Existem muitas formas de morrer, umas ruins, outras nem tanto.
Mas a sensação que estou sentindo nesse momento, com certeza é pior do que a morte.Minhas mãos estão quentes, assim como as minhas orelhas.Um choque corre a minha espinha, um nó se forma na garganta e não importa o quanto eu queira falar, nada sai. Eu só choro, e tem essa coisa rasgando o peito por dentro como se fosse me engolir. Dá dor de barriga, dor de cabeça, vontade de vomitar, meu corpo todo fica tremendo, eu quero fugir, mas ao mesmo tempo quero só ficar no mesmo lugar. Penso em me abrir com alguém, ao mesmo tempo que pondero suicídio. Porque qualquer um que cruzou a linha da automutilação tem tendencias suicidas, é preocupante quando se chega a esse estado. Isso é o que o meu psiquiatra diz. E tem os casos de terror noturno, insônia, ansiedade gerada pela depressão, síndrome do pânico, irritação, nada que eu faço parece bom o suficiente, nada que eu gosto de fazer parece a mesma coisa, tudo fica preto e branco e minha única vontade é me encolher na cama e apodrecer lá.Os cortes liberam oxitocina e endorfina, que causam uma sensação de prazer. E isso me tira da dor que eu sinto, ao menos por alguns segundos.Olho para a lâmina, ela é minha companheira. Ela me ajuda a aliviar minha dor. Mas hoje eu não vou só me cortar. O pânico está me matando. Eu não aguento mais o inferno.Meus pais não me enxergam. Ninguém enxerga. Eu não sou nada. Sou invisível.Minha mãe está ocupada demais com as compras e meu pai? Bem esse só pensa no trabalho. Tenho dois irmãos. Cindy de dez anos, ela é uma idiota. Diz que eu gosto de chamar atenção. Mas no fundo ela só repete as palavras da minha mãe. E tem o Brian, ele tem dezessete e é o único que realmente se importa. Mas o que ele pode fazer? Ele discute constantemente com papai por minha causa, mas nada muda, só me deixa pior. Na escola não é diferente. Tem a Sue, ela é ridícula. Ela e as suas amigas não me dão paz. Passam o dia me perturbando e mexendo comigo. Odeio a escola. É como o inferno...dentro do inferno.Estou com a lâmina na mão, pondero se serei capaz de fazer o que minha mente me diz. Não há ninguém em casa. Mas a qualquer momento Brian vai chegar.Se ele estivesse aqui, estaria no quarto dele ouvindo Rap, ele gosta de Rap. Eu também gosto.Olho pela pequena janela do banheiro e vejo ele chegando. Não vai mudar nada. É muito difícil ele vir no meu quarto.Abro a torneira da banheira, a crise de pânico ainda me consome. Estou tremendo dos pés a cabeça.A banheira enche e eu tiro a roupa, mergulho na água quente. Deveria ser relaxante, mas não é. Estou alheia a qualquer sensação. Já estou acostumada. No momento das crises, só sinto o pânico me dominando. É destrutivo. É só a fase, eu ouço muito isso. Não acredito mais. Nem sei se acreditei um dia.Ainda estou com a lâminana na mão. Olho para os meus pulsos. Tomo coragem. Eu sei que tenho coragem. Penso na minha família.Não vou fazer falta para eles. Forço a lâmina e sinto a pele do meu pulso abrir. O sangue escorrendo forte. Não é o suficiente. Faço o mesmo no outro. O sangue jorra. Sinto uma pequena sensação de prazer antes de ver a água vermelha do meu sangue escorrer para fora da banheira. Sinto minhas forças se esvaindo e aos poucos vou perdendo os sentidos. Chegou a hora. Antes de apagar por completo vejo a porta se abrindo bruscamente.Tudo é uma névoa. Me sinto flutuando. Mãos firmes me pegam da água. Sou enrolada em algum tecido, ao mesmo tempo que descemos a escada. Sou lançada no carro. Estou quase apagando.Ouço meu irmão xingando alto. Não compreendo o que ele diz.Olho para meus pulsos meio grogue e vejo que o tecido que me envolve está embebido em sangue. A escuridão me engole.Abro os olhos e a claridade incomoda. Então os fecho outra vez. Minha boca está seca. Ouço vozes mas elas estão distantes. Abro novamente os olhos. Aos poucos me acostumo a claridade. Vejo Brian conversando com um homem de jaleco branco. Ele olha na minha direção e sorri.
- Mell? Que bom que acordou.- Onde eu estou?- No hospital. Não se lembra?Aos poucos minha mente começa a desanuviar e lembro.
