A Saga dos Primogênitos, Sangue e Honra
A Saga dos Primogênitos, Sangue e Honra
Por: MARCUS SOUSA
O Fantasma

Theraquiel aproximou-se do balcão sujo, que pingava restos de bebida e outros líquidos de aparência grotesca e pegajosa, correu os olhos ao redor, observando o lugar, que conseguia ser mais feio e fedorento do que disseram.

Nas paredes corria a mesma gordura do balcão e as cabeças decorativas penduradas nelas tinham a aparência putrefata de uma taxidermia mal executada. O lugar estava cheio de homens, meio orcs, gnomos, elfos e diversas outras espécies de criaturas que habitavam ou vieram fazer fortuna no continente. Não foi difícil encaixar-se no meio deles, pois era franzino e pálido, passava despercebido como um fantasma na escuridão. O taverneiro, homem gordo, pele visivelmente gordurosa e brilhante, calvo e com pequeninos e astutos olhinhos de suíno, veio lhe atender, saltitando e prevendo as brilhantes moedinhas de ouro que colocaria no seus bolsos e talvez até uma leve surrupiada, afinal de contas não era sempre que brotava na sua taverna vítimas fáceis como aquele rapazote aparentava ser. O garoto sabia disso e seus sentidos estavam alertas, não somente pelo alto nível de roubo existente naquela taberna, como também para se manter discreto e não atrair olhares e perguntas indesejadas. Estava preparado para qualquer coisa.

_ O que quer, garoto? - disse o gordo taverneiro com uma voz fanhosa, um misto de trapaça e nariz entupido. - Quer um copo de leite? - completou em voz alta num tom de chacota.

Diante disso todos na taberna que observavam a cena dispararam a rir e gargalhar, batendo suas canecas nas mesas. Até mesmo os bardos que tocavam ao fundo pararam por alguns instantes, finalizando abruptamente sua canção com um tabum- dun do tambor. Seria mesmo uma cena engraçada, se os ladrões não aproveitassem o ensejo para se achegarem do garoto, prontos para dar o bote a menor desatenção da vítima.

_ Quero apenas uma informação, seu velho fedido e escroto. - Theraquiel falou secamente com sua voz fria e cortante como a navalha ártica. Até mesmo o taverneiro se surpreendeu, rapidamente percebendo que a sua frente estava um monstro terrível e assassino. - Diga-me agora, onde fica a cidade Ilumien dos comerciantes de safira. - O tom era de comando e o gordo respondeu imediatamente, já desejando que aquele demônio fosse embora rapidamente.

_Siga para leste até o Desfiladeiro do Canto, atravesse a Ponte dos Gnolls. A cidade fica a uma hora de jornada dali, mais ou menos, isso se estiver vivo até lá. No desfiladeiro abundam os Ladroes de Magia e sem falar dos Gnolls na ponte.

Theraquiel pensou nos Ladrões de Magia. Esses seriam um problema e tanto, mas com os gnolls era mais fácil de lidar.

Foi apenas alguns segundos de distração enquanto pensava em sua rota e o garoto sentiu a aproximação de uma mão no seu bolso. Agarrou-a por puro reflexo e olhou nos olhos do seu dono. O ladrão ficou assustado, afinal, diante de tanto barulho e movimento, como aquele garoto tinha conseguido notá-lo? Não teve muito tempo para pensar. Uma garrafa de hidromel voou da prateleira da taberna e foi de encontro ao seu rosto com uma velocidade impressionante. O ladrão caiu com a testa rachada brotando sangue e isso se tornou o fogo no pavio de uma confusão generalizada.

Os bardos aceleraram a música e continuaram tocando como se nada estivesse acontecendo. O taberneiro corria desesperado de um lado pra outro, gritando esbaforido, tentando ao mesmo tempo salvar as suas e roubar algumas moedas de ouro dos mais distraídos e até mesmo dos que caíam ao chão.

- Parem, parem, por favor! - gritava com sua vozinha esganiçada, totalmente sem sucesso. Não ia ser ouvido nem se usasse uma magia sonora.

Cadeiras pesadas de pinheiro voavam pela taberna arremessadas pelos poderosos meio orcs, cavaleiros espancavam algumas criaturas disformes a um canto, bárbaros dos Montes Alvos arremessavam mesas e pessoas como se fossem brinquedos. Canecas, pratos, enfeites de parede, tudo era arma e a quebradeira parecia não ter fim. Theraquiel saiu da taberna tranquilamente, sem ser atingido por uma migalha sequer. Era como se ele não existisse. Do lado de fora o som alegre dos bardos conseguia abafar um pouco a quebradeira e tudo parecia normal, até alguém ser arremessado porta afora. O sino alarme da cidade foi acionado e quando as Sentinelas Do Rei apareceram, Theraquiel já estava longe.

O garoto havia saído calmamente da taberna sem ser notado. Esse era uma espécie de dom que adquiriu depois do pacto. Andava em meio as multidões como um fantasma. Não ligava muito pra isso mesmo, gostava quando não era visto, preferia assim. Se considerava feio demais para se mostrar.

Considerou suas opções. Enfrentar os Ladroes de Magia poderia ser problemático, mas apostava tudo na sua habilidade de passar despercebido. Com os gnolls poderia pensar em algo que envolvesse bastante comida, poderia criar uma ilusão necromântica para enganá-los até que estivesse longe. Eles eram burros demais para diferenciar uma boa comida. 

Na entrada da cidade deparou-se com dois jovens de aparência peculiar. Não pode deixar de notar o quanto a garota era bonita, de aparência séria, um tanto mal vestida, mas a sua pele era de um moreno acobreado como o de uma estátua criada pelo mais renomado artista.  Preferiu passar ao largo, mesmo com sua habilidade ele notou que os dois olhavam para ele. Um garoto com cabelo de fogo, fogo de verdade e um bastão pendurado nas costas! Os dois aparentavam bastante cansaço. Mas o que era mais peculiar era a criatura grotesca aninhada nos ombros do garoto, uma mistura de lagarto com garras longas. E o pior, a criatura falava!

_ É cada uma, eu me achando esquisito e feio, – pensou Theraquiel – aí eu topo com uma tocha ambulante com um lagarto estranho pendurado no ombro.

Os olhares se cruzaram por um instante, Theraquiel sentiu uma energia estranha vida do outro garoto, algo contido, controlado, algo que talvez o próprio portador nem soubesse que estava ali. Algo dizia que devia ir até eles e conversar, tentar uma aproximação, talvez até ser amigos, mas, sua missão exigia que ele corresse sem pausas. Por isso ele queria o caminho mais curto, mais perigoso, mas sem dúvida o mais curto.

Enquanto os dois garotos e a criaturinha entravam na cidade, com todo o barulho dos sinos de alarme e a movimentação das Sentinelas, Theraquiel apertou o passo rumo ao leste, para o tão mal falado Desfiladeiro do Canto.

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