Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.
— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.
Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.
— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.
— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.
— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.
Não podia dizer o mesmo. Sentia-me um janota diante dele. Um janota sem músculos. Tínhamos quase a mesma altura, sendo eu um pouco mais baixo.
— Então? A que devemos a honra da sua visita? — Perguntou, encostando as costas largas no pequeno espaldar da cadeira de madeira, extremamente à vontade.
— Não vim à visita, nem a passeio. Vim a pedido da empresa para quem trabalho.
— Para nos jogar na rua?
— Por que pensa isso?
— Não é isso que as empresas fazem quando não precisam mais de nós? — Perguntou ferozmente, tomando mais um gole da caneca.
— Não nesse caso. Estou aqui para garantir os direitos de vocês, trabalhadores braçais.
Sei que não devia ter frisado trabalhadores braçais, mas algo naquele gigante me irritava. Se ele tinha músculos, pelo menos eu tinha cérebro. Pensava com desdém.
— Óoooh! — pareceu-me mais do que sarcástico — E que direitos seriam esses?
— Aposentar os que já estão na idade, já que é um direito que só cabe aos ferroviários; e garantir a contratação dos restantes pela União, na Carteira Profissional.
— E por que deveríamos confiar no governo?
— Por que é assim que tem que ser. A não ser que queiram simplesmente deixar a cidade, rumo a novos horizontes. — Encarei-o com um quê de raiva, arrancando-lhe outra gargalhada retumbante.
— Pois se é assim, então podemos conversar de homem para homem.
— Pois diga o que tem em mente.
— Farei o seguinte, doutor. Marcarei uma reunião com o pessoal amanhã à noite e então o senhor poderá explicar exatamente como as coisas acontecerão.
— Feito.
— O seu Antônio lhe avisará o local e o horário e, enquanto isso, — levantou-se abruptamente — sugiro que não convide mais dona Irina para passeios noturnos. Não é assim que procedemos nessa Vila.
Fiquei calado. Não valia a pena arranjar confusão com o gigante, que até aquele momento ainda não sabia seu nome, sob pena de não poder cumprir a missão que me fora incumbida.
— Espero não ter me tornado indesejado ao convidar a moça. Foi algo inocente, posso garantir-lhe.
— Pois que não se repita, doutor. A moça tem dono, se é que me entende.
— E o dono seria o senhor, pois não? — Perguntei e me arrependi na hora.
— Sou seu dono — falou, enquanto colocava a mão enorme em meu ombro, apertando-o até quase me fazer curvar sob seu peso, porém, ela ainda não sabe. — Soltou mais uma das suas risadas arrojadas.
Fiz-me rir junto com ele. Não que fosse covarde e tivesse medo de trocar alguns socos com o brutamonte, mas, novamente, precisava que as negociações corressem bem para que pudesse voltar à empresa com tudo resolvido.
— Boa noite, doutor. Termine sua bebida. — Fez um gesto com a cabeça, indicando a caneca quase intacta na mesa.
— Terminarei, senhor...
— Que falta de educação a minha. Marcus Wright. — Estendeu-me a mão e apertou a minha, quase a esmagando.
— Olavo Borges. Doutor Olavo Borges. — Frisei bem minha condição superior.
— Nos vemos amanhã, doutor. Tenha bons sonhos. — Disse com uma risada cínica e me deixou.
Despediu-se do meu senhorio, não sem antes trocar um dedo de prosa com a pequena, quando o pai retirou-se discretamente da recepção.
Esperei que ele saísse e me dirigi à porta de entrada. A cerração havia tomado conta da Vila novamente e um ar gelado invadia as calçadas.
— Vai sair, doutor? — Perguntou-me a moça.
— Acho que não. Só queria olhar a noite, mas...
— A neblina voltou. É sempre assim. Deve ficar aqui. Sozinho é possível que se perca.
Quase a convidei novamente para um passeio, mas preferi voltar ao meu quarto e tentar dormir.
— Bem, acho que só resta me retirar aos meus aposentos. Quer ajuda para fechar a pensão? — Perguntei de forma educada.
— Não é necessário. Manteremos a porta encostada até às dez horas.
— Bem, então...
