Lochiel entrou de súbito no aposento mal iluminado pelas poucas e desgastadas velas que ainda estavam de pé. Os móveis quebrados deixavam claro a fúria do combate que acontecera. Havia marcas de queimado pelas paredes e dois homens encapuzados jaziam mortos, queimados até os ossos na sala. Estava tudo um caos e mesmo assim o garoto sabia onde sua presença era necessária. Usou as sombras para se esgueirar e foi até o quarto principal onde um vulto encapuzado abria uma brecha na parede da casa e saltava para fora, mas o garoto não ligou pra ele. Um corpo conhecido jazia estendido no chão com mais dois encapuzados fora de combate estendidos ao lado dele.
O menino abandonou seu disfarce ao ver seu mestre e amigo agonizando com um enorme buraco cauterizado no peito. De joelhos ao lado do corpo estava Alice, a bruxa, versada nos mais diversos tipos de feitiços e poções mágicas, com seus longos cabelos negros cobrindo o rosto, levemente chamuscado e uma ferida profunda no braço, sangrando sem parar. Os soluços da sua tristeza ecoavam pelo quarto destruído, onde as chamas começavam a se espalhar ameaçando engolir tudo e todos, sem contar com as madeiras que rangiam e ameaçavam desabar.
A garota não deu atenção a Lochiel e ele não quis dizer nada, compreendia a dor dela, afinal, ele também a sentia. Um farfalhar repentino o colocou em alerta. "Será que são mais inimigos?" girou o bastão com grande destreza produzindo uma rajada de vento cortante, obrigando a quem quer que estivesse ali que se desviasse ou morresse partido ao meio. O vento bateu na parede fendendo a madeira, fazendo mais um belo estrago e uma pequena criatura rolou para perto do fogo crepitante. Estava completamente coberta por um sobretudo de capuz e Lochiel pôde ver uma mão enrugada empunhando uma varinha de madeira girando rapidamente.
O ar emitiu vibrações e com uma pequena distorção grandes facas afiadas surgiram flutuando e voaram em sua direção cortando mortalmente o ar. O garoto sem hesitação girou seu bastão correndo em direção ao inimigo e criando um escudo de energia. As facas bateram no escudo ricocheteando. Uma bola de fogo partiu do escudo de Lochiel e seu atacante se preparou para desviar, mas antes que pudesse completar o movimento sua boca encheu-se de sangue, ele olhou para o próprio corpo, surpreso ao ver sua mágica voltada contra ele, as facas que havia invocado cravadas em suas costas, atravessando seu pulmão e pescoço. Ele caiu de bruços com um baque seco, mergulhando no próprio sangue e os olhos revirados.
Lochiel passou a mão pelo rosto, enxugando o suor, seus cabelos vermelhos como a chama das casas que ardiam lá fora e ali dentro. Não poderia fazer muito pelo seu mestre, mas não o deixaria ali queimando indignamente e muito menos deixaria Alice entregue a própria dor. Utilizando toda a sua força, ergueu o corpo do velho e o colocou nas costas. A bruxa com muito custo se levantou, as lágrimas ainda escorrendo pelo rosto coberto de fuligem. Com muito esforço carregaram o mestre para fora da casa poucos segundos antes de ela ser totalmente devorada pelas chamas.
Cada casa, cada plantação, cada tábua de madeira estava em chamas. Todos estavam mortos. haviam corpos espalhados por todo lugar. Ele não sabia se alguém conseguiu escapar. Não restava mais nada, tudo era escombros e brasas. Uma densa cortina de fumaça negra subia até as nuvens e uma chuva de fuligem cobria tudo.
Tossindo e engasgando, Lochiel e Alice chegaram ao topo da serra. Completamente exausto ele colocou o corpo do mestre no chão. Traçou uma marca na terra, fez o desenho de uma runa e proferiu o encanto no sadhu baahasha, a linguagem dos sábios e magos.
_ Agabhira garta kuluna!
Imediatamente após um breve lampejo brilhante a terra começou a se movimentar em pequenos blocos quadrados fazendo assim um buraco perfeito e do tamanho exato do corpo do mestre. Alice moveu o cadáver com a sua mágica de levitação e o buraco se fechou, findando para sempre a visão do mestre para o mundo vivente. Não havia muito tempo para choradeira e conversa fiada, faltava poucos minutos para o amanhecer e a jovem bruxa parecia séria e furiosa e acredite quando digo que ninguém quer enfrentar uma bruxa furiosa.
_ Eu nunca vi Quimeros usando magia dessa forma. Foi totalmente inesperado. - disse ela. Sua voz denotava o desespero de quem perdera algo querido. - Eles vieram no meio da noite de forma organizada e sorrateira. Foi planejado e seja o que ou quem for, está treinando essas criaturas infernais e direcionando o fluxo de magia delas para objetos mágicos de alta precisão.
