Quando meu pai foi embora, não demorou muito para que minha tia me levasse para morar com ela na Áustria. A separação foi difícil. Eu tinha apenas doze anos, mas mesmo tão jovem vi aquilo como uma oportunidade de cuidar da minha mãe e das gêmeas. Meu pai não havia sequer registrado as meninas. E elas já tinham oito anos quando ele se foi! Fiz o que pude, mas então minha tia se casou, e mesmo eu tendo um trabalho, eu me sentia um intruso na casa dela. O marido dela nunca me tratou mal, até porque minha tia não permitiria, mas eu notava que ele não me queria lá. A gota d'água para mim foi ouvir uma conversa dele com a minha tia.
Eu cheguei do trabalho alguns minutos mais cedo, eles não me esperavam.- Ele nem ao menos é seu filho!- Mas é filho do meu irmão!- Se nem seu irmão quis ficar com ele, por que eu teria obrigação?- Chega, não quero mais falar desse assunto. Se você me ama, tem que aceitar o Théo, porque ele não vai embora...Eu entrei, ele saiu e ela tentou disfarçar, mas sabia que eu tinha ouvido.- Filho eu...- Deixa tia. Eu vou embora. Não quero te atrapalhar, a senhora já me ajudou tanto.- Vai para onde? Como vai alugar algo?- Não vou alugar nada, vou voltar para o Brasil. Acho que já é hora.- Você não pode.- O que não posso é ficar atrapalhando sua vida. Mas também não tenho como pagar um aluguel e ainda m****r dinheiro para minha mãe, então vou para lá.- Aí Théo...- Já chega! Está decidido.Demorei uma semana para conseguir um vôo. Era quinta e eu estava arrumando minhas coisas, quando ouvi outra discussão dos dois. Não me envolvi. Me sentia culpado por isso. Tomei um banho rápido e me deitei para dormir.
Acordei cedo no dia seguinte. Coloquei minhas malas no carro antes do café. Me sentei na mesa ao mesmo tempo que o marido da minha tia.- Bom dia Theodore.- Bom dia.- Não quero que fique com raiva...- Olha, eu já vou embora, está decidido. Não precisa falar nada.- Não é que não goste de você. Mas não sei se você me entende.- Não. Não entendo. Mas este é um direito seu. Só não magoe a minha tia. Porque senão eu volto, e volto para matar você.- Certo.- Minha tia apareceu na copa e trouxe omelete.- Querem bacon?- Sim querida.- Eu não tia. Só o omelete tá bom.Comi e ajudei minha tia com a louça.- Filho, o Joe vai levar você ao aeroporto, tudo bem?- Sem problemas tia.Geralmente era eu quem dirigia o carro dela, mas eu não iria voltar, então alguém precisava fazer.Fui em silêncio o caminho todo. Na verdade não via a hora de reencontrar minha mãe e minhas irmãs. A situação delas não estava boa e iria piorar, mas ao menos eu estaria por perto. Não voltei antes, porque o dinheiro que eu recebia no trabalho era mais do que eu poderia sonhar no Brasil. Mas agora eu não tinha escolha.Cheguei em casa no sábado a noite. Minha mãe já tinha minha matrícula feita na escola, minha tia se prontificou a pagar as mensalidades, mas eu fiz uma prova e consegui meia bolsa. Ela só teria que pagar metade. Eu parei de estudar quando cheguei ao primeiro ano. Na Áustria isso não é muito comum, mas eu preferi isso, para poder trabalhar em período integral e ajudar minha mãe. Minha mãe praticamente me obrigou a voltar para a escola.No primeiro dia de aula, Bea passou muito mal.