Com pensamentos doces aliviando minha mente, enquanto assobiava uma valsa alegremente, abri a mala e guardei meus ternos num armário pequeno de mogno, ao lado da cama. Olhei pela janela e pouco vi do vilarejo. Pensei em deixar a pensão e ir direto aos meus afazeres, mas como conseguiria chegar ao meu lugar de trabalho sem conseguir enxergar um palmo diante do nariz? Refestelei-me na cama, após pendurar o paletó na única cadeira disponível, e ali fiquei pensando em qual seria o próximo passo.
Teria que me apresentar aos cidadãos da Vila, embora já me esperassem de antemão, e explicar-lhes as novas condições de trabalho. Muitos seriam reaproveitados pelo governo, que não via a necessidade da contratação de novos funcionários, já que os serviços de manutenção da ferrovia continuariam os mesmos, por enquanto. Minha preocupação era com relação aos Engenheiros-Chefes da Companhia. Obviamente eles sabiam que teriam que deixar seus cargos, porém, muitos já estavam no lugarejo há alguns anos. É claro que me refiro aos da última contratação.
Divagando sobre minha abordagem, acabei não reparando que a neblina havia se dissipado, deixando a vista pela janela bastante pitoresca. Aproximei-me dela e fiquei maravilhado com a serra e também com a visão de um casarão de cor vermelha que, mais tarde, vim saber que se tratava do tal Clube Lyra Serrano, onde se dava a vida social do vilarejo e onde possivelmente poderia ter a pequena rodopiando em meus braços. Senti imediatamente um bem estar, associado a alguma ansiedade. Resolvi descer até a recepção, e quem sabe, explorar um pouco do lugar antes do jantar. Porém, antes que pudesse abrir a porta, uma batida suave me deixou curioso. Vesti o paletó e abri a porta, apenas para contemplar a beleza da minha encantadora anfitriã.
— É hora do chá. Mamãe pediu-me para avisar-lhe. Gostaria de uma xícara e alguns bolinhos amanteigados? — Perguntou-me, sem me encarar.
— Hora do chá?
— Seguimos a tradição inglesa, senhor.
— Ah! O famoso chá das cinco. Acho que aceitarei.
Segui a pequena, mais para ter alguns minutos em sua companhia do que pelo chá em si. Prefiro um café preto e forte.
— Por aqui, senhor. — Encaminhou-me a uma mesa redonda, num salão ao lado da recepção.
— Por favor, senhorita, — chamei-lhe a atenção, antes de me sentar — creio estar em desvantagem.
— Deseja algo mais, doutor? — Perguntou candidamente, frisando levemente minha condição de advogado.
— Sim. Desejo saber seu nome. — Fitei-a impaciente, enquanto ela parecia relutar em responder.
— Irina, doutor.
— Irina — sorri, diante do seu enrubescimento — combina com a senhorita.
Sentei-me à mesa, satisfeito em descobrir seu nome, e fiquei esperando alguém retornar com o enfadonho chá. Reparei que quase todas as mesas estavam ocupadas. Mulheres com seus casaquinhos e saias justas, com filhos obedientes se empanturrando de doces. Não havia homens no lugar. Lembro-me de pensar que era óbvio que estavam trabalhando e eu deveria estar fazendo o mesmo. Porém, consolava-me o fato que teria muito tempo para fazer o meu trabalho. No momento, estava mais preocupado em analisar as pessoas e começar a conhecê-las, principalmente minha senhoria.
— Como vai senhor? — perguntou uma senhora loira, baixinha, ainda com a tez muito bonita. — Posso servi-lo?
— Por favor.
— É a senhora minha senhoria? — perguntei curioso, analisando suas feições, tão parecida com as da minha pequena de olhos claros.
— Dona Elena, a seu dispor.
— Sua pensão é muito bonita, senhora.
— Obrigada. Minha filha já lhe informou as regras da casa, pois não?
— Estou a par, senhora. — Respondi, enquanto ela despejava o chá insosso numa xícara de porcelana.
— Pois bem. Não se atrase. E nunca ande sozinho à noite pelo bosque. É perigoso.
