Araraquara, 27 de setembro de 2015.
Havia acabado de ler as inúmeras páginas que papai me deixara naquele fim de tarde. As últimas traziam uma letra tremida e cansada, muito diferente da forma segura com que começara as anteriores. Meu coração batia horrorizado. Jamais, em minha vida, pude imaginar o que ele trazia tão bem guardado dentro de si. Minha mãe nunca sequer tentou nos contar algo parecido com o que eu acabara de ler, mesmo quando lhe pedíamos para nos contar histórias sobre assombrações, quando as luzes se apagavam por causa de algum temporal. Mas ainda havia mais.
Querida Val,
Foi assim que verdadeiramente conheci sua mãe e nos apaixonamos. O que contávamos
São Paulo, 1899.Ele se encontrava sentado à escrivaninha, pensando em como proteger a São Paulo Railway dos ataques feito, pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, contra o seu monopólio. Preocupado, sob pressão, pensava que a única solução seria comprar a Estrada de Ferro Bragantina e expandi-la, impossibilitando a passagem de outra ferrovia na região, como queria a Mogiana. Era a única solução para não ferir as leis de proteções legais e concessões. Era sua responsabilidade, como advogado, não deixar nenhuma brecha para um possível processo contra a Railway.Cansado, em meio aos l
Araraquara, 20 de setembro de 2015.Estava extremamente atarefada, como sempre acontece quando se tem que cuidar da casa, do marido, dos filhos e da carreira. Naquela manhã de segunda-feira, em particular, me encontrava ansiosa e meio desligada. Havia sonhado com meu pai. Depois que falecera, só havia sonhado com ele umas duas vezes no máximo. E foi pra lá de estranho. Tão real! Depois que me levantei, passei a ficar irrequieta, mesmo estando concentrada nos afazeres. Sentia um aperto no peito cada vez que me lembrava do sonho e do que ele me pedira para fazer. A saudade se misturava à apreensão. Em algum momento teria que voltar à sua casa, e com certeza iria imediatamente ao seu lugar preferido — a escrivaninha de mogno do seu escritório — já que a cena toda se passava lá, com ele sentado na sua poltrona preferida de co
Estava protelando, já fazia algum tempo, o destino que daríamos à casa de papai. Evitava o assunto com meu irmão e cunhada, entretanto, tinha que ser pragmática. Era o que o velho queria de nós. Eles se foram. Mas a casa continuava lá, cheia de lembranças, porém, esperando por uma nova família que lhe devolvesse a vida.Vendê-la seria doloroso. Alugá-la, estava fora de cogitação. Morar lá, uma possibilidade. Mas qual de nós dois voltaria a viver naquele lugar, sendo que ambos tínhamos nossas próprias casas? Aquilo tudo era pura recordação. Cada canto daquela casa lembrava algo. A primeira boneca, o primeiro joelho ralado, a descoberta do sangue e do antisséptico, o amor incondicional da mãe curando nossas feridas, e tantas outras coisas. Na cozinha, ainda conseguia vê-la.Parece que ficara ali para sempre, em p&e
Araraquara, 27 de setembro de 2015.Estranhamente, minha cunhada me ligou na sexta-feira, pedindo-me para encontrá-la na casa de papai, na manhã seguinte, onde um corretor nos esperaria para avaliá-la. Havia conversado por alto com meu irmão, depois que havia sonhado com meu papai, para falarmos sobre sua casa. Ainda não estava certo se a venderíamos, mas, dependendo do valor e da proposta, talvez fosse a coisa certa a fazer.— Val? É Meire. Já está na casa? — Gritou ao celular, assim que acabara de estacionar o carro, naquela manhã ensolarada.— Estou. Onde você está?— Não vou poder ir. Vou ter que levar o Ian ao pediatra. Teve febre à noite toda.— Ah, pobrezinho! Tem médico hoje?— O pediatra dele é particular. Atende a qualquer hora.&mdash
Vila de Paranapiacaba, 1946.Foi o ano do grande incêndio na Estação da Luz, que quase a dizimou. Por sorte, os documentos dos empregados da Companhia estavam seguros em outro prédio, o que levou muitos a pensar que o incêndio fora criminoso, já que o fogo começara justamente nos escritórios da Estação. Na época eu estava com vinte e dois anos e recém-formado em advocacia pela Faculdade do Largo São Francisco. Fui enviado pela empresa em que trabalhava na época a uma Vila do Distrito de Santo André, para tratar de assuntos pertinentes aos empregados da São Paulo Railway Company. Essa empresa acabara de perder a concessão da exploração da ferrovia, assinada por Dom Pedro
Com pensamentos doces aliviando minha mente, enquanto assobiava uma valsa alegremente, abri a mala e guardei meus ternos num armário pequeno de mogno, ao lado da cama. Olhei pela janela e pouco vi do vilarejo. Pensei em deixar a pensão e ir direto aos meus afazeres, mas como conseguiria chegar ao meu lugar de trabalho sem conseguir enxergar um palmo diante do nariz? Refestelei-me na cama, após pendurar o paletó na única cadeira disponível, e ali fiquei pensando em qual seria o próximo passo.Teria que me apresentar aos cidadãos da Vila, embora já me esperassem de antemão, e explicar-lhes as novas condições de trabalho. Muitos seriam reaproveitados pelo governo, que não via a necessidade da contratação de novos funcionários, já que os serviços de manutenção da ferrovia continuariam os mesmos, por enquanto. Minha preocupação e
Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.<
Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?— Por favor.Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.— Mas ontem à tarde...— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela