora estava uniforme. A porta permanecia entreaberta e antes de darmos qualquer indício de nossa presença, mamãe saiu com as mãos erguidas e um largo sorriso, desejando-nos amistosamente suas boas-vindas. Usava um de seus melhores vestidos, azul claro com botões coloridos e saia rodada. Apenas um remendo no ombro. Passou por mim e foi diretamente a Perséfone, estendendo a mão de forma calorosa.  

— Seja bem vinda a nossa casa, senhorita. Saiba que é uma honra recebê-la.

Com indiferença, Perséfone apertou a mão de mamãe exibindo um sorriso falso. Com gestos exagerados fomos guiadas para dentro, a casa mais ou menos arrumada.

— Onde estão os meninos?

— Ora, Berth, eu mandei que fossem dar uma volta para recebermos nossa convidada. Afinal, deve ser desconfortável para a senhorita visitar uma casa com pirralhos correndo aos montes. Devemos ter um pouco de classe.

Na cozinha, papai segurava os talheres impaciente em seu lugar á grande mesa. Não tinha ligado muito para a aparência, a barba branca estava por fazer e a camisa com manchas de terra. — Devia ter desfeito os buracos dos meninos por ordem de mamãe, ou enterrado eles lá. — Sentei ao lado de Perséfone, e mamãe bem a nossa frente; após um pequeno protesto por parte dela, papai saiu da ponta da mesa e sentou-se mais perto da "ilustre convidada".

— Nós temos torta de cereja, suco de cereja e também geleia de cereja. Espero que goste de cereja. E também frango. 

— Se eu não gostasse morreria de fome.

— Seu nome é Perséfone, não é? Tipo a esposa de Hades. — Mamãe falou com um sorriso no rosto, e tive que pegar um copo de suco para não engasgar de pavor, lembrando-me da primeira vez em que disse aquilo a Perséfone.

— É, tipo a esposa de Hades — respondeu sem o discurso sobre quem de fato era a deusa Perséfone, para minha surpresa.

— Meu nome é Rose, esse é meu marido, Cyrus. Ficamos felizes por sua visita. 

Perséfone se serviu de um pedaço de torta de cereja enquanto atacamos o frango, não falou absolutamente nada por algum tempo enquanto mamãe esperava com expectativas. Uma parte de mim, inocentemente, acreditou que tudo já estava passando e não iria acontecer nada de grave. Poucas palavras foram trocadas entre papai, mamãe e eu, mas nada além disso.

Perséfone terminou de comer por último e limpou os lábios com um guardanapo.

— Como estava? — papai perguntou.

— Medíocre. 

— Bom, a senhorita deve estar acostumada com culinárias melhores.

— Aqui neste lugarzinho só temos cereja. A torta estava ruim mesmo.

Pigarrei e murmurei um rápido vamos, pressentindo que a partir daquele momento as coisas começariam a dar errado. Mamãe levantou-se, transtornada, mas ainda assim manteve um pouco da postura. Ficava zangada quando falavam de sua comida, e mudou bastante a entonação da voz.

— Afinal, ainda não ficou claro a que devemos a honra. Veio falar sobre Berth ou alguma outra coisa?

— Não, na verdade...

— Oh! Gostaria de mais ajuda na loja? Eu tenho vários filhos desempregados.

— Minha boa senhora, realmente, dada a situação caótica da sua casa, muito embora tenha empurrado o lixo para debaixo do tapete, percebi que possui muitos filhos. Minha pergunta é: por quê?

Sim, claro que Perséfone possuía uma outra intenção com aquela visita, e fui burra em duvidar disso mesmo que por pouco tempo. Arregalei os olhos, sem saber se olhava para ela ou para mamãe, imaginando mais um cenário de destruição.

— Perdão? — Mamãe deu a volta na mesa para ficar mais próxima dela.

— Claro, se procriar feito um coelho for uma estratégia, já que os filhos da senhora precisam pagar por criação, parabenizo-a pelo bom negócio, está indo muito bem. Agora, se tudo é realmente um acidente, recomendo que realize um aborto da próxima vez que ficar grávida, disponibilizo com todo o prazer as ervas necessárias na minha loja.

— Berth, o que significa isso? — papai perguntou. 

— Ora, sua desaforada! —  Mamãe ergueu a mão bem á altura do rosto de Perséfone, mas antes de qualquer coisa levou um grande empurrão e caiu sentada na cadeira mais próxima. Papai soltou um grito de indignação e a amparou, enquanto fiquei paralisada, sem acreditar no que via. Tudo que ela queria era tirar satisfação e "resolver" o problema do pagamento da minha criação.

— Isso paga pela criação da sua filha e de pelo menos mais cinco filhos seus, por minha conta. —  Perséfone retirou uma bolsinha presa no cinto e a abriu, as moedas de ouro tilintaram sobre a mesa. Papai ficou boquiaberto e se afastou, assustado com a quantia. Mamãe levou a mão ao peito e a encarou, perplexa.

— A BERTH NÃO PEDIU PARA TER NASCIDO, NÃO TEM QUE PAGAR A VOCÊ! E PARE DE TER FILHOS. — Perséfone atirou um dos pratos que estavam na mesa ao chão, e saiu sem esperar outra reação da minha mãe. As lágrimas encheram meus olhos diante da situação tão inacreditável e constrangedora, não sabia o que dizer. Apenas queria correr até minha cama e chorar até não aguentar mais.

— Mãe, eu não sabia... Ela é assim. Por favor me perdoe — comecei aos gaguejos.

Mamãe pegou as moedas na mão e começou a contar com a ajuda do meu pai. Fiquei esperando para ver o que diziam, e sem resposta deixei meu choro aparente. 

— Me desculpa! Por favor, eu não queria que isso acontecesse! Perdão! 

— Sim, Berth, sim!

— Eu tenho que me ajoelhar? — berrei.

— Minha nossa, Rose, nunca vimos tanto dinheiro assim!

— Eu não sabia que a Berth era tão cara! Eu teria comercializado ela como escrava em um desses reinos atrasados que ainda permitem!

— Eu também não, você acha que ela realmente comprou a Berth, querida?

— Eu não sei, mas essa foi a melhor coisa que já nos aconteceu.

— MÃE! PAI!

Os dois se abraçaram e sorriram, começando a fazer planos sobre o dinheiro. A conversa deles sobre Perséfone ter me comprado foi extremamente incomoda.  Estava decepcionada por ter percebido o que meus pais achavam de mim, e com raiva de Perséfone por ter me feito passar tanta vergonha. Eu preferia ter pago, sem dúvidas, minha criação do que ter passado por aquilo.

Foi pura humilhação ter sido praticamente comprada. Saí rapidamente para casa e andei rumo a loja, sem olhar para trás. Parei uma vez no meio do caminho, engasgada com as lágrimas. Me apoiei sobre os joelhos e observei algumas gotas escorrerem do meu rosto e mancharem a terra. Uma pessoa que passava me chamou de coitada. Naquele momento a vergonha potencializou ao máximo minha tristeza e dor.

Continuei andando até a loja, antes de entrar limpei o rosto com força e tentei parecer o mais zangada possível, mais do que já estava. Perséfone conversava alegremente com o senhor Ernie atrás do balcão. Sorriu para mim ao me ver entrar.

— Berth, eu estava esperando... — começou 

— Vim apenas dizer ao senhor Ernie que me demito! — gritei. 

O sorriso no rosto de Perséfone sumiu, continuou me encarando mais agora abismada.

— Eu te odeio! — Corri para casa o mais rápido possível.

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