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Capítulo 04 - Um perigo para a sociedade

O senhor Ernie me permitiu descansar no dia seguinte, mas logo após o almoço recebi um recado de que me esperava na loja. Apesar da dor de cabeça e do tornozelo inchado, fui com ânimo esperando que fossem apenas as necessidades do trabalho. Chegando lá, ele me convidou para acompanhá-lo até sua casa.

Mesmo mancando, consegui acompanhar os passos dele sem cair. A casa ficava na mesma rua, não muito longe da loja. O jardim, apesar de mal cuidado, era bonito e espaçoso. Seguindo o padrão das outras do vilarejo, a casa possuía dois andares e sua cor era de um belo tom de azul-royal. Pelo lado de dentro, o papel de parede novo era amarelo quadriculado, com algumas pequenas flores cor-de-rosa. O que chamava mais atenção, era a quantidade de quadros de uma mesma mulher dispostos na parede.

Haviam quadros dela em várias poses e lugares, com vestidos lindíssimos e paisagens que eu nem sabia existirem no mundo. O senhor Ernie me indicou a sala de estar e seguiu para o interior da casa. Perséfone estava sentada em um grande sofá vermelho. No canto, próximo a uma grande janela coberta por cortinas floridas, havia uma prateleira com vários títulos de livros, grandes e encouraçados. Sentei-me na outra ponta do sofá, e enquanto Ernie não voltava, observei com mais cuidado a mulher do quadro.

O quadro da sala era o maior de todos. Ela sorria olhando um pouco para o lado, um lago cintilante brilhava atrás de si. Seus olhos eram verdes e seu nariz era levemente curvo, como o de Perséfone. Era magra e a pele se parecia com porcelana, os cabelos castanho-escuros estavam presos em um coque atrás da cabeça e os lábios carnudos abriam-se em um esplêndido sorriso. Antes de começar a olhar a melhor parte, os detalhes do seu vestido, o senhor Ernie voltou trazendo uma bandeja com duas xícaras de chá e alguns biscoitos. A colocou sobre a mesinha de centro e puxou uma cadeira, sentando na nossa frente e apoiando os cotovelos sobre os joelhos.

— Chamei a Berth aqui porque quero ouvir de vocês o que exatamente aconteceu ontem — falou sério.

Apenas cruzei as mãos sobre o colo, sem saber ao certo por onde começar. Perséfone também não se pronunciou, encarava as próprias unhas com desinteresse apesar do olhar corrosivo de Ernie.

Subitamente, abri minha boca e tomei toda a culpa para mim, sem pensar. Não sei se queria defender Perséfone ou se achei que o senhor Ernie acreditaria. Mesmo pensando e repassando essa atitude na minha cabeça várias vezes depois, e me arrependendo, não conseguir encontrar uma resposta lógica, algo que justificasse.

— Foi minha culpa. — O senhor Ernie me lançou um olhar de pena e Perséfone não se preocupou em conter a risada.

— Eu sei que não foi você, Berth. Não tente protegê-la.

— Isso foi ridículo! — Perséfone exclamou.

— O que importa aqui, Perséfone, é que eu te mandei fazer uma simples entrega e você quase destruiu o negócio da família.

— Você mandou sua empregada fazer uma entrega e me obrigou a ir junto, eu estava quieta trabalhando.

— É tão difícil entregar uma caixa?

Perséfone suspirou e começou a contar toda a sequência de acontecimentos, sem esconder nada, nem mesmo a parte em que chutou a senhora. Quando terminou, complementei a história com meu ponto de vista e a parte que me machuquei. O senhor Ernie ouviu com paciência e preocupação.

— Você agrediu fisicamente uma pessoa mais velha?

— E verbalmente também.

— Uma pessoa fazer um comentário sobre a aparência da outra não é motivo pra isso, é problema dela. Você acha que é uma heroína ou uma justiceira?

— Não. Eu não tenho justificativas, mas não me arrependo.