- Eu não vou pra aula hoje. Vou com ela no médico. - Falei.- Nada disso, é o seu primeiro dia filho. Você precisa ir.- Mas mãe...- A Bia vai com ela.- Tá bom, mas qualquer coisa me avisem.- Com certeza meu filho.Fui para a escola a contragosto. Entrei na sala e sentei no fundo, odiava me sentir o centro das atenções. Uma menina ruiva entrou na sala junto com outras duas que pareciam ter saído de um filme de monstros góticos, elas riam muito. Sem querer ouvi a conversa, e por alguma razão comecei a gravar. O professor fez a chamada e eu descobri que a ruiva se chamava Sue Clark.Eu precisava verificar se era verdade, então pedi ao professor de história para ir ao banheiro. Quando cheguei, mexi na porta e vi que estava fechada. Alguém lá dentro respondeu quando chamei. Fui até a direção e contei o ocorrido. A diretora me acompanhou até o banheiro e abriu a porta.Ela estava sentada no chão, tinha o rosto inchado de chorar. Seus cabelos eram claros, mas não chegavam a loiros e estavam enrolados em um coque. Seus olhos eram pretos e grandes. Pareciam duas jabuticabas. Sua pele era rosada, mas ela parecia abatida e triste. Nós apresentamos e eu soube que ela era a amiga rica de Bia.Resolvemos a história toda com a diretora e passamos todas as aulas juntos. Me ofereci para acompanhá-la até sua casa, mas ela ia ver Bia. Contei que era irmão dela. Então ela sorriu. Um sorriso genuíno. Como se ela nunca tivesse sorrido assim antes.Soubemos juntos que a desmiolada da minha irmã de quinze anos estava grávida. Eu me perguntava como duas irmãs gêmeas podiam ser tão diferentes. Bia era totalmente responsável e equilibrada. Bea era exatamente o contrário. E agora estava grávida. Ao quinze anos.Soube também pela minha mãe que Mell tinha saído do hospital na sexta e perguntei o que havia acontecido. Ela me disse que havia cortado os pulsos. Aquilo me pegou de surpresa. Não imaginava que aquela tristeza constante no olhar dela podia ser depressão. Ela não me disse, mas eu imaginei que essa era a razão para a tentativa de suicídio.Ela foi embora, minha mãe estava exultante que iria começar a trabalhar. Bea passou o resto da noite vomitando o jantar e eu fui para o meu quarto.Me deitei na cama, mas não consegui dormir. Cada vez que fechava os olhos via duas jabuticabas me olhando.Não conseguia tirar Mellany da cabeça.Me virei de bruços e coloquei o travesseiro sobre a cabeça. Ela era apenas uma menina. Tinha quinze anos. Eu era muito velho para pensar em qualquer coisa com ela. E ademais ela era amiga da minha irmã. Me peguei pensando se seus pais me aceitariam. Afastei esse pensamento e fui tomar um banho gelado. Ela não podia ser minha. Eu era muito velho para ela. E nós éramos de mundos diferentes. Muito diferentes.No dia seguinte acordei cedo. Fui andando com as meninas até a escola, elas passavam sempre na casa da Mell. Bea ia com o namorado, namorado esse que eu estava querendo muito encontrar. Mas Bea se certificou de que isso não ocorresse. Mell saiu de casa e veio andando na nossa direção. Minha mãe que já havia vindo cedinho, saiu junto com ela e deu um abraço.