— Boa noite, senhor. — Disse, abaixando os olhos recatados.
Resignei-me e fui para o quarto. Talvez um bom livro fizesse o sono vir, e assim o fiz.
Andava por meio das casas desordenadas, enquanto subia a serra. Estranhamente, sentia-me eufórico ao invés de cansado por tamanho esforço, para alguém acostumado a andar somente em solo plano. Regozijava-me ao ver casas de madeira amontadas, que cresciam como se não precisassem de ruas e avenidas e, mais ainda, quando parei em frente a uma delas. Ficava na rua da ladeira, próxima a uma Igreja. Senti o coração bater rápido ao vislumbrar a casa. Assoviei e percebi a cortina balançar dentro da casinha simples de dois andares. Apertei o passo e como num passe de mágica, encontrava-me no pátio, em frente a tal Igreja. Inclinei o pescoço para trás e li as brancas letras de forma, pintadas próximas ao telhado, informando de que se tratava da Igreja Senhor Bom Jesus de Paranapiacaba. Alguém estava vindo, tinha certeza de que se tratava de uma mulher. Logo a teria em meus braços. Enquanto antecipava a visão de Irina se encontrando comigo na Igreja, a neblina me envolveu por completo e senti medo. Olhei ao meu redor tentando, desesperadamente, achar a moça, mas ela parecia não estar ali. Chamei-a, porém nada ouvi. Então, senti uma mão tocar meu rosto. A mão era fria. Ouvi um riso e me virei em sua direção. A mão parecia brincar comigo. Ora tocava em uma face, ora em outra, feito pluma. Sua alegria me contagiou e acabei rindo com ela, como numa dança, onde eu, cego, a perseguia. Então, de repente sua alegria se fora e tudo voltou a ficar branco. Senti um medo terrível gelar meu coração ao ouvi-la:
— Finalmente o encontrei — seu hálito gelava minha face — Em breve estaremos juntos, meu amor.
Acordei assustado, com o sol entrando pela janela do quarto, enquanto meu coração batia descompassado.
Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?— Por favor.Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.— Mas ontem à tarde...— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela
Recolhi-me ao quarto e lá fiquei a tarde toda. Aquela neblina densa me impedia de sair da pensão. Preparei-me para o encontro daquela noite, pois sabia que seria bombardeado de perguntas e ainda teria que encarar meu rival. Não tinha tido a oportunidade de descobrir se o coração de Irina batia por alguém, mas, com certeza, naquela noite descobriria. Assim como todos da Vila, ela estaria lá com os pais.Seguimos juntos para o Clube e aprovei a oportunidade para ficar alguns minutos ao lado de Irina, que caminhava segurando um xale sobre os ombros, enquanto seus pais seguiam à frente, abrindo caminho por entre as brumas.— Parece irrequieta, senhorita — perguntei vendo-a tão calada — Algo a preocupa?— Não. — Sua voz saiu num sussurro, quase inaudível.Segui em silêncio, querendo arrancar alguma palavra de seus lábios, porém, por ma
Deitei-me naquela noite a sonhar com as mãos macias da pequena. O cheiro da erva aromática que Irina colocara em meus olhos, fazia-me confundir com seu cheiro doce de flor de laranjeira. Estava perdidamente enamorado. Confesso. Apaguei, pensando nela.Novamente andava por aquele conjunto de casas desarranjadas, próximas à Igreja. Assoviei novamente em frente à janela de uma das casas assobradadas e novamente vi a cortina se movimentar. Apertei o passo e segui em direção ao pátio da Igreja. Era fim de tarde. A noite adentrava e as primeiras estrelas começavam a despontar no céu. Ouvi um barulho às minhas costas e me virei. Perdi o fôlego ao ver a pequena à minha frente. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite que caía e, seus olhos, de um azul turquesa fantástico, iluminavam a face branca e límpida. Sorriu ao ver-me e foi como se mú