Assim que ela avisou, virou e se foi, me deixando boquiaberto. Não que ela fosse rude, longe disso. Era uma senhora simpática, contudo, um tanto ansiosa, assim como a maioria das pessoas do vilarejo, como viria a descobrir. Tomei um gole do chá e acabei admirando o sabor acentuado e forte do que previra ser insosso. Talvez os ingleses não estivessem tão errados em preferi-lo ao café. Comi alguns bolinhos, que derreteram maravilhosamente na boca, enquanto espiava por sobre o ombro, à procura da beldade loira. Mal havia me virado e lá estava ela, com uma bandeja, servindo as outras mesas. Azar o meu ter sido servido pela mãe, porém, não tinha do que me queixar. De onde estava podia contemplar suas feições suaves, a delicadeza daquelas mãos finas derramando o líquido dourado em xícaras de porcelanas brancas. Algumas vezes abria um sorriso ao falar com os pequenos, ansiosos por mais doces, o que fazia a sala resplandecer aos meus olhos.
Quando nosso olhar se cruzou, ela abaixou os olhos, envergonhada, o que lhe trouxe um rubor que acentuava a face límpida. Terminei o chá e me dirigi à porta de entrada. Dei alguns passos em direção à rua e saí caminhando, admirando as casas de estilo inglês, cujo recuo da rua dava lugar a lindos jardins ornamentais. Nessa época não era comuns casas recuadas das ruas, por isso lembro-me de ficar em pé, observando cada detalhe que minha mente podia armazenar, pensando em um dia ter a minha própria casa com um jardim imenso e tão belo quanto aqueles. Caminhei até o Clube da Lyra e entrei no jardim florido que adornava um coreto. Passei a admirar suas paredes de madeira Pinho-de-Riga, importadas da Inglaterra, como vim, a saber, mais tarde.
Encaminhei-me pela lateral do prédio, olhei pelas janelas de vidro do andar térreo e me deliciei com o piso de madeira escura, tão brilhante que quase o deixava vermelho. Pude ver tapetes emoldurando as escadas que subiam para o piso superior. Era um salão enorme. Com o crepúsculo caindo rapidamente, tive a ilusão de ver uma mulher rodopiando naquele salão vazio. Quase ouvi, ou melhor, senti a vibração de uma música suave, paralisando-me ante a visão da graciosidade da dançarina. Um estalo vindo do jardim quebrou a magia da visão. Voltei-me para a fonte do barulho e percebi que já estava ficando tarde. A noite parecia cair rapidamente naquelas bandas. Ansiava por um bom banho quente, por isso, apertei o passo em direção à pensão.
Após dirigir-me aos sanitários, do lado externo da pensão, asseei-me o melhor que pude e voltei para o quarto, à espera do jantar. Enquanto esperava para ser servido, conheci meu senhorio. Homem alto e grande, tão claro que quase parecia albino. Seus olhos azuis me olharam desconfiado.
— É o senhor o tal do advogado? — Perguntou apertando os olhos.
— Exatamente, senhor. Olavo Borges ao seu dispor. — Estendi-lhe a mão, que fora apertada bem forte. Talvez um pouco mais do que o normal.
— Quanto tempo ficará aqui, senhor?
— O tempo que for necessário. — Sorri, gentilmente.
Ele não respondeu. Ficou a me olhar interrogativamente, talvez pensando que eu estivesse ali para acabar com seu negócio. Erroneamente, creio que pensava que estava ali para acabar com o vínculo empregatício de todos os seus vizinhos.
— Espero que o senhor possa me apresentar às pessoas desse lugar. — Pedi-lhe educadamente.
— Talvez seja melhor o senhor falar com o encarregado-chefe.
— Entendo. Irei ter com ele assim que for possível, porém, gostaria de uma prévia com os funcionários da linha férrea.
— Acho melhor o senhor ter com o Inglês primeiro.
— Não estou aqui para prejudicar ninguém, senhor. Ao contrário. Quero garantir o emprego das pessoas.
Ele me olhou desconfiado mais uma vez. Ergueu os olhos em direção à filha e voltou a me olhar.
— Sendo assim, colocarei o senhor em contato com o pessoal.
— Eu agradeço, senhor.
— Não me faça me arrepender por tê-lo ajudado.
— Não o farei.
Deu-me as costas e meu olhar encontrou com o da menina. Sorri-lhe, mas ela não correspondeu. Jantei em paz naquela noite. Teria algum trabalho para ganhar a confiança do vilarejo, contudo, confiava na minha mocidade e astúcia.
Enquanto retiravam as mesas, não tão lotadas quanto à hora do chá, os poucos hóspedes que ali havia se retiraram para seus quartos, porém mantive-me sentado, observando. Pouco tempo depois, levantei e fui até a porta. Saí na rua e pude notar o céu salpicado de estrelas frias e a lua gigantesca no céu.