- Vai com Deus querida. Ah, oi filhos. Vão com Deus vocês também.Demos um tchauzinho para ela e continuamos andando. Os olhos de Mellany estavam marejados. Ela estava calada. E foi assim até a escola.- Algum problema Mell?- Nenhum Bia. Só estou feliz por sua mãe.- Que modo estranho de demonstrar sua felicidade.- Ela é assim mesmo Théo.- E só que...- O que Mell?- O que sua mãe fez hoje...minha mãe nunca fez comigo.- O que?- Sair lá fora...se despedir.Achei estranha a reação dela, aquilo era tão comum para minha família, que não entendi como aquilo podia ser tão importante para ela.Mas eu teria tempo para descobrir. Eu ainda iria descobrir muito sobre Mellany Alves, e não ia gostar de boa parte.Cheguei na escola junto com Théo e Bia. Ele precisou comparecer a secretaria e então eu fui para a sala com Bia. No caminho fomos interceptadas por Sue.Ela me jogou contra a parede e apertou meu pescoço com o braço. Bia foi segurada pelas outras duas.- Acha que você e o novato vão se safar? Não vai demorar para terminar a minha detenção e eu pego os dois! Sua louca. Demente!- Me deixa em paz! Só o que eu quero é que me deixe em paz!- Ain ela quer que a deixemos em paz...o que acham meninas?-Hahahahah!Ela me soltou e eu olhei Bia nos olhos. Então corri para o banheiro. Me tranquei em uma das cabines. Eu podia sentir a crise de pânico vindo.Era uma sensação conhecida. Era horrível. Esqueci de tudo e todos. Era inesplicável o que eu sentia. Minhas mãos suavam, minha pele esquentava. Tontura, enjoos. Só queria sumir, apodrecer em algum canto escuro. Melhor, queria nunca ter existido. Nunca ter nascido. Olhava ao meu
Nunca imaginei que aquela tristeza no olhar de Mell, fosse depressão. Nem mesmo as tentativas de suicídio. Os cortes.Quando Bia me contou, me senti um idiota, por não ter notado antes. Eu tinha que ajudar Mell. Eu ainda não sabia como, mas eu iria fazer. Mas o que eu seria capaz de fazer a mais do que Bia, que a conhecia há tantos anos?Eu não sabia. Mas nada me impediria de tentar descobrir. Eu precisava fazer isso. Porque Mell era uma pessoa boa e merecia ser feliz. E porque eu estava apaixonado por ela.Sim. Eu mal conhecia Mellany e já estava apaixonado. Eu não podia imaginar o mundo sem ela. E não podia permitir que ela se removesse do mundo.Bia disse que ela não iria me aceitar. Que o ex dela era atencioso no início e depois apenas a magoou mais. Eu não seria assim. Mas como provar isso a ela?Mell não foi a escola na sexta, na saída comprei flores e fui até a casa dela. Minha mãe foi quem abriu a porta.- Oi mãe. Como está Mell?- Ela não s
O beijo aconteceu lenta e fervorosamente. Era urgente. Por mais que nos conhecíamos há pouco tempo, mas eu já queria beijar Théo desde o primeiro dia. Nos afastamos juntos.- Isso foi...- Incrível.- Sim.- Mas?- Eu tenho medo, Théo. Meu ex namorado era tão atencioso no início, e acabamos terminando por conta da pouca paciência que ele tinha com o meu problema. - Eu não vou fazer como ele.- Não prometa aquilo que você não pode cumprir.- Não estou te prometendo nada. Eu não sou ele. E nem pretendo. Vou dar o meu melhor para te ajudar, e quando ficar difícil, vou pedir um tempo para pensar. Mas não vou te abandonar. Não quero te abandonar. E antes de ser seu namorado, quero ser seu amigo. Me sinto atraído por você, sim. Mas se você não me quiser, vou continuar sendo seu amigo. - Não sei o que dizer.- Não precisa dizer nada. Vamos apenas deixar rolar. Seremos apenas amigos. Mas se você quiser me beijar eu vou adorar.-
A noite ao lado dela foi perfeita. Namoramos e olhamos as estrelas. A companhia dela era maravilhosa.Na semana seguinte voltamos ao encontro, e Mell estava cada dia mais interessada. Ela quis ajudar com a equipe de rua. Essa equipe se resumia a levar alimentos e cobertores aos moradores de rua. Mas nós também ajudávamos com cestas básicas em comunidades. Eu não achei uma boa idéia, mas ela insistiu.Seguimos para o centro da cidade. O trabalho seria à noite. Era o horário que eles se concentravam em um lugar só. Era mais fácil trabalhar. Porém, mais perigoso e mais triste de ver.Descemos da van e já haviam muitos moradores de rua ali.- Meu Deus! Eles dormem assim?- Sim, Mell. Essa é a realidade deles. Você consegue?- Sim. Eu quero fazer isso. É importante para mim.- Qualquer coisa me diga, vamos embora na mesma hora.- Isso não mudaria nada. Então mesmo que eu precise ir embora eu vou ficar.- Mell...- Théo, não sou criança.&nb
