Khadija
O suor frio escorreu na minha testa. Minhas pernas tremiam tanto que eu tive medo que elas não me sustentariam quando eu me levantasse daquele sofá. Titia estava ao meu lado, segurando a minha mão. O contrato estava sendo lido agora em uma sala cheias de testemunhas. Ela traduzia, mas eu não conseguia ouvir nada, pois tudo no meu corpo parecia doer, as lágrimas borravam minha visão e minhas costas estavam tensas.
Cansada e desgastada era assim que me eu me sentia. Exausta. Nadando contra a maré, mas precisava seguir em frente. Respirei fundo! Penso enxugando as lágrimas. A maquiagem era à prova d'água, acho que estava mais para à prova de noiva amargurada.
Eu era um descendente árabe que no máximo que eu falava e entendia da língua eram algumas expressões. Minha mãe inglesa teve uma grande influência sobre minha educação. Papai amava meu país e tenho certeza que amava muita minha mãe. Eles nunca impuseram os costumes. Caçula da família, ele veio muito cedo para a Inglaterra, isso o influenciou na assimilação da nova cultura.
Quando terminou a leitura do contrato titia apertou mais forte a minha mão.
—Habibi? Você aceita?
Meus olhos desviaram à minha esquerda. Titia estava me olhando, sua boca em uma linha apertada, seus olhos vermelhos.
Emocionada?
Nessas últimas semanas percebi que ela estava muito agitada, angustiada. Fiquei imaginando se meu noivo não era um homem feio, barrigudo e velho. Cheguei até a perguntar para ela isso, mas ela me disse que ele era muito atraente.
Allah! Sempre ouvi dizer que gosto não se discute.
O que era atraente para ela, poderia não ser para mim.— Khadija? Responda? Você aceita?
Eu pisquei aturdida.
— Aywa (Aceito). —Joguei as palavras em árabe.
Allah! Fui sacrificada!
— Shukraan Allah(Obrigada Allah) —Titia disse com as mãos para o alto. Me senti vendida.
Eu percebi que no momento que as minhas palavras deixaram os meus lábios. Minha tia liberou as lágrimas. Seu corpo antes tenso, relaxou. E ela se uniu a elas no zahareet.
Gritinhos das mulheres e da minha sogra de “lalalalala" e "lililililili" encheram a sala.
Titia soprou no meu ouvido:
—Agora ela falará uma poesia sobre sua cabeça para você ter sorte no amor.
Uma mulher bem velha começou a recitar o poema em árabe. Do amor de Khalil Gibran, Titia simultaneamente traduzia para mim.
Quando o amor vos chamar, segui-o,
Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;
E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,
Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;
E quando o amor vos falar, acreditai nele,
Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos
Como o vento devasta o jardim.
Pois, da mesma forma que o amor vos coroa,
Assim ele vos crucifica.
E da mesma forma que contribui para vosso crescimento,
Trabalha para vossa poda.
E da mesma forma que alcança vossa altura
E acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,
Assim também desce até vossas raízes
E as sacode no seu apego à terra.
Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.
Todas essas coisas, o amor operará em vós
Para que conheçais os segredos de vossos corações
E, com esse conhecimento,
Vos convertais no pão místico do banquete divino.
Todavia, se no vosso temor,
Procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor,
Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez
E abandonásseis a eira do amor,
Para entrar num mundo sem estações,
Onde rireis, mas não todos os vossos risos,
E chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.
O amor nada dá senão de si próprio
E nada recebe senão de si próprio.
O amor não possui, nem se deixa possuir.
Porque o amor basta-se a si mesmo.
O zaghareet se iniciou novamente.
Senti um arrepio no corpo. Veria meu noivo pela primeira vez. O contrato foi lido para ele também, um poema recitado em seus ouvidos.
Agora nos reuniríamos em uma sala para a troca de alianças.
Eu me levantei do sofá com a ajuda da minha tia, embora a celebração de todo o ritual do casamento fosse só amanhã, eu vestia um pesado vestido creme, cheio de madrepérolas. Meus cabelos castanhos claros, compridos, com mechas artificialmente loiras, estavam escondidos dentro de um tecido de seda branco. Até a noite de núpcias, ele só veria meu rosto bem maquiado.
Meus olhos esverdeados ganharam vida com lápis, delineador e rímel. Meus lábios foram valorizados com um batom sem brilho da cor deles, para que o destaque ficasse em meus olhos.
