A garota estava remoendo sua dúvida. Seus antepassados, todos homens, de uma linhagem de guerreiros poderosos e musculosos, honraram a família com a vitória de grandes batalhas. Todos eles foram mestres em algo. Espadas, arcos, lanças, porrete, luta corporal, bestas, alabardas e tudo mais que era conhecido neste mundo em relação a armas.
Ela nascera em um dia chuvoso e triste, antes do tempo previsto e sua mãe não conseguiu esconder a decepção ao ver nos seus braços aquela criatura frágil, careca e fêmea.
Em toda a sua vida até agora, ela havia demonstrado total inaptidão as armas e a luta. Se não fosse pelo fato de ser filha do chefe e ter quebrado a linhagem de valorosos guerreiros homens, estaria tudo certo. Não foi por falta de tentativas e treinos duros, muitas vezes impiedosos, seu corpo simplesmente não respondia a luta. Sua atenção era atraída para as criaturas da floresta ao redor da vila, as plantas e ao riacho. Conseguia sentir de maneira inexplicável, o pulsar da vida em cada um dos microscópicos e grandes seres que neles habitavam. O louco da aldeia, um homem jovem ainda, mas de aparência desleixada e grotesca, dizia que ela nascera com o dom dos antigos druidas que era passado apenas para aqueles que tivessem coração forte e mente aguçada.
Secretamente então, ela foi a floresta. O louco lhe havia dito que o eremita Tharseus poderia lhe ensinar o caminho e caso ela não quisesse o próprio dom ela poderia trocá-lo pelo que lhe conviesse, como um desejo concedido por um djinn. Isso a deixou animada. Esperava com isso se tornar a guerreira que seus pais sempre sonharam, esperava conseguir reconhecimento e talvez o olhar e carinho daqueles que ela amava. Por isso se embrenhara na mata. Por isso estava com fome, sede, cansada. Cheia de arranhões e hematomas, aprofundava-se cada vez mais, na floresta úmida e escura, onde formas de vida de todos os tipos emergiam com intenções não amigáveis. Já a muito havia perdido a noção de tempo, porque as sombras cobriam tudo. Sua vontade de ser alguém a faziam prosseguir, mas seu corpo deixou de obedecer aos seus comandos e no delírio da febre entrou em um mundo de sonhos.
Foi aí que a sua real viagem começou. Seus olhos abriram-se para novas cores, seus ouvidos para novos sons, as suas narinas absorviam doces aromas das cascas das árvores e do mato crescente assim como o cheiro úmido dos insetos escondidos. O farfalhar dos pássaros se tornou mais alto e tudo a sua volta, a floresta inteira, parecia prestar atenção naquele ser estranho ao meio deles. Os passos da garota se tornaram tão leves que mal roçavam nas folhas caídas, parecia mesmo flutuar. Uma linha larga, brilhante e aquecida, misturada com diversas outras linhas mais finas, mas tão brilhante quanto, saía por entre árvores e plantas, e numerosos pontos luminosos em azul ou amarelo salpicavam em diversos tamanhos até onde a vista alcançava. Dela própria emanava uma forte luz de cor esverdeada e se misturava com a terra, junto com os pontos e as linhas. Tudo se cruzava e convergiam para o solo, tornando-se uma única faixa brilhante e calorosa que se embrenhara cada vez mais fundo na terra.
Ela seguia inconscientemente a faixa luminosa, como um inseto na luz, sem saber pra onde ela a guiava.
A faixa foi se tornando cada vez mais brilhosa e maior, por consequência mais quente, mas não era um quente agressivo e escaldante, era um quente gentil e acolhedor.