— Logo será a Lua de Sangue. — Ouvi a voz doce da menina, sussurrando ao meu lado, na calçada.
— Lua de Sangue?
— Sim. Daqui alguns dias ela estará gigantesca como hoje, porém vermelha.
— Nossa! Nunca a vi tão grande assim.
— Não é sempre que acontece. — Disse, me encarando abertamente pela primeira vez naquele dia.
— Gostaria dar uma volta? Assim poderá me contar mais sobre ela. — Arrisquei um passeio ao luar com a moça.
— Irina? – chamou uma voz grossa, vindo não sei de onde, assustando-a – O que faz aqui fora?
Virei-me para a voz ameaçadora e dei de cara com um rapaz robusto, alto, cabelos negros revoltos; olhando duro para mim e para ela. A manga da camisa de cambraia estava dobrada até o cotovelo, projetando braços ameaçadores de trabalhador braçal. Sabia, àquela época, não ser dotado de uma beleza extraordinária, contudo, não ficava atrás do pugilista à minha frente. Embora, de constituição menos sólida, sabia que meus olhos claros e meus cabelos castanhos davam alguma suavidade a meu rosto. Encarei-o, e nos medimos por alguns segundos, antes de Irina lhe responder asperamente:
— Nada. Já estava entrando, mesmo que isso não seja de sua conta. — respondeu um tanto rude — O que faz aqui? — Perguntou ríspida.
— Seu pai mandou me chamar.
— Pois então vá ter com ele.
Deixou-nos hesitante e entrou na pensão. Fiquei encarando o rapaz, sem entender o que acabara de presenciar entre os dois.
— Você deve ser o tal advogado, certo? – perguntou o pugilista, com cara de poucos amigos.
— Sim. E você?
— Sou o líder dos ferroviários. Seu Antônio pediu para vim ter com o senhor.
Havia me antipatizado com o rapaz logo de cara e acabara de descobrir que seria com ele que teria que travar conhecimento durante toda minha estada naquele lugar.
Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.<
Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?— Por favor.Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.— Mas ontem à tarde...— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela
Recolhi-me ao quarto e lá fiquei a tarde toda. Aquela neblina densa me impedia de sair da pensão. Preparei-me para o encontro daquela noite, pois sabia que seria bombardeado de perguntas e ainda teria que encarar meu rival. Não tinha tido a oportunidade de descobrir se o coração de Irina batia por alguém, mas, com certeza, naquela noite descobriria. Assim como todos da Vila, ela estaria lá com os pais.Seguimos juntos para o Clube e aprovei a oportunidade para ficar alguns minutos ao lado de Irina, que caminhava segurando um xale sobre os ombros, enquanto seus pais seguiam à frente, abrindo caminho por entre as brumas.— Parece irrequieta, senhorita — perguntei vendo-a tão calada — Algo a preocupa?— Não. — Sua voz saiu num sussurro, quase inaudível.Segui em silêncio, querendo arrancar alguma palavra de seus lábios, porém, por ma
Deitei-me naquela noite a sonhar com as mãos macias da pequena. O cheiro da erva aromática que Irina colocara em meus olhos, fazia-me confundir com seu cheiro doce de flor de laranjeira. Estava perdidamente enamorado. Confesso. Apaguei, pensando nela.Novamente andava por aquele conjunto de casas desarranjadas, próximas à Igreja. Assoviei novamente em frente à janela de uma das casas assobradadas e novamente vi a cortina se movimentar. Apertei o passo e segui em direção ao pátio da Igreja. Era fim de tarde. A noite adentrava e as primeiras estrelas começavam a despontar no céu. Ouvi um barulho às minhas costas e me virei. Perdi o fôlego ao ver a pequena à minha frente. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite que caía e, seus olhos, de um azul turquesa fantástico, iluminavam a face branca e límpida. Sorriu ao ver-me e foi como se mú
Às cinco horas, ouvi uma batida insistente na porta do quarto. Encontrava-me deitado, com os olhos fechados e o braço direito descansando neles, como se isso pudesse aliviar a dor que sentia.— Está aberta. — Respondi às batidas insistentes.— Olavo, você está bem?Ah, aquela voz de anjo encontrava-se preocupada. Talvez, se fizesse a dor se tornar mais feia do que estava, poderia acabar nos braços da moça, afugentando o torvelