Theraquiel aproximou-se do balcão sujo, que pingava restos de bebida e outros líquidos de aparência grotesca e pegajosa, correu os olhos ao redor, observando o lugar, que conseguia ser mais feio e fedorento do que disseram.
Nas paredes corria a mesma gordura do balcão e as cabeças decorativas penduradas nelas tinham a aparência putrefata de uma taxidermia mal executada. O lugar estava cheio de homens, meio orcs, gnomos, elfos e diversas outras espécies de criaturas que habitavam ou vieram fazer fortuna no continente. Não foi difícil encaixar-se no meio deles, pois era franzino e pálido, passava despercebido como um fantasma na escuridão. O taverneiro, homem gordo, pele visivelmente gordurosa e brilhante, calvo e com pequeninos e astutos olhinhos de suíno, veio lhe atender, saltitando e prevendo as brilhantes moedinhas de ouro que colocaria no seus bolsos e talvez até uma leve surrupiada, afinal de contas não era sempre que brotava na sua taverna vítimas fáceis como aquele rapazote aparentava ser. O garoto sabia disso e seus sentidos estavam alertas, não somente pelo alto nível de roubo existente naquela taberna, como também para se manter discreto e não atrair olhares e perguntas indesejadas. Estava preparado para qualquer coisa.
_ O que quer, garoto? - disse o gordo taverneiro com uma voz fanhosa, um misto de trapaça e nariz entupido. - Quer um copo de leite? - completou em voz alta num tom de chacota.
Diante disso todos na taberna que observavam a cena dispararam a rir e gargalhar, batendo suas canecas nas mesas. Até mesmo os bardos que tocavam ao fundo pararam por alguns instantes, finalizando abruptamente sua canção com um tabum- dun do tambor. Seria mesmo uma cena engraçada, se os ladrões não aproveitassem o ensejo para se achegarem do garoto, prontos para dar o bote a menor desatenção da vítima.
_ Quero apenas uma informação, seu velho fedido e escroto. - Theraquiel falou secamente com sua voz fria e cortante como a navalha ártica. Até mesmo o taverneiro se surpreendeu, rapidamente percebendo que a sua frente estava um monstro terrível e assassino. - Diga-me agora, onde fica a cidade Ilumien dos comerciantes de safira. - O tom era de comando e o gordo respondeu imediatamente, já desejando que aquele demônio fosse embora rapidamente.
_Siga para leste até o Desfiladeiro do Canto, atravesse a Ponte dos Gnolls. A cidade fica a uma hora de jornada dali, mais ou menos, isso se estiver vivo até lá. No desfiladeiro abundam os Ladroes de Magia e sem falar dos Gnolls na ponte.
Theraquiel pensou nos Ladrões de Magia. Esses seriam um problema e tanto, mas com os gnolls era mais fácil de lidar.
Foi apenas alguns segundos de distração enquanto pensava em sua rota e o garoto sentiu a aproximação de uma mão no seu bolso. Agarrou-a por puro reflexo e olhou nos olhos do seu dono. O ladrão ficou assustado, afinal, diante de tanto barulho e movimento, como aquele garoto tinha conseguido notá-lo? Não teve muito tempo para pensar. Uma garrafa de hidromel voou da prateleira da taberna e foi de encontro ao seu rosto com uma velocidade impressionante. O ladrão caiu com a testa rachada brotando sangue e isso se tornou o fogo no pavio de uma confusão generalizada.
Os bardos aceleraram a música e continuaram tocando como se nada estivesse acontecendo. O taberneiro corria desesperado de um lado pra outro, gritando esbaforido, tentando ao mesmo tempo salvar as suas e roubar algumas moedas de ouro dos mais distraídos e até mesmo dos que caíam ao chão.
- Parem, parem, por favor! - gritava com sua vozinha esganiçada, totalmente sem sucesso. Não ia ser ouvido nem se usasse uma magia sonora.
Cadeiras pesadas de pinheiro voavam pela taberna arremessadas pelos poderosos meio orcs, cavaleiros espancavam algumas criaturas disformes a um canto, bárbaros dos Montes Alvos arremessavam mesas e pessoas como se fossem brinquedos. Canecas, pratos, enfeites de parede, tudo era arma e a quebradeira parecia não ter fim. Theraquiel saiu da taberna tranquilamente, sem ser atingido por uma migalha sequer. Era como se ele não existisse. Do lado de fora o som alegre dos bardos conseguia abafar um pouco a quebradeira e tudo parecia normal, até alguém ser arremessado porta afora. O sino alarme da cidade foi acionado e quando as Sentinelas Do Rei apareceram, Theraquiel já estava longe.
O garoto havia saído calmamente da taberna sem ser notado. Esse era uma espécie de dom que adquiriu depois do pacto. Andava em meio as multidões como um fantasma. Não ligava muito pra isso mesmo, gostava quando não era visto, preferia assim. Se considerava feio demais para se mostrar.