Comecei a pensar em uma forma estratégica de me retirar, desejando que o senhor Ernie simplesmente me dispensasse.

— Precisamos voltar para a loja — ele disse.

— Não vai fazer nada?

— Se você não se arrepende e acha válido manchar a imagem da sua família e do nosso ganha pão, é problema seu. Já estou velho e talvez você tenha outro trabalho em mente para o seu futuro.

O senhor Ernie levantou-se e acenou para que o seguissemos, caminhamos rumo a loja novamente. Pela primeira vez Perséfone pareceu pensativa e incomodada com a situação, cutuquei ela algumas vezes no caminho mas ela nem se virou. Antes de entrarmos na loja, porém, ela segurou meu braço com força. Ernie entrou e ficamos do lado de fora, suas unhas quase perfuravam minha carne, deixei escapar um gemido baixo e tentei escapar.

— Por que fez aquilo? — Sua voz estava repleta de ódio e inspirava medo.

— O que eu fiz? — Puxei meu braço com força, livrando-me de suas unhas que deixaram pequenas marcas.

— Tentou ficar com a culpa.

— Só queria te ajudar.

— Sério? Isso só fez com que eu parecesse uma pessoa pior! Eu posso até fazer coisas erradas, mas não coloco a culpa em terceiros; eu assumo.

— Eu sinto muito, só quis te ajudar. — Minha voz saiu mais embargada do que desejei, como se estivesse explicando uma travessura para mamãe.

— Para de tentar me ajudar, eu não preciso da sua ajuda! Sei me defender sozinha.

Perséfone entrou, batendo a porta com força. Rapidamente levei as mãos aos olhos impedindo aquelas lágrimas teimosas de escorrerem. Não ia chorar por ela e nem me importar, desde o primeiro dia ela já havia deixado claro que não estava lá para ser legal comigo. Tentei mentalizar que apenas faria meu trabalho calada enquanto estivesse lá, me dirigindo a ela para perguntar apenas o necessário.

Se eu tivesse levado a sério o que pensei sobre não me envolver emocionalmente, poderia ter me livrado de muita coisa. O problema é que nunca fui uma pessoa que deixasse de ajudar, mesmo quando alguém pedia para não fazer isso. Era tão prestativa aos outros que não podia mesmo ser a protagonista de uma história, nasci para desempenhar o papel de ajudante.

Perséfone ficou o dia inteiro no área de trabalho produzindo algumas coisas, o senhor Ernie fazia cálculos na bancada. Como o movimento estava fraco, aproveitei para anotar em um caderno remédios, clientes, fórmulas e tudo que pudesse me ajudar a melhorar. Tentei esquecer do que havia acontecido, mas o mistério de porquê alguém como Perséfone se importaria tanto com o que aconteceu a Zoe rondava minha mente.

Um burburinho na frente da porta fez o senhor Ernie levantar os olhos dos números, deixei o caderno cair das mãos quando reconheci a dona do estabelecimento de beleza a qual vandalizamos revoltada, xingando e acompanhada de duas outras pessoas. O senhor Ernie me chamou e fez um gesto rápido para que entrasse na área de trabalho. Meu rosto enrubesceu e o coração disparou com a possibilidade de pagarmos no mesmo valor, com tudo na loja quebrado. Entrei na área de trabalho e me encostei na parede, de modo que pudesse ouvir tudo que falavam. Perséfone largou as poções que misturava e fez o mesmo, levando o dedo até a boca e pedindo silêncio.

Depois que os sinos na porta tilintaram, a mulher entrou batendo os pés pesadamente e gritando palavras ofensivas. As palmas de sua mãe bateram pesadamente sobre o balcão.

— Aqui está a conta de todos os prejuízos que sua filha e a ratinha dela me causaram, quero meu reembolso já!

— Eu sinto muito pelo que aconteceu, senhorita...

— Uma vergonha, um perfeito ultraje! Vandalismo, agressão física, desrespeito e calúnia! Não consegue controlar sua filha?