- Sim.- Por que fez isso? De novo?- Me deixa Brian.- Essa já é a quinta vez, só esse ano!- Cadê a mamãe?- Ela...- Tá já sei.Até a terceira vez que tentei suicídio, minha mãe chegava no hospital histérica, prometendo que ia mudar. Nunca mudou. Não ia mudar nunca.Foram as mesmas coisas de sempre. Psicólogo, psiquiatra, blá blá, blá. Todos fingindo que se importavam.Soube que dessa vez havia sido uma semana até eu acordar.Brian me levou para casa em silêncio. Fui eu quem falei.- Como me encontrou?- A água da banheira estava escorrendo pela escada. E havia sangue nela. Muito sangue. Então eu fui lá e te vi. Pensei que você já estava morta.- Era isso o que eu queria, sabe?- Não diga isso Mell.- Estou cansada.- É aquela garota de novo?- Também. Mas não quero falar nisso agora.Ele ficou quieto. Sai do carro e fui direto para o quarto. Achei que dessa vez eu morreria.Não foi dessa vez.Na minha cama tinha uma caixa, dentro havia um celular novo e um bilhete."Oi filha, desculpe não estar aí para te receber. Silvia precisou de mim para um evento. Te amoMamãe"Legal. Um presente por tentar morrer.
Minha mãe conseguia me deixar pior até quando tentava agradar. Ela não sabia, mas mais do que querer um celular novo, eu queria sua presença.
Deitei na cama e peguei um livro. Minha única alegria.Meus pais até tentavam, mas não conseguiam mudar. Cada vez erravam mais. Não entendiam como uma garota de quinze anos que tem tudo o que alguém gostaria na vida, pode ser depressiva.Eu explico. Celular bom, roupa boa, boa comida ou uma casa grande não suprem a falta que uma mãe e um pai fazem. Além de Brian, eu só tinha uma pessoa que me entendia de verdade. Tia Lili. Mas ela se foi. Meu irmão até tenta suprir o que ela fazia, mas é impossível para ele. A primeira vez que tentei suicídio foi após a morte dela.Eu estava na minha casa. Não faz muito tempo, foram apenas três anos atrás.Ela vinha definhando, vítima de uma doença, não sei qual, e particularmente nunca me interessei em saber. Eu tinha nove anos quando ela adoeceu. Lutou por muito tempo contra a doença, mas perdeu. Quando comecei a fi
Cheguei alegremente na escola, queria contar a novidade a Bia. Finalmente eu havia conseguido que contratassem a mãe dela. Mas Bia não apareceu. Então decidi que na volta passaria na casa dela.Passei pelo pátio e os professores ainda não haviam ido para as salas, me sentei e então Sue e suas comparsas vieram na minha direção.- Oi perdedora! Soube que você tentou suicídio de novo.- Isso não é da sua conta.- Triste isso. Como assim, você tentou suicídio?...E não conseguiu?- Me deixa em paz Sue.- É divertido tirar a sua paz.Ignorei, me levantei e saí andando. Corri até o banheiro e fechei a porta. Elas vieram atrás de mim. Eu me tranquei em uma das cabines.- Eu sei que você está aí, não adianta se esconder.- Me deixa, por favor!- Pare de choramingar! Maluca!- Vá embora!- Sabe como mostramos a um maluco que ele é maluco? Expondo a loucura dele para os outros. Isso é para o seu próprio bem Mellany.
Quando meu pai foi embora, não demorou muito para que minha tia me levasse para morar com ela na Áustria. A separação foi difícil. Eu tinha apenas doze anos, mas mesmo tão jovem vi aquilo como uma oportunidade de cuidar da minha mãe e das gêmeas. Meu pai não havia sequer registrado as meninas. E elas já tinham oito anos quando ele se foi! Fiz o que pude, mas então minha tia se casou, e mesmo eu tendo um trabalho, eu me sentia um intruso na casa dela. O marido dela nunca me tratou mal, até porque minha tia não permitiria, mas eu notava que ele não me queria lá. A gota d'água para mim foi ouvir uma conversa dele com a minha tia.Eu cheguei do trabalho alguns minutos mais cedo, eles não me esperavam.- Ele nem ao menos é seu filho!- Mas é filho do meu irmão!- Se nem seu irmão quis ficar com ele, por que eu teria obrigação?- Chega, não quero mais falar desse assunto. Se você me ama, tem que aceitar o Théo, porque ele não vai embora...Eu entrei, ele sa