Antes de caminhar, passei a mão pelo suor fino da minha testa. Eu não tinha comido nada desde manhã. Não consegui, de tão nervosa que eu estava.
Segurando a mão de minha tia caminhei para a sala onde estaria meu noivo....
Zafir
Depois do meu sim, um poema foi lido no árabe do livro A Sabedoria de Hassan:
A sabedoria oculta é como o tesouro enterrado, que de nada pode valer; e não é sábio aquele que enterra o seu tesouro, mas o que dele sabe usufruir. O sagrado mistério do amor: cada um deve perder-se de si mesmo, para que ambos se encontrem na plenitude. E um não poderá seguir sobre os passos do outro, nesta estrada em que é preciso caminhar de mãos dadas.
Repartir a sabedoria é uma forma de aumentá-la; e também aprende aquele que ensina. Pois o homem não consegue falar a si mesmo, senão quando finge falar aos outros homens.
Sua esposa, a eleja como um sonho maior. Segura sua mão para que não possa tragar a voragem da inquietude. Porque apenas a força de um sonho pode trazer paz à vossa alma.
Beba o som da voz de sua esposa, como se assim pudesse embriagar e esquecer a tristeza da solidão.
Na música do seu sorriso, canta a sua própria alegria; àquele que demasiada ama é feliz por não pertencer as próprias emoções.
Quando o poema terminou, eu clamei para Allah que um dia aquelas palavras fizessem sentidos para mim.
Amor. O que era o amor? Perguntei-me pela milésima vez.
Eu me levantei do sofá depois e recebi um abraço de meu pai. Caminhei sentido a sala onde finalmente a conheceria.
KhadijaCaminhei me sentindo dentro de um ritual de abate, onde o cordeiro seria sacrificado, no caso "eu".Meu destino?Unir-me a um homem que nunca vi na vida.Eu não o conheço.Estremeci pensando nisso. Minhas pernas quase falharam na breve caminhada até a porta em formato de arco, que foi logo aberta por uma das mulheres. Eu caminhei até ela como uma condenada, meus pés pesados como se estivessem presos em correntes, carregando duas bolas de chumbo.No momento que pisei na sala, eu o avistei. Ele era alto. Os cabelos grossos como carvão. Passei meus olhos pela sua calça social preta que envolvia suas pernas e acentuava sua estreita cintura. A camisa branca não era apertada, mas realçava seu corpo. O casaco preto e a gravata preta completavam o visual e emanava poder e sexo. Ele estava de perfil,
KhadijaO jardim estava banhado de sol naquele fim de tarde. Sereno, verde e dourado. Me afastei da janela e sentei na minha cama.Uma coisa eu tinha que reconhecer, nosso povo era muito amistoso. As mulheres, mesmo que não falassem minha língua, não sabiam o que fazer para eu me sentir feliz e confortável.Titia nem se deu ao trabalho de ficar comigo, estava aproveitando as despesas pagas pelo meu noivo, agora marido, e batendo perna na Medina.A porta se abriu e minha tia entrou no meu quarto, sorriu quando me viu. Tirando o lenço preto que usava na cabeça suspirou:—Allah! Aqui é tudo tão lindo. Essa casa, então, maravilhosa.—Gostei muito da tia de Zafir. Uma pessoa simples e prestativa. Tem uma casa tão grande e nem parece dona dela.Zilá se aproximou de mim com uma sacola na mão.—E dele? Vo
ZafirKhadija se afastou de mim e se enfiou no banheiro com algumas roupas nas mãos. Eu tirei a minha também e só coloquei uma calça de pijama. Logo minha mente me avisou para ter cautela, por isso coloquei também uma camiseta, cobrindo completamente meu corpo.Caminhei até a janela e pela vidraça pude ver a lua cheia. Uma coisa eu tinha, paciência. Casado há três anos com Jamile, eu adquiri convivendo com ela. Ouvi muitas palavras atravessadas em seus dias de mau humor por causa da maldita TPM, suas negativas ferozes quando eu a convidava a um jantar de negócios. Ela só queria sair para festas da alta sociedade. Minhas reuniões, ela não se interessava. Dizia que só haveria “conversas chatas".Eu sabia que meu casamento era um fracasso total, mas eu me acomodei e ela nunca cometeu um grave delito para que eu pudesse repudi&a