A garota se viu diante de um enorme totem, partes de animais fundidas e habilmente trabalhadas em uma árvore gigante. Toda a vida da floresta estava representada ali naquele tronco e o rosto dela estava lá, no topo, ainda inacabado, mas com certeza era ela. Abaixo do tronco havia um homem que não emitia nenhum brilho, sua aparência completamente selvagem, dentes pontudos, a pele com grandes cicatrizes, o cabelo com a aparência de meses sem lavar. A pele estava suja de lama e tinta vermelha e em suas mãos, formão e um pequeno martelo de aparência rústica. Parecia ameaçador a primeira vista, mas ele não a assustava. Do mesmo modo ele não parecia surpreso ao vê-la, e se aproximou. Ele farejou como um animal por entre os cabelos e o rosto dela. Torceu o nariz, obviamente o cheiro não era bom. Ele bateu na testa e ela ouviu a voz dele dentro da sua cabeça. Não era uma voz gutural ou ininteligível como um selvagem ou louco, era uma voz macia e melodiosa, agradável aos ouvidos. “Febre”, foi o que ele disse. “Queima a magia, desgasta a alma e o corpo.” Ele retirou um galho miúdo de uma árvore próxima e deu a ela dizendo para que mastigasse. O gosto não era tão ruim, com certeza era melhor que a comida de seus pais. Em poucos momentos as forças começaram a abandonar seu corpo, as cores cada vez mais brilhantes e indistintas. Tudo pareceu se aproximar rapidamente do seu rosto e a partir daí tudo que conseguia ver era o escuro da sua mente.
O que aconteceu dali por diante pareceu mais irreal do que a viajem anterior. Tudo acontecia em flashes desfocados. Lembrava-se vagamente da clareira por onde passaram, de animais rodeando o ermitão enquanto ele passava, pensou ter ouvido alguns deles falando, da sopa acolhedora e da cama aquecida de peles. Quando finalmente acordou, parecia que havia dormido por apenas algumas horas. O Ermitão estava sentado em um banco de madeira entalhada, lendo um pergaminho com aparência antiga e gasta.
_ Ah! - exclamou – Finalmente está acordada de vez! Seja como for as ervas fizeram mais efeitos que o desejado e o despertar foi mais intenso que o normal. Não vejo um despertar assim a mais de cento e cinquenta anos!
_ Me desculpa senhor, - a menina ainda parecia meio grogue- não entendi uma palavra sequer do que disse. O senhor por acaso me drogou? Despertar? O que está acontecendo?
Ela pensou em fugir, mas a curiosidade estava vencendo o seu corpo e ela não se move do lugar. Esperava as respostas, afinal era pra isso que entrara na floresta.
_Bom, senhorita, é o seguinte. Você é uma Druida do Legado. Seu sangue é repleto de magia e energia proveniente da floresta. Sua jornada até aqui libertou o seu Mana. Pode ser doloroso e sofrido para alguns, pode não acontecer com outros e pode falhar com a grande maioria. A metade morre, alguns ficam loucos e apenas uma pequena parcela obtém o poder primordial dos druidas.
_ Druidas? Então é isso? – Havia desapontamento na voz da criança. O que ela queria era força, habilidade para subjugar os seus inimigos e se tornar a grande guerreira e futura guardiã que seus pais e sua aldeia esperavam.
O Druida não reprimiu seu risinho ao perceber o desapontamento da garota.
_ Venha comigo, criança.
Ele saiu da cabana deixando a luz exterior entrar pela porta. O sol iluminava a casa na árvore por completo. Incrustada na árvore como se fizesse parte dela, a cabana não tinha uma forma correta, apenas seguia os traços da árvore que era de proporções gigantescas. Seriam necessárias dezessete pessoas, na conta do próprio druida, para abraçar seu tronco e sua copa, com galhos extensos e cobertos por folhas de um tom amarelado cor de ouro, sobressaía muito acima da árvore mais alta da floresta. O perfume que ela exalava era adocicado, suave e tranquilizante.
Ao chegar à borda a garota estremeceu com receio da altura. Movendo as mãos o druida criou uma detalhada escadaria com os galhos das árvores próximas e a medida que andava por entre as copas das árvores outros galhos vinham criando novos degraus. A menina não conteve seu assombro, dali de cima podia ver o horizonte e muito além, o Mar de Trhassos e suas águas brilhantes. De algum modo ela conseguia sentir o pulsar da vida de cada criatura que vivia na floresta e ao toque de cada galho, cada folha, sentia um formigamento, uma leve corrente elétrica que corria gentilmente por todo seu corpo. Sem perceber estava sorrindo de braços abertos, sentindo o vento, os cheiros, ouvindo o canto dos pássaros e os ruídos dos diversos animais que andavam, corriam ou se esgueiravam pela floresta.
Percorreram toda a Floresta de Lewendig, sua visão parecia mais aguçada e sua audição mais limpa. Foi instintivo, não trocaria isso por nenhum outro dom.
O Druida Tharseus sorria, afinal não precisou de mais nada para convencê-la. Até pensou que precisaria de um sermão, uma história sobre a dádiva druídica, mas não, não foi necessário.
A garota teve um momento de dúvida. O que faria com relação a sua família? Eles não aceitariam um druida, uma dotada de magia. Provavelmente ia ser banida da aldeia.
_ Dane- se isso tudo, - gritou ela - posso ser muito mais do que eles imaginam, posso fazer mais do que eles imaginam. Mostraria para seus pais que poderia proteger não somente suas terras, mas a floresta inteira. Já havia se decidido.
_ Tharseus, - disse ela após alguns instantes- por um momento não consegui me lembrar de quem eu era. Mas agora já sei. Não terei mais dúvidas. Enfrentarei meu destino.
_ E quem é você, criança?
_ Eu sou Unnati, o presente do Crescimento, uma Druida do Legado.
O Ermitão sorria, seus dentes pontudos e reluzentes.
-Pois prepare- se, seu treinamento começa agora e não temos muito tempo.
As Sabuja Jami, ou Terras Verdes, no idioma comum, não eram lugares fáceis de se viver. Era uma boa terra, fértil e como o nome mesmo diz, repleta de verde. Nas serras que abundam pela região, um musgo grosso e alto, de um verde vivo, cresce no lugar do capim, os camponeses o consideram uma praga porque mata o pasto e até mesmo arbustos menores. Suas raízes rasteiras, dominam as plantas que crescem a sua volta, sugando os nutrientes até matá-las. A maioria dos velhos diz que o nome da terra vem dessa planta que é capaz de sobreviver ao mais rigoroso inverno e ao estouro de uma manada de Rochosos. Aldeias, vilas e cidadelas tentavam sobreviver e ganhar espaço por entre florestas de palmeiras e samambaias de tamanhos colossais. As matas gritavam o tempo todo com suas criaturas de diversos tamanhos e formas, terrestres, voadoras ou aquáticas. Lugares que revelavam os antigos habitantes eram proibidos, exceto é claro para os aventurei
Theraquiel não se importava com a sola gasta dos seus sapatos e da dor que estavam em causando-lhe. Caminhou durante o dia e parte da noite, sem perder um minuto sequer. Atravessar as Sabuja Jani era relativamente simples desde que você não se perdesse em alguma mata, caverna ou templo abandonado ou fosse devorado por alguma criatura, sequestrado por bandidos ou algum mago estudioso louco. Não conseguia entender como tudo naquele lugar cheirava a conspiração e violência. Talvez fosse só o modo como foi criado e doutrinado, mas não conseguia confiar em nada nem ninguém. Quando conseguiu divisar os paredões do desfiladeiro, redobrou os seus cuidados. Aquela região era temida até mesmo pelos soldados do rei e estava literalmente abandonada à própria sorte, desde quando os magos renegados buscaram refugio e fizeram daquela região o seu co
Na Serra próxima da aldeia incendiada, Lochiel, o transmorfo, fechava da melhor maneira que podia a ferida no braço de Alice. Estava cansado e sem energia para realizar magia. Parecia que o perigo já havia passado, mas estava atento a qualquer movimento. Seus sentidos lupinos estavam em alerta máximo. Acendeu uma pequena fogueira para aquece-los quando a noite começou a cair, não tinham nada para comer e sua barriga roncava. Alice ainda dormia, sua vida não corria risco, mas a exaustão da batalha e o uso excessivo de magia chegara ao limite. Estava quase dormindo também, mas um farfalhar nas moitas próximas o despertou completamente. Uma criatura minúscula espreitava por entre a folhagem. Ao vê-la, Lochiel não pode deixar de sentir um certo alívio. _ Pelas raízes da Árvore Mãe! Athala, seu demoniozinho feio e sujo! - exclamou, com um misto de alegria e raiva.
Há milênios os druidas antigos receberam um conhecimento amplo e único de toda a natureza daquelas regiões. Todos eles partiam em uma jornada para conhecer cada aspecto dessa natureza, no deserto, nas florestas quentes e úmidas, nos pântanos e até nas montanhas congeladas. Era necessário entender toda a cadeia de vida de cada lugar para entender o fluxo universal, a cadeia de energia que convergia para o centro do mundo. Era comum entre os druidas chamarem aquela continente até onde as águas do mar sumiam pelo horizonte de Imati Midiri, Terras da Mãe. Claro que cada região tinha seu nome especial e era regido por uma entidade criada pela própria natureza para ser sua guardiã. Druidas eram respeitados em qualquer tribo, em qualquer aldeia que passassem. Não eram vistos como deuses, mas sim como grandes sábios que podiam curar doenças, ajudar a melhorar o cultivo e o gado e ensinar os jovens o respeito pela terra. No começo de cada inverno, eles se reuniam na Arvore Real, a ma
Lochiel e Alice entraram em uma Alderim em polvorosa. Athala preferiu ficar do lado de fora, criaturas como ele não era muito bem vindo, costumavam causar medo ou até mesmo repulsa em alguns, fora que também, segundo ele, poderia não resistir ao impulso de “pegar emprestada” alguma coisa que não fosse dele. A confusão na “Taberna do Javali Dentado” assumiu proporções assombrosas quando a luta chegou às ruas. A luta só acabou quando os guardas chegaram. As Sentinelas do Rei eram soldados temidos até mesmo pelo mais valente mercenário, era a elite dos guerreiros do Reinado, escolhidos a dedo e treinados com rigor pelos mais experientes. Usavam armaduras completas feitas de um metal raro e caríssimo, portavam claymores, espadas grandes e pesadas, feitas do mesmo metal e carregadas de magia que lhes conferia um brilho acinzentado. Não era possível ver o rosto dos soldados por entre a viseira dos elmos, o que gerava lendas a respeito. Alguns diziam que os soldados eram submetidos
Benialli acordava em lapsos febris. Durante esse tempo podia sentir que tentavam lhe tirar o sabre das mãos, mas ele o agarrava firme. Ele via os rostos já conhecidos de vários guerreiros da guarda que vinham lhe visitar, alguns levando frutas e água fresca. O garoto estava além do cansaço normal de uma pessoa. Com a pele esfolada e diversos hematomas, seu corpo inteiro doía, sem contar com as queimaduras que não eram tão serias, mas doíam da mesma forma. Conseguiu acordar de verdade muito tempo depois, desejando do fundo da alma que tudo que acontecera tivesse sido um sonho. Ao se levantar custosamente da cama devido a uma dor intensa nas costelas, sentiu o toque afiado e frio da lâmina que surgira quando o Efrite foi derrotado pelo sacrifício de seu pai, ainda segurava a arma como se ela lhe desse algum tipo de esperança, como se ela fosse a resposta para algo que ainda nem imaginava. Do lado dele o velho Barbello também acordou, limpando a barba da saliva q
Theraquiel acordou assustado como um coelho acossado. Ouviu o crepitar da fogueira e os ruídos dos sapos e grilos a beira do rio. Ainda sentia o frio que o invadira quando aquela criatura, popularmente conhecida como Ladrão de Mana, começara a sugar sua energia, lembrou-se bem da fraqueza que quase o dominara e a sensação de desespero e impotência causados. Lembrou- se vagamente de quando pulou do penhasco para os braços do rio e da garotinha que, agarrada a ele, pulara junto. Olhando para o lado a viu dormindo calmamente, aconchegada pelo calor agradável e acolhedor da fogueira. A sua frente Umnati o observava curiosa. Theraquiel sustentou o olhar._ Estou muito curiosa em saber o que você fazia no Desfiladeiro do Canto. – disse por fim, a druida depois de alguns minutos de silencio encarando o garoto. – Ou és louco de pedra ou é somente mais um tolo. Todo mundo sabe que ali não &ea
Lochiel conhecia Ilumien através das narrativas do seu mentor e também por livros que havia lido durante seus estudos. Era a cidade do comercio, onde todas as vias principais, construídas desde a chegada dos primeiros Longinquos convergiam. A maioria dessas estradas eram pavimentadas e bem estruturadas, com postos de guarda e Sentinelas em pontos estratégicos. Eles chegaram a cidade seguindo por uma boa parte dessas vias. Mas tudo que ele lera nos livros ainda não serviria para descrever a grandeza e o brilho da cidade. Já de longe era possível ver a dourada Torre Magistral com seu farol para guiar os navegantes, antigo lar dos magos estudiosos, os primeiros magos como também eram chamados, os mesmos que foram corrompidos pela magia profana de absorção de vida e energia das formas vivas. Agora a torre servia como centro de estudo e pesquisa de estudiosos, não somente relacionada a magia, mas a todo conhecimento acumulado disponível. Isso envolvia desde teatro e filos