Acho que se não fosse por Théo teria deixado que a melancolia me dominasse novamente. Ele estava me fazendo mais forte. Isso era bom. Mas também era ruim.Eu não queria uma muleta. Tinha medo do que poderia acontecer se um dia nós rompessemos. Eu tinha que amar Théo, sem ser dependente dele. Mas é difícil para alguém como eu. Ele me faz sentir segura. Sinto que ao lado dele todas as minhas tristezas desaparecem. E digo isso a ele. Conto a ele meus medos.- Mell, você não deve se apoiar em mim para fugir da depressão. Eu sou imperfeito e posso te magoar. Se isso acontecer, sei que você vai ficar mal.- Mas eu não posso evitar.- Quando vamos no encontro você não se sente bem?- Sim.- Se apoie nisso. No que ouve lá, e pratique na sua vida.- Mas como posso me sentir segura com palavras?- Não são apenas palavras. São ensinamentos.- Sabe Théo, eu não conhecia essa coisa de fé. Nunca acreditei muito nisso.- Eu sei. Se acreditasse não t
Foi muito estranho ver meu irmão e Bea juntos, mas eles estavam realmente se entendendo. Meus pais haviam ligado e dito que ficariam fora por mais alguns meses. Isso não era novidade.Bea já estava no sétimo mês de gestação. Brian dizia que iria assumir o bebê e se casar com ela. Eles estavam indo no encontro, comigo e Théo. Numa noite saímos os quatro de lá e decidimos ir comer algo antes de ir para casa. Théo estava muito calado. Durante o sermão ele havia se emocionado muito.Passamos em um fastfood e pedimos sanduíches.- Eu amo a batata daqui.- Você ama qualquer coisa que seja comestível né Bea!- Credo Théo, do jeito que você fala...Ela começou a ficar pálida.- Bea? O que você tem?- Não é nada de mais Mell, só uma tontura.- É melhor irmos embora gente.- Tem razão Mell - disse Théo.Brian pegou minha cunhada no colo e fomos todos para o carro.Ele a colocou no chão para poder abrir a porta e ela desmaiou ali
O caixão de Bea era simples. Aceitei a ajuda de Mell e Brian para comprar, mas não quis nada muito caro. Eles se encarregaram de todas as despesas, já que não tinhamos condições. Minha irmã estava deitada, e sobre o seu corpo estava o seu bebê. Era um menino. Eu mal conseguia olhar. O rosto do bebê era incrivelmente parecido com o dela. Doía ver a cena. Beatriz sempre foi tão alegre e cheia de vida. Mell não saiu do meu lado um momento sequer. Sei o quanto estava sendo difícil para ela. Ela amava Bea, tanto quanto eu e estava se desdobrando para consolar a mim, a minha mãe e a Bia, que de todos nós, era quem estava mais desolada. Isadora estava em um canto, Nikki dormia em seus braços. Ela olhava de longe para Bea. Me aproximei devagar.- Tá tudo bem?- Hum...Oi...Sim.- Parece distante.- É só que...eu estava pensando...poderia ter sido eu. Tive meu bebê na rua, sozinha...- Não era para ser você.Ela deu de ombros e eu
Cheguei em casa após uma noite maravilhosa, o encontro havia sido muito proveitoso e eu estava muito feliz. Théo me deixou em casa e após isso eu entrei. Ao abrir a porta meus pais estavam sentados no sofá e tinham um olhar severo. Daqueles que ao ver já sei que não vou gostar do que vou ouvir.- O que fazia com esse rapaz?- Mãe nós fomos ao encontro de jovens e...- E por que estava beijando ele?- Papai eu...- Não diga nada Mellany. Não queremos você de namorico com o filho da babá!- Vocês nem sequer ficam em casa! Nem cuidam de nós!- Vamos ficar agora, e quando não estivermos terá alguém que cuidará para que não veja esse moleque!- Ele não é moleque, é mais homem que você! Cuida mais de mim do que você!- Vou denunciar esse canalha, por tocar na minha garotinha...- Agora eu sou sua garotinha? Eu quis morrer um milhão de vezes e você nunca se importou! Ele se importou, eu quero viver hoje por que ele se importa!- C