Quimeros eram criaturas que surgiram de discrepâncias e fusões resultados de paradoxos menores no éter. Elas possuíam as mais diversas formas, algumas possuíam cabeça de cabra e corpo humanoide, outras possuíam corpo de serpente e cara a de humano, ou até mesmo formas gelatinosas e sem expressão, enfim, sua variedade de formas era imensa e seus tamanhos dependiam dos resultados paradoxais, o tempo e a quantidade de energia gasta em uma determinada mágica. Alguns magos muito poderosos conseguiam converter Quimeros em lacaios ou até mesmo em auxiliares para executarem seus rituais e magias, outros ainda os usavam como fonte de energia caótica para novas magias que geralmente não eram bem vistas para a maioria das pessoas.
_Eu não sei o que pensar, Alice - disse Lochi coçando a cabeça. Por muitos anos essas criaturas não tinham nenhum destino, Líder ou objetivo e do nada resolvem se reunir usando varinhas mágicas e outros artefatos para atacar nossa vila? E para quê? - Lochiel estava cabisbaixo e pensativo e o reflexo disso era a cor morta de seu cabelo.
_Temos que investigar. Eu vi a marca dos Ladrões de Magia em um deles, e se pudermos ter alguma resposta vai ser no Desfiladeiro do Canto. Temos que ir para lá.
O sol nascia brilhante e vermelho no horizonte, a brisa fresca da manhã carregou o cheiro de queimado na direção da serra. Foi nessa hora que Lochiel viu o sangue escorrendo pelo braço direito de Alice e o quanto a garota estava pálida. Teve um segundo para segurá-la antes que caísse desmaiada de exaustão e dor.
A garota estava remoendo sua dúvida. Seus antepassados, todos homens, de uma linhagem de guerreiros poderosos e musculosos, honraram a família com a vitória de grandes batalhas. Todos eles foram mestres em algo. Espadas, arcos, lanças, porrete, luta corporal, bestas, alabardas e tudo mais que era conhecido neste mundo em relação a armas.Ela nascera em um dia chuvoso e triste, antes do tempo previsto e sua mãe não conseguiu esconder a decepção ao ver nos seus braços aquela criatura frágil, careca e fêmea.Em toda a sua vida até agora, ela havia demonstrado total inaptidão as armas e a luta. Se não fosse pelo fato de ser filha do chefe e ter quebrado a linhagem de valorosos guerreiros homens, estaria tudo certo. Não foi por falta de tentativas e treinos duros, muita
As Sabuja Jami, ou Terras Verdes, no idioma comum, não eram lugares fáceis de se viver. Era uma boa terra, fértil e como o nome mesmo diz, repleta de verde. Nas serras que abundam pela região, um musgo grosso e alto, de um verde vivo, cresce no lugar do capim, os camponeses o consideram uma praga porque mata o pasto e até mesmo arbustos menores. Suas raízes rasteiras, dominam as plantas que crescem a sua volta, sugando os nutrientes até matá-las. A maioria dos velhos diz que o nome da terra vem dessa planta que é capaz de sobreviver ao mais rigoroso inverno e ao estouro de uma manada de Rochosos. Aldeias, vilas e cidadelas tentavam sobreviver e ganhar espaço por entre florestas de palmeiras e samambaias de tamanhos colossais. As matas gritavam o tempo todo com suas criaturas de diversos tamanhos e formas, terrestres, voadoras ou aquáticas. Lugares que revelavam os antigos habitantes eram proibidos, exceto é claro para os aventurei
Theraquiel não se importava com a sola gasta dos seus sapatos e da dor que estavam em causando-lhe. Caminhou durante o dia e parte da noite, sem perder um minuto sequer. Atravessar as Sabuja Jani era relativamente simples desde que você não se perdesse em alguma mata, caverna ou templo abandonado ou fosse devorado por alguma criatura, sequestrado por bandidos ou algum mago estudioso louco. Não conseguia entender como tudo naquele lugar cheirava a conspiração e violência. Talvez fosse só o modo como foi criado e doutrinado, mas não conseguia confiar em nada nem ninguém. Quando conseguiu divisar os paredões do desfiladeiro, redobrou os seus cuidados. Aquela região era temida até mesmo pelos soldados do rei e estava literalmente abandonada à própria sorte, desde quando os magos renegados buscaram refugio e fizeram daquela região o seu co
Na Serra próxima da aldeia incendiada, Lochiel, o transmorfo, fechava da melhor maneira que podia a ferida no braço de Alice. Estava cansado e sem energia para realizar magia. Parecia que o perigo já havia passado, mas estava atento a qualquer movimento. Seus sentidos lupinos estavam em alerta máximo. Acendeu uma pequena fogueira para aquece-los quando a noite começou a cair, não tinham nada para comer e sua barriga roncava. Alice ainda dormia, sua vida não corria risco, mas a exaustão da batalha e o uso excessivo de magia chegara ao limite. Estava quase dormindo também, mas um farfalhar nas moitas próximas o despertou completamente. Uma criatura minúscula espreitava por entre a folhagem. Ao vê-la, Lochiel não pode deixar de sentir um certo alívio. _ Pelas raízes da Árvore Mãe! Athala, seu demoniozinho feio e sujo! - exclamou, com um misto de alegria e raiva.