— Eu vou pagar pelos danos.

— Não são só os danos, é o perigo que essa garota grotesca representa para a sociedade! O que você vai fazer com ela para resolver isso? Eu garanto que só não chamarei uma autoridade em consideração a sua esposa.

— Ela será punida da maneira adequada. Eu confesso que não sei exatamente como cuidar disso, talvez quando minha esposa voltar de viagem ela saiba melhor o que fazer. Agradeço profundamente que confie em nosso senso de justiça.

— Eu acho que devia proibir ela de ler. Ouvi dizer que mulheres que leem ficam enfiando na cabeça ideias desequilibradas e sem escrúpulos. Eu mesma só aprendi a decifrar letras por pura necessidade da profissão. Mas não acho que sua filha seja apta para exercer uma profissão, devia pensar em casamento.

— Eu não sei se é isso, a literatura não deve fazer tanto mal assim. Mas vou tomar uma providência.

— E também acho que seria proveitoso m****r embora a amiguinha dela, parece mau influência.

Alguns murmúrios se seguiram e os dois passaram a combinar sobre o tempo que levaria para Ernie pagar tudo e os juros necessários.

Perséfone franziu o cenho e voltou para o trabalho. Um cheiro nauseante se espalhou pela sala quando ela começou a misturar líquidos loucamente em uma grande panela.

Não consegui pensar em mais nada a não ser no pedido da mulher de que o senhor Ernie me mandasse embora. E como ele estava em prejuízo, talvez acatasse seu pedido para se sair melhor na situação. Me aproximei de Perséfone cobrindo o nariz com a manga do vestido, só então percebi como estava ela estava vermelha.

— Você acha que ele vai me m****r embora? — Logo após perguntar lembrei que isso significava quebrar meu juramento de não falar com ela, me arrependendo imediatamente.

— Não.

— Como sabe?

— Eu não vou deixar! Foi minha culpa. Quando você for finalmente demitida será por seus próprios erros.

O senhor Ernie entrou na sala, e me desejou um bom resto de tarde, indicando que estava na hora de ir pra casa. Mas um toque seu em meu ombro e um até amanhã me tranquilizou sobre a minha permanência lá.

— Você precisa controlar isso, esses seus surtos de raiva... Enquanto era só na nossa família estava tudo bem, mas agora está acontecendo lá fora.. Isso é muito ruim. — Ouvi o senhor Ernie falar.

Recolhi meu caderno que havia deixado cair perto das estantes, mas antes de ir para fora toquei os sinos sem abrir a porta. Pensando que já havia ido embora, o senhor Ernie e Perséfone começaram a conversar mais alto, e mesmo com o risco obedeci ao impulso de ficar escutando.

— Por que? Você não liga para a Zoe! Isso vai me custar muito; vamos cortar algumas regalias, ter problemas com os fornecedores. Defender uma estranha valia isso?

— Não ligo mesmo para ela. Mas realmente não sei. Só que quando vi a outra comentando sua aparência fiquei com raiva, como sempre fico. Acabei não me controlando.

— Achou errado?

— Sim, eu sei como é horrível as pessoas te diminuírem o tempo todo.

— Não é esse o problema. Absolutamente qualquer acontecimento te causa um acesso de raiva. E quanto a diminuir os outros, você faz isso com a Berth o tempo todo.

Dessa vez não quis continuar ouvindo, abri a porta e deixei os sinos baterem uma segunda vez, sem me importar.

O final da tarde se aproximava, o céu assumia um tom alaranjado como o das folhas de outono, e as primeiras estrelas começavam a brilhar.

Acessos de raiva; aquilo explicava muita coisa. Ela poderia não ser má, talvez só não fosse boa em conter ou esconder alguns sentimentos. Nem todas as pessoas conseguiam colocar uma máscara de felicidade, desenhando um sorriso falso no rosto e fingindo que o que as rodeava não incomodava de verdade.

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