Às cinco horas, ouvi uma batida insistente na porta do quarto. Encontrava-me deitado, com os olhos fechados e o braço direito descansando neles, como se isso pudesse aliviar a dor que sentia.— Está aberta. — Respondi às batidas insistentes.— Olavo, você está bem?Ah, aquela voz de anjo encontrava-se preocupada. Talvez, se fizesse a dor se tornar mais feia do que estava, poderia acabar nos braços da moça, afugentando o torvelinho de emoções que me deixavam entrevado naquela cama. Sonho, apenas! Isso poderia abalar a reputação da pequena e Deus sabe o que poderia acontecer comigo, caso o pugilista descobrisse.— Apenas uma enxaqueca. — Afirmei, tirando o braço dos olhos, focando-os nela.— Mamãe mandou servir-lhe o chá. Quer outra aspirina?— Talvez. — Disse, erguendo-me da cama.&mdas
Assim que chegamos à pensão fui direto para o quarto. Estava atordoado. O beijo de Irina ainda latejava em meus lábios, porém, aquela sensação nostálgica de pertencer à outra pessoa, a outro lugar, ainda me assombrava. Não aguentando mais a opressão daquelas quatro paredes, desci à sua procura. Queria que o jantar terminasse logo para que pudesse tê-la apenas para mim. Precisava saber o que ela tanto teimava em me esconder. Desci a escada de dois em dois degraus e estanquei quando vi Marcus segurando novamente seu braço de forma possessiva. — Virei buscá-la para o baile. Seu pai me deu permissão. — Mas eu não dei. Não irei com você. — Respondeu, puxando o braço. Ele a olhou enviesado, avaliando-a, feito um animal sobre sua presa. Naquele momento senti orgulho da menina. Ela o encarou de volta com superioridade, o que o fez abaixar os olhos. Um humilde a seus pés. — É por causa daquele doutorzinho frouxo? — Não diga bobagens! Eu mal o conheço.
Paranapiacaba, 1867.A Vila estava a todo vapor. Homens andavam de um lado a outro pela linha férrea. Alguns carregavam as malas dos passageiros que pernoitariam na Vila, outros ajudavam na Casa das Máquinas e outros apenas perambulavam sob as ordens dos engenheiros que administravam o lugar. As casas de madeira geminadas coloriam o alto da serra. Da mansão, que imperava do ponto mais alto do lugar, vidros reluziam de onde o homem de altura elevada comandava a Vila e a estrada de ferro. Nada escapava aos seus olhos. Qualquer jovem solteiro que se aventurasse a passear despercebido pela casa dos casados era demitido na hora. A ordem era tudo para aquele nobre inglês, severo, dono de exuberantes suíças.
Enquanto Etelvina e Branca, na parte alta da Vila, sonhavam com vestidos e penteados, na Vila Martin Smith, durante o chá das cinco, as senhoras inglesas empoladas comentavam sobre o baile, porém, uma delas ouvia atentamente a conversa e, de moça que era, se punha a sonhar.— Por que está tão quieta, Mary Ann? — Perguntou sua mãe, senhora Smith, colocando delicadamente a xícara no pires, enquanto pegava cerimoniosamente um biscoito amanteigado.— Em nada, mamãe. Só estava ouvindo-as comentar sobre o baile. — Respondeu com sua voz doce e melodiosa, que lhe rendia o aspecto de um anjo de cachos loiros, escondidos por um chapeuzinho no alto da cabeça.— Conheço esse brilho no olhar, Mary Ann. — Disse a senhora Fox, com um sorriso discreto nos lábios.— Não é nada, minha tia! — Sua voz dizia o contrário de se
Dona Etelvina caminhava pela plataforma da Estação da Luz, se equilibrando em meio a vários pacotes, tendo Branca em seu encalço.— Óh, Jesus, minha filha! Acho que exageramos nas compras. — Disse à Branca, enquanto tentava, sem sucesso, colocar os pacotes no bagageiro do trem, acima do banco de passageiros.— Papai vai ficar uma fera conosco, mamãe. — Respondeu Branca, com um sorriso doce nos lábios.— Deixes que com ele eu me entendo. Já está mais do que na hora de você ser mostrada à sociedade. Se depender de teu pai você nunca terá um bom marido. — Disse entre dentes, ainda tentando empurrar os vários pacotes.— Posso ajudá-las? — Perguntou o jovem distinto, se aproximando por trás das senhoras.Dona Etelvina virou-se assustada para a voz que a importunava, porém, logo se aca