Theraquiel não se importava com a sola gasta dos seus sapatos e da dor que estavam em causando-lhe. Caminhou durante o dia e parte da noite, sem perder um minuto sequer.
Atravessar as Sabuja Jani era relativamente simples desde que você não se perdesse em alguma mata, caverna ou templo abandonado ou fosse devorado por alguma criatura, sequestrado por bandidos ou algum mago estudioso louco. Não conseguia entender como tudo naquele lugar cheirava a conspiração e violência. Talvez fosse só o modo como foi criado e doutrinado, mas não conseguia confiar em nada nem ninguém.
Quando conseguiu divisar os paredões do desfiladeiro, redobrou os seus cuidados. Aquela região era temida até mesmo pelos soldados do rei e estava literalmente abandonada à própria sorte, desde quando os magos renegados buscaram refugio e fizeram daquela região o seu covil. Desde então foi criada uma nova rota, muito mais longa, para dar acesso aos caravaneiros e comerciantes a cidade de Ilumien, que era a cidade mais rica e próspera do Reinado.
_ Não posso pegar essa rota alternativa, - disse o garoto para si mesmo- seria muito demorado, meu pai não tem tanto tempo, tenho que ser mais rápido. Ele suspirou profundamente. Agora eu sinto falta dos treinamentos físicos que aquele velho me obrigava a fazer e eu sempre burlava. "O melhor jeito de dominar a morte é ter um corpo forte e uma mente limpa".
Droga de palavras. Assumi a responsabilidade de achar uma cura para esse velho metido para não ser consumido pela culpa.
Theraquiel praguejou em voz alta. Conseguir as habilidades que ele tinha agora teve seu preço, os espíritos de morte exigiram a sua vitalidade. Quase a beira da morte por não ter um corpo suficientemente forte, seu pai burlou o trato e ofereceu a si para que o filho vivesse. Agora ele estava decrépito em uma cama, mal conseguindo falar e reconhecer o filho.
Consumido pela culpa, o garoto partiu em busca de algo que pudesse reverter a maldição do pai. Encontrou um livro da velha escola arcana, que mostrava detalhadamente o uso de magia da vitae e os benefícios de uma jóia chamada Cristal da Graça, que poderia absorver qualquer tipo de magia, anulando seus efeitos e acumulando a mana dentro de si. O livro dizia que o cristal se perdera, quando um mago, percebendo o quanto o uso do cristal poderia ser catastrófico em mãos erradas, resolveu destruí-la. O resultado foi uma guerra que resultou na morte de muitos guardas e pessoas comuns pegas no fogo cruzado da batalha. O cristal não foi mais visto desde então. O mago e sua família foram condenados a fogueira, amigos e parentes foram caçados e mortos durante vários anos e até hoje o nome Néagi é mal visto por todo o Reinado. O último lugar onde o cristal tinha sido visto era a cidade de Illumien. Se conseguisse pegar o cristal, poderia curar o seu pai e seria ainda mais poderoso.
A noite caía quando o garoto alcançou o desfiladeiro. Estava com os sentidos em alerta para qualquer aproximação. Não havia vegetação naquela parte, mas pedras de todos os tamanhos estavam espalhadas por toda a entrada da ravina. Os primeiros metros não eram tão altos, mas a medida que avançava e o sol ia se escondendo, a escuridão se tornava mais intensa, dificultando a visão. Theraquiel acendeu a sua tocha a contragosto porque sabia que ela seria um chamariz para qualquer predador por ali.
A essa altura, no escuro, já não era mais possível ver o topo dos paredões e olhando para trás Theraquiel não via mais a entrada do desfiladeiro. Era impossível escalar aquelas paredes rochosas e o retorno estava fora de questão. Em uma curva fechada da ravina, onde o cheiro da morte se tornara intenso e quase insuportável, o garoto viu o primeiro cadáver, estirado sobre uma pedra larga. O corpo estava ressecado e acinzentado. Theraquiel o analisou com cuidado. Parecia já ter morrido a dias, a órbita dos olhos completamente vazia ainda sendo possível perceber o desespero daquele homem antes de morrer. Seguiu por mais alguns metros e as pilhas de cadáveres foram se tornando maiores, o cheiro podre era quase insuportável. Dava pra sentir a presença da morte pairando sobre aquela área.