Cheguei na escola junto com Théo e Bia. Ele precisou comparecer a secretaria e então eu fui para a sala com Bia. No caminho fomos interceptadas por Sue.Ela me jogou contra a parede e apertou meu pescoço com o braço. Bia foi segurada pelas outras duas.- Acha que você e o novato vão se safar? Não vai demorar para terminar a minha detenção e eu pego os dois! Sua louca. Demente!- Me deixa em paz! Só o que eu quero é que me deixe em paz!- Ain ela quer que a deixemos em paz...o que acham meninas?-Hahahahah!Ela me soltou e eu olhei Bia nos olhos. Então corri para o banheiro. Me tranquei em uma das cabines. Eu podia sentir a crise de pânico vindo.Era uma sensação conhecida. Era horrível. Esqueci de tudo e todos. Era inesplicável o que eu sentia. Minhas mãos suavam, minha pele esquentava. Tontura, enjoos. Só queria sumir, apodrecer em algum canto escuro. Melhor, queria nunca ter existido. Nunca ter nascido. Olhava ao meu
Nunca imaginei que aquela tristeza no olhar de Mell, fosse depressão. Nem mesmo as tentativas de suicídio. Os cortes.Quando Bia me contou, me senti um idiota, por não ter notado antes. Eu tinha que ajudar Mell. Eu ainda não sabia como, mas eu iria fazer. Mas o que eu seria capaz de fazer a mais do que Bia, que a conhecia há tantos anos?Eu não sabia. Mas nada me impediria de tentar descobrir. Eu precisava fazer isso. Porque Mell era uma pessoa boa e merecia ser feliz. E porque eu estava apaixonado por ela.Sim. Eu mal conhecia Mellany e já estava apaixonado. Eu não podia imaginar o mundo sem ela. E não podia permitir que ela se removesse do mundo.Bia disse que ela não iria me aceitar. Que o ex dela era atencioso no início e depois apenas a magoou mais. Eu não seria assim. Mas como provar isso a ela?Mell não foi a escola na sexta, na saída comprei flores e fui até a casa dela. Minha mãe foi quem abriu a porta.- Oi mãe. Como está Mell?- Ela não s
O beijo aconteceu lenta e fervorosamente. Era urgente. Por mais que nos conhecíamos há pouco tempo, mas eu já queria beijar Théo desde o primeiro dia. Nos afastamos juntos.- Isso foi...- Incrível.- Sim.- Mas?- Eu tenho medo, Théo. Meu ex namorado era tão atencioso no início, e acabamos terminando por conta da pouca paciência que ele tinha com o meu problema. - Eu não vou fazer como ele.- Não prometa aquilo que você não pode cumprir.- Não estou te prometendo nada. Eu não sou ele. E nem pretendo. Vou dar o meu melhor para te ajudar, e quando ficar difícil, vou pedir um tempo para pensar. Mas não vou te abandonar. Não quero te abandonar. E antes de ser seu namorado, quero ser seu amigo. Me sinto atraído por você, sim. Mas se você não me quiser, vou continuar sendo seu amigo. - Não sei o que dizer.- Não precisa dizer nada. Vamos apenas deixar rolar. Seremos apenas amigos. Mas se você quiser me beijar eu vou adorar.-
A noite ao lado dela foi perfeita. Namoramos e olhamos as estrelas. A companhia dela era maravilhosa.Na semana seguinte voltamos ao encontro, e Mell estava cada dia mais interessada. Ela quis ajudar com a equipe de rua. Essa equipe se resumia a levar alimentos e cobertores aos moradores de rua. Mas nós também ajudávamos com cestas básicas em comunidades. Eu não achei uma boa idéia, mas ela insistiu.Seguimos para o centro da cidade. O trabalho seria à noite. Era o horário que eles se concentravam em um lugar só. Era mais fácil trabalhar. Porém, mais perigoso e mais triste de ver.Descemos da van e já haviam muitos moradores de rua ali.- Meu Deus! Eles dormem assim?- Sim, Mell. Essa é a realidade deles. Você consegue?- Sim. Eu quero fazer isso. É importante para mim.- Qualquer coisa me diga, vamos embora na mesma hora.- Isso não mudaria nada. Então mesmo que eu precise ir embora eu vou ficar.- Mell...- Théo, não sou criança.&nb
Acho que se não fosse por Théo teria deixado que a melancolia me dominasse novamente. Ele estava me fazendo mais forte. Isso era bom. Mas também era ruim.Eu não queria uma muleta. Tinha medo do que poderia acontecer se um dia nós rompessemos. Eu tinha que amar Théo, sem ser dependente dele. Mas é difícil para alguém como eu. Ele me faz sentir segura. Sinto que ao lado dele todas as minhas tristezas desaparecem. E digo isso a ele. Conto a ele meus medos.- Mell, você não deve se apoiar em mim para fugir da depressão. Eu sou imperfeito e posso te magoar. Se isso acontecer, sei que você vai ficar mal.- Mas eu não posso evitar.- Quando vamos no encontro você não se sente bem?- Sim.- Se apoie nisso. No que ouve lá, e pratique na sua vida.- Mas como posso me sentir segura com palavras?- Não são apenas palavras. São ensinamentos.- Sabe Théo, eu não conhecia essa coisa de fé. Nunca acreditei muito nisso.- Eu sei. Se acreditasse não t