Há milênios os druidas antigos receberam um conhecimento amplo e único de toda a natureza daquelas regiões. Todos eles partiam em uma jornada para conhecer cada aspecto dessa natureza, no deserto, nas florestas quentes e úmidas, nos pântanos e até nas montanhas congeladas. Era necessário entender toda a cadeia de vida de cada lugar para entender o fluxo universal, a cadeia de energia que convergia para o centro do mundo. Era comum entre os druidas chamarem aquela continente até onde as águas do mar sumiam pelo horizonte de Imati Midiri, Terras da Mãe. Claro que cada região tinha seu nome especial e era regido por uma entidade criada pela própria natureza para ser sua guardiã. Druidas eram respeitados em qualquer tribo, em qualquer aldeia que passassem. Não eram vistos como deuses, mas sim como grandes sábios que podiam curar doenças, ajudar a melhorar o cultivo e o gado e ensinar os jovens o respeito pela terra. No começo de cada inverno, eles se reuniam na Arvore Real, a ma
Lochiel e Alice entraram em uma Alderim em polvorosa. Athala preferiu ficar do lado de fora, criaturas como ele não era muito bem vindo, costumavam causar medo ou até mesmo repulsa em alguns, fora que também, segundo ele, poderia não resistir ao impulso de “pegar emprestada” alguma coisa que não fosse dele. A confusão na “Taberna do Javali Dentado” assumiu proporções assombrosas quando a luta chegou às ruas. A luta só acabou quando os guardas chegaram. As Sentinelas do Rei eram soldados temidos até mesmo pelo mais valente mercenário, era a elite dos guerreiros do Reinado, escolhidos a dedo e treinados com rigor pelos mais experientes. Usavam armaduras completas feitas de um metal raro e caríssimo, portavam claymores, espadas grandes e pesadas, feitas do mesmo metal e carregadas de magia que lhes conferia um brilho acinzentado. Não era possível ver o rosto dos soldados por entre a viseira dos elmos, o que gerava lendas a respeito. Alguns diziam que os soldados eram submetidos
Benialli acordava em lapsos febris. Durante esse tempo podia sentir que tentavam lhe tirar o sabre das mãos, mas ele o agarrava firme. Ele via os rostos já conhecidos de vários guerreiros da guarda que vinham lhe visitar, alguns levando frutas e água fresca. O garoto estava além do cansaço normal de uma pessoa. Com a pele esfolada e diversos hematomas, seu corpo inteiro doía, sem contar com as queimaduras que não eram tão serias, mas doíam da mesma forma. Conseguiu acordar de verdade muito tempo depois, desejando do fundo da alma que tudo que acontecera tivesse sido um sonho. Ao se levantar custosamente da cama devido a uma dor intensa nas costelas, sentiu o toque afiado e frio da lâmina que surgira quando o Efrite foi derrotado pelo sacrifício de seu pai, ainda segurava a arma como se ela lhe desse algum tipo de esperança, como se ela fosse a resposta para algo que ainda nem imaginava. Do lado dele o velho Barbello também acordou, limpando a barba da saliva q
Theraquiel acordou assustado como um coelho acossado. Ouviu o crepitar da fogueira e os ruídos dos sapos e grilos a beira do rio. Ainda sentia o frio que o invadira quando aquela criatura, popularmente conhecida como Ladrão de Mana, começara a sugar sua energia, lembrou-se bem da fraqueza que quase o dominara e a sensação de desespero e impotência causados. Lembrou- se vagamente de quando pulou do penhasco para os braços do rio e da garotinha que, agarrada a ele, pulara junto. Olhando para o lado a viu dormindo calmamente, aconchegada pelo calor agradável e acolhedor da fogueira. A sua frente Umnati o observava curiosa. Theraquiel sustentou o olhar._ Estou muito curiosa em saber o que você fazia no Desfiladeiro do Canto. – disse por fim, a druida depois de alguns minutos de silencio encarando o garoto. – Ou és louco de pedra ou é somente mais um tolo. Todo mundo sabe que ali não &ea