Theraquiel seguiu corajosamente, sentindo por entre as aberturas das cavernas, pequenos e grandes olhos brilhantes que o fitavam analisando sua vitae, sua mana. A crueldade, o vício e a sordidez daqueles olhares faziam o garoto estremecer. O medo começou a aumentar quando percebeu que as criaturas já o haviam cercado e se aproximavam vagarosamente. Ele havia usado o mesmo feitiço de anular a presença logo na entrada do desfiladeiro, mas ali na metade do caminho descobriu, tarde demais, que a sua magia não fazia mais efeito.
Seu medo foi se tornando pânico quando a primeira criatura se mostrou sob a luz da tocha. Seu rosto era alongado e avermelhado, os olhos quase saltados das orbitas, eram de um negrume profundo, pupila e globo ocular pareciam um só. A boca fina e rasgada ocupava um espaço irreal no rosto descarnado dando a sinistra impressão de que poderia se abrir como a de uma serpente. A criatura tinha traços humanos deformados com braços anormalmente alongados e coluna curvada, a espinha dorsal bem saltada nas costas. A criatura usava trapos sujos e rasgados que mal tampavam suas partes intimas, deixando claro que aquele era um espécime macho. Erupções na pele fina e avermelhada deixavam cair um pus grosso e pegajoso pelo chão.
Logo apareceram sob a luz. Suas formas variantes, algumas eram maiores, outras mais baixas. Outros tinham a pele avermelhada, alguns tinham a pele cinzenta, deixando visíveis as veias negras e saltadas. A característica mais comum eram as erupções por todo o corpo.
_ Então esse é o resultado de anos sugando a energia mágica de pessoas e outros seres vivos. E agora parece que eu sou o alvo. - Theraquiel disse em voz alta. Seu plano de esconder sua presença falhara completamente, não esperava que o próprio lugar anulasse sua magia. E como também não sentira nenhuma presença mágica no local, só se deu conta da quantidade de inimigos quando já estavam próximos demais.
Dava pra ver nos olhares daquelas criaturas a fome e o vicio. Se elas o pegassem não demoraria muito para se tornar o jantar. O cerco foi se fechando. Algumas criaturas mais ousadas correram na direção do garoto, suas garras afiadas e sujas. Theraquiel respondeu com um relâmpago. Seus olhos se arregalaram ao ver que a criatura ignorou sua magia. Parecia que ela simplesmente a absorveu e notoriamente se tornou maior. Ela o agarrou pelo pescoço como se ele fosse um amarrado de gravetos e o ergueu no ar. Um brilho tênue e avermelhado começou a se desprender do seu corpo como uma linha penetrando diretamente no corpo da criatura. Theraquiel deixou a tocha cair, uma fraqueza incontrolável tomando conta do seu corpo. Os seus olhos estavam ficando pesados e faltavam-lhe forças, não conseguia esboçar a menor reação.
Subestimou os Ladrões de Magia, estava se achando muito poderoso desde o seu pacto com as sombras. A verdade que ele duramente via agora é que era apenas uma criança problemática. Seu pai estava com problemas por sua causa, na sua tentativa de salvá-lo iria morrer sem nem chegar perto do seu objetivo.
Não havia caminhos fáceis.
Sempre iria sofrer por sua própria preguiça e prepotência.
Mas ali, com aquela criatura sinistra que já foi um humano como ele, ganancioso, mas com preguiça demais de correr atrás de seus objetivos, sempre procurando métodos fáceis de alcançá-los, tudo iria acabar. De modo tosco e doloroso, mas iria acabar.
Uma pancada surda jogou seu captor no chão. Outro daqueles seres aparentemente não queria deixar o banquete somente para um. Com um grito rouco as outras criaturas tentaram alcançar o garoto, mas obviamente existia ali um sério problema de compartilhamento. Em questão de segundos elas começaram a brigar entre si. Elas eram estupidamente fortes fisicamente apesar do seu estado decrépito e bastante ágeis por sinal. No meio da confusão que se formara, Theraquiel tentou escapar sorrateiramente, rastejando por entre as pernas dos monstros. A poeira começou a subir, o que facilitava sua fuga. Estava fraco demais para correr e cada movimento era um esforço gigantesco.
Conseguiu ouvir o ruído das águas correntes do rio Sabaoji bem perto. Quando já sentia a brisa fresca do rio e a abertura larga no fim do desfiladeiro, sentiu uma garra fria segurando sua perna. Uma das criaturas, pequena e raquítica, tentava segurá-lo, mas ao contrário das outras, não estava absorvendo sua energia. Theraquiel quis chutá-la mas faltava forças. Ela era menos deformada que os demais e tinha a aparência um pouco mais humana, claramente era uma criança. Seus lábios se moveram em silencio.
_ Ajuda! – foi o que o garoto ouviu em sua mente.
Sentiu piedade, não poderia deixar ela no meio daquele covil, se houvesse alguma forma de ajudar, ele ajudaria. Pra compensar seus erros, pra se redimir.
Ouviu um terrível rugido, rouco, seco, cheio de desespero e raiva, quando se jogou no rio.
A criança se agarrou a ele como um macaco a um tronco e juntos afundaram correnteza abaixo.
Na Serra próxima da aldeia incendiada, Lochiel, o transmorfo, fechava da melhor maneira que podia a ferida no braço de Alice. Estava cansado e sem energia para realizar magia. Parecia que o perigo já havia passado, mas estava atento a qualquer movimento. Seus sentidos lupinos estavam em alerta máximo. Acendeu uma pequena fogueira para aquece-los quando a noite começou a cair, não tinham nada para comer e sua barriga roncava. Alice ainda dormia, sua vida não corria risco, mas a exaustão da batalha e o uso excessivo de magia chegara ao limite. Estava quase dormindo também, mas um farfalhar nas moitas próximas o despertou completamente. Uma criatura minúscula espreitava por entre a folhagem. Ao vê-la, Lochiel não pode deixar de sentir um certo alívio. _ Pelas raízes da Árvore Mãe! Athala, seu demoniozinho feio e sujo! - exclamou, com um misto de alegria e raiva.
Há milênios os druidas antigos receberam um conhecimento amplo e único de toda a natureza daquelas regiões. Todos eles partiam em uma jornada para conhecer cada aspecto dessa natureza, no deserto, nas florestas quentes e úmidas, nos pântanos e até nas montanhas congeladas. Era necessário entender toda a cadeia de vida de cada lugar para entender o fluxo universal, a cadeia de energia que convergia para o centro do mundo. Era comum entre os druidas chamarem aquela continente até onde as águas do mar sumiam pelo horizonte de Imati Midiri, Terras da Mãe. Claro que cada região tinha seu nome especial e era regido por uma entidade criada pela própria natureza para ser sua guardiã. Druidas eram respeitados em qualquer tribo, em qualquer aldeia que passassem. Não eram vistos como deuses, mas sim como grandes sábios que podiam curar doenças, ajudar a melhorar o cultivo e o gado e ensinar os jovens o respeito pela terra. No começo de cada inverno, eles se reuniam na Arvore Real, a ma
Lochiel e Alice entraram em uma Alderim em polvorosa. Athala preferiu ficar do lado de fora, criaturas como ele não era muito bem vindo, costumavam causar medo ou até mesmo repulsa em alguns, fora que também, segundo ele, poderia não resistir ao impulso de “pegar emprestada” alguma coisa que não fosse dele. A confusão na “Taberna do Javali Dentado” assumiu proporções assombrosas quando a luta chegou às ruas. A luta só acabou quando os guardas chegaram. As Sentinelas do Rei eram soldados temidos até mesmo pelo mais valente mercenário, era a elite dos guerreiros do Reinado, escolhidos a dedo e treinados com rigor pelos mais experientes. Usavam armaduras completas feitas de um metal raro e caríssimo, portavam claymores, espadas grandes e pesadas, feitas do mesmo metal e carregadas de magia que lhes conferia um brilho acinzentado. Não era possível ver o rosto dos soldados por entre a viseira dos elmos, o que gerava lendas a respeito. Alguns diziam que os soldados eram submetidos
Benialli acordava em lapsos febris. Durante esse tempo podia sentir que tentavam lhe tirar o sabre das mãos, mas ele o agarrava firme. Ele via os rostos já conhecidos de vários guerreiros da guarda que vinham lhe visitar, alguns levando frutas e água fresca. O garoto estava além do cansaço normal de uma pessoa. Com a pele esfolada e diversos hematomas, seu corpo inteiro doía, sem contar com as queimaduras que não eram tão serias, mas doíam da mesma forma. Conseguiu acordar de verdade muito tempo depois, desejando do fundo da alma que tudo que acontecera tivesse sido um sonho. Ao se levantar custosamente da cama devido a uma dor intensa nas costelas, sentiu o toque afiado e frio da lâmina que surgira quando o Efrite foi derrotado pelo sacrifício de seu pai, ainda segurava a arma como se ela lhe desse algum tipo de esperança, como se ela fosse a resposta para algo que ainda nem imaginava. Do lado dele o velho Barbello também acordou, limpando a barba da saliva q
Theraquiel acordou assustado como um coelho acossado. Ouviu o crepitar da fogueira e os ruídos dos sapos e grilos a beira do rio. Ainda sentia o frio que o invadira quando aquela criatura, popularmente conhecida como Ladrão de Mana, começara a sugar sua energia, lembrou-se bem da fraqueza que quase o dominara e a sensação de desespero e impotência causados. Lembrou- se vagamente de quando pulou do penhasco para os braços do rio e da garotinha que, agarrada a ele, pulara junto. Olhando para o lado a viu dormindo calmamente, aconchegada pelo calor agradável e acolhedor da fogueira. A sua frente Umnati o observava curiosa. Theraquiel sustentou o olhar._ Estou muito curiosa em saber o que você fazia no Desfiladeiro do Canto. – disse por fim, a druida depois de alguns minutos de silencio encarando o garoto. – Ou és louco de pedra ou é somente mais um tolo. Todo mundo sabe que ali não &ea
Lochiel conhecia Ilumien através das narrativas do seu mentor e também por livros que havia lido durante seus estudos. Era a cidade do comercio, onde todas as vias principais, construídas desde a chegada dos primeiros Longinquos convergiam. A maioria dessas estradas eram pavimentadas e bem estruturadas, com postos de guarda e Sentinelas em pontos estratégicos. Eles chegaram a cidade seguindo por uma boa parte dessas vias. Mas tudo que ele lera nos livros ainda não serviria para descrever a grandeza e o brilho da cidade. Já de longe era possível ver a dourada Torre Magistral com seu farol para guiar os navegantes, antigo lar dos magos estudiosos, os primeiros magos como também eram chamados, os mesmos que foram corrompidos pela magia profana de absorção de vida e energia das formas vivas. Agora a torre servia como centro de estudo e pesquisa de estudiosos, não somente relacionada a magia, mas a todo conhecimento acumulado disponível. Isso envolvia desde teatro e filos
Ben tal-Murah e Umnati subiam as ruas bem pavimentadas de Ilumien no rastro do elfo, que andava a passos rápidos e precisos. Ele se desviava com graça dos transeuntes que, após a explosão no porto, desciam em polvorosa para ver o que estava acontecendo abaixo do monte. Passando as ruas principais o caminho para a torre estava livre, não havia passantes, não havia sentinelas. Se é que fosse possível o elfo acelerou ainda mais o passo. Os dois garotos foram obrigados a correr, largando qualquer disfarce e cautela. _ Temos que interceptá-lo antes que chegue a torre. Ele vai liberar um djinn, se isso acontecer estaremos em maus lencóis. _ Está certo, senhor lutador, - respondeu a druida – vamos interromper a corrida dele então, para que se esconder? – respondeu Umnati. Logo em seguida ela gritou a plenos pulmões – Ei, senhor Elfo! Pare de andar desse jeito! O elfo parou,virando- se para os dois olhando sem se surpreender. _ Já estava me perguntando até on
Assim que saíram da taverna com o plano traçado por Alice e o grupo devidamente dividido, a explosão no porto, abaixo da colina, atraiu a atenção de todos, inclusive das Sentinelas. Todo mundo presente na parte baixa da cidade abandonou os seus afazeres e negócios em andamento para observar dos muros o que estava acontecendo. Os mercenários pareciam aguardar esse sinal e se misturaram na multidão, que emergia de todos os lados. Ate mesmo os moradores das partes altas desceram para os muros, empurrando e brigando por uma vaga para assistir o que acontecia lá em baixoAlice precisou de toda sua concentração para não perder os mercenários de vista. O que facilitava um pouco era o fato de que o bárbaro se destacava na multidão pela sua altura. Segundo ela até poderia ser descendente de gigante.Os mercenários atravessaram facilmente a multidão rumo