KhadijaDizem que ninguém se esquece da primeira vez que pisa em Paris. Eu seria uma delas....Encanto, espanto, surpresa, deslumbramento, alegria e prazer. Tudo isso ao lado de um homem maravilhoso....Às dez horas da noite descemos no Aeroporto Charles de Gaulle. Fomos até área de desembarque e pegamos nossas malas; uma minha, só com poucas roupas. Duas grandes de Zafir.Quando nos viramos, um senhor de meia idade, se aproximou dele.— Seigneur. Avez-vous fait un bon voyage?— Oui, merci. Charles. C'est ma femme, Kajira.Eu fitei a cena confusa. Quem era esse senhor?—Bienvenue, mademoiselle. —Ele se inclinou para mim.Eu sorri. Quando ele pegou nosso carrinho e se dirigiu para a saída, Zafir colocou sua mão na minha cintura.—Quem é esse senhor? Por que ele está levando nossas malas? —Eu
ZafirEu me inclinei e beijei suavemente ao longo de sua mandíbula e logo abaixo da orelha.Ela cheirava tão bem, um perfume doce, como jasmim e rosas. Tão diferente... khara! (Merda!) Não quero pensar em Jamile agora.Voltei a beijar-lhe suavementea concha de sua orelha.—Eu não vou pressioná-la para qualquer coisa. —Sussurrei em seu ouvido, sentindo como ela estava nervosa. Então eu a encarei com as pupilas dilatadas de desejo. Torcendo para ela se entregar de coração e alma. —Não quero que faça amor comigo por obrigação ou gratidão.Ela me olhava afogueada, sua respiração agitada soprando em meu rosto.—Não, eu te desejo. Eu quero isso.Eu sorri de satisfação, retornei com beijos leves por todo seu pescoço antes de chegar a sua boca. Be
KhadijaAqui em Paris, gula não é pecado nem algo imperdoável. Aliás, era um rito indispensável que nos leva ao paraíso.Saímos para almoçar fora. Fomos na Brasserie Balzar (49 Rue des Ecoles 75005. Os mâitres e garçons foram muito atenciosos e alegres, prontos a sugerir o prato do dia. O cardápio foi maravilhoso a experiência de comeraile de raie française façon grenobloise, pommes vapeur,que eraarraia com muita manteiga e alcaparras acompanhada com batatas cozidas. Delicioso, como um manjar dos deuses. Eu sei que muito tinha a ver com o lugar que estávamos, segundo Zafir, era o prato predileto do Johnny Depp.Aqui em Paris, os turistas compravam desenfreadamente. Os franceses olhavam tudo com certo desdém para as imensas sacolas que todos carregavam. E eu e Zafir éramos um desses
KhadijaAqui em Paris, andar de bicicleta não era mais comum do que pegar um carro. Crianças, jovens e mulheres de meia-idade, com suas bicicletinhas com cestinhas na frente, todos andavam. Conclui que por isso as francesas eram tão magrinhas.Estar com Zafir, descobri que podia fazer coisas diferentes. Me reinventar.Eu e ele pedalamos muito. Mesmo num friozinho de dez graus, não ficamos morgando em casa. Pode parecer uma coisa banal andar de bicicleta. Mas foi uma experiência maravilhosa. Eu aprendi a pedalar, na época que meus pais eram vivos, e viver essa experiência novamente e com ele, era algo extraordinário, libertador, e muito, mas muito gratificante.A Cidade Luz era maravilhosa. Não estava aconchegante, porque o vento provoca um frio de rachar, mas eu me sentia viva. Zafir então, parecia um menino. Lindo, jovial naquela calça de veludo marrom
Zafir—Zafir! Como ousa? Como ousa sumir assim sem dar notícias? —Sua voz tremia do outro lado.—Jamile. É natural. Eu acho que mereço umas férias depois de matar um leão por dia para te dar o melhor.—Mas esse tempo todo você deixou o celular desligado! E se algo acontecesse comigo?—Meu pai me ligaria aqui.—Eu liguei para a casa de sua tia no Marrocos, ela disse que você viajou. Mas não me abriu nada. Aonde vocês foram? —Minha tia conhecia Jamile e seu jeito inoportuno, ela com certeza me ligaria aqui, por isso ela não revelou nada.—Quando eu chegar, conversaremos.—Você comprou alguma coisa para mim? —Ela perguntou melosa.Merda!—Não, ainda não.—Ainda não? Você vem amanhã! Qu