Considerou suas opções. Enfrentar os Ladroes de Magia poderia ser problemático, mas apostava tudo na sua habilidade de passar despercebido. Com os gnolls poderia pensar em algo que envolvesse bastante comida, poderia criar uma ilusão necromântica para enganá-los até que estivesse longe. Eles eram burros demais para diferenciar uma boa comida.
Na entrada da cidade deparou-se com dois jovens de aparência peculiar. Não pode deixar de notar o quanto a garota era bonita, de aparência séria, um tanto mal vestida, mas a sua pele era de um moreno acobreado como o de uma estátua criada pelo mais renomado artista. Preferiu passar ao largo, mesmo com sua habilidade ele notou que os dois olhavam para ele. Um garoto com cabelo de fogo, fogo de verdade e um bastão pendurado nas costas! Os dois aparentavam bastante cansaço. Mas o que era mais peculiar era a criatura grotesca aninhada nos ombros do garoto, uma mistura de lagarto com garras longas. E o pior, a criatura falava!
_ É cada uma, eu me achando esquisito e feio, – pensou Theraquiel – aí eu topo com uma tocha ambulante com um lagarto estranho pendurado no ombro.
Os olhares se cruzaram por um instante, Theraquiel sentiu uma energia estranha vida do outro garoto, algo contido, controlado, algo que talvez o próprio portador nem soubesse que estava ali. Algo dizia que devia ir até eles e conversar, tentar uma aproximação, talvez até ser amigos, mas, sua missão exigia que ele corresse sem pausas. Por isso ele queria o caminho mais curto, mais perigoso, mas sem dúvida o mais curto.
Enquanto os dois garotos e a criaturinha entravam na cidade, com todo o barulho dos sinos de alarme e a movimentação das Sentinelas, Theraquiel apertou o passo rumo ao leste, para o tão mal falado Desfiladeiro do Canto.
Lochiel entrou de súbito no aposento mal iluminado pelas poucas e desgastadas velas que ainda estavam de pé. Os móveis quebrados deixavam claro a fúria do combate que acontecera. Havia marcas de queimado pelas paredes e dois homens encapuzados jaziam mortos, queimados até os ossos na sala. Estava tudo um caos e mesmo assim o garoto sabia onde sua presença era necessária. Usou as sombras para se esgueirar e foi até o quarto principal onde um vulto encapuzado abria uma brecha na parede da casa e saltava para fora, mas o garoto não ligou pra ele. Um corpo conhecido jazia estendido no chão com mais dois encapuzados fora de combate estendidos ao lado dele.O menino abandonou seu disfarce ao ver seu mestre e amigo agonizando com um enorme buraco cauterizado no peito. De joelhos ao lado do corpo estava Alice, a bruxa, versada nos mais diversos tipos de feitiços e
A garota estava remoendo sua dúvida. Seus antepassados, todos homens, de uma linhagem de guerreiros poderosos e musculosos, honraram a família com a vitória de grandes batalhas. Todos eles foram mestres em algo. Espadas, arcos, lanças, porrete, luta corporal, bestas, alabardas e tudo mais que era conhecido neste mundo em relação a armas.Ela nascera em um dia chuvoso e triste, antes do tempo previsto e sua mãe não conseguiu esconder a decepção ao ver nos seus braços aquela criatura frágil, careca e fêmea.Em toda a sua vida até agora, ela havia demonstrado total inaptidão as armas e a luta. Se não fosse pelo fato de ser filha do chefe e ter quebrado a linhagem de valorosos guerreiros homens, estaria tudo certo. Não foi por falta de tentativas e treinos duros, muita
As Sabuja Jami, ou Terras Verdes, no idioma comum, não eram lugares fáceis de se viver. Era uma boa terra, fértil e como o nome mesmo diz, repleta de verde. Nas serras que abundam pela região, um musgo grosso e alto, de um verde vivo, cresce no lugar do capim, os camponeses o consideram uma praga porque mata o pasto e até mesmo arbustos menores. Suas raízes rasteiras, dominam as plantas que crescem a sua volta, sugando os nutrientes até matá-las. A maioria dos velhos diz que o nome da terra vem dessa planta que é capaz de sobreviver ao mais rigoroso inverno e ao estouro de uma manada de Rochosos. Aldeias, vilas e cidadelas tentavam sobreviver e ganhar espaço por entre florestas de palmeiras e samambaias de tamanhos colossais. As matas gritavam o tempo todo com suas criaturas de diversos tamanhos e formas, terrestres, voadoras ou aquáticas. Lugares que revelavam os antigos habitantes eram proibidos, exceto é claro para os aventurei
Theraquiel não se importava com a sola gasta dos seus sapatos e da dor que estavam em causando-lhe. Caminhou durante o dia e parte da noite, sem perder um minuto sequer. Atravessar as Sabuja Jani era relativamente simples desde que você não se perdesse em alguma mata, caverna ou templo abandonado ou fosse devorado por alguma criatura, sequestrado por bandidos ou algum mago estudioso louco. Não conseguia entender como tudo naquele lugar cheirava a conspiração e violência. Talvez fosse só o modo como foi criado e doutrinado, mas não conseguia confiar em nada nem ninguém. Quando conseguiu divisar os paredões do desfiladeiro, redobrou os seus cuidados. Aquela região era temida até mesmo pelos soldados do rei e estava literalmente abandonada à própria sorte, desde quando os magos renegados buscaram refugio e fizeram daquela região o seu co
Na Serra próxima da aldeia incendiada, Lochiel, o transmorfo, fechava da melhor maneira que podia a ferida no braço de Alice. Estava cansado e sem energia para realizar magia. Parecia que o perigo já havia passado, mas estava atento a qualquer movimento. Seus sentidos lupinos estavam em alerta máximo. Acendeu uma pequena fogueira para aquece-los quando a noite começou a cair, não tinham nada para comer e sua barriga roncava. Alice ainda dormia, sua vida não corria risco, mas a exaustão da batalha e o uso excessivo de magia chegara ao limite. Estava quase dormindo também, mas um farfalhar nas moitas próximas o despertou completamente. Uma criatura minúscula espreitava por entre a folhagem. Ao vê-la, Lochiel não pode deixar de sentir um certo alívio. _ Pelas raízes da Árvore Mãe! Athala, seu demoniozinho feio e sujo! - exclamou, com um misto de alegria e raiva.
Há milênios os druidas antigos receberam um conhecimento amplo e único de toda a natureza daquelas regiões. Todos eles partiam em uma jornada para conhecer cada aspecto dessa natureza, no deserto, nas florestas quentes e úmidas, nos pântanos e até nas montanhas congeladas. Era necessário entender toda a cadeia de vida de cada lugar para entender o fluxo universal, a cadeia de energia que convergia para o centro do mundo. Era comum entre os druidas chamarem aquela continente até onde as águas do mar sumiam pelo horizonte de Imati Midiri, Terras da Mãe. Claro que cada região tinha seu nome especial e era regido por uma entidade criada pela própria natureza para ser sua guardiã. Druidas eram respeitados em qualquer tribo, em qualquer aldeia que passassem. Não eram vistos como deuses, mas sim como grandes sábios que podiam curar doenças, ajudar a melhorar o cultivo e o gado e ensinar os jovens o respeito pela terra. No começo de cada inverno, eles se reuniam na Arvore Real, a ma
Lochiel e Alice entraram em uma Alderim em polvorosa. Athala preferiu ficar do lado de fora, criaturas como ele não era muito bem vindo, costumavam causar medo ou até mesmo repulsa em alguns, fora que também, segundo ele, poderia não resistir ao impulso de “pegar emprestada” alguma coisa que não fosse dele. A confusão na “Taberna do Javali Dentado” assumiu proporções assombrosas quando a luta chegou às ruas. A luta só acabou quando os guardas chegaram. As Sentinelas do Rei eram soldados temidos até mesmo pelo mais valente mercenário, era a elite dos guerreiros do Reinado, escolhidos a dedo e treinados com rigor pelos mais experientes. Usavam armaduras completas feitas de um metal raro e caríssimo, portavam claymores, espadas grandes e pesadas, feitas do mesmo metal e carregadas de magia que lhes conferia um brilho acinzentado. Não era possível ver o rosto dos soldados por entre a viseira dos elmos, o que gerava lendas a respeito. Alguns diziam que os soldados eram submetidos
Benialli acordava em lapsos febris. Durante esse tempo podia sentir que tentavam lhe tirar o sabre das mãos, mas ele o agarrava firme. Ele via os rostos já conhecidos de vários guerreiros da guarda que vinham lhe visitar, alguns levando frutas e água fresca. O garoto estava além do cansaço normal de uma pessoa. Com a pele esfolada e diversos hematomas, seu corpo inteiro doía, sem contar com as queimaduras que não eram tão serias, mas doíam da mesma forma. Conseguiu acordar de verdade muito tempo depois, desejando do fundo da alma que tudo que acontecera tivesse sido um sonho. Ao se levantar custosamente da cama devido a uma dor intensa nas costelas, sentiu o toque afiado e frio da lâmina que surgira quando o Efrite foi derrotado pelo sacrifício de seu pai, ainda segurava a arma como se ela lhe desse algum tipo de esperança, como se ela fosse a resposta para algo que ainda nem imaginava. Do lado dele o velho Barbello também acordou, limpando a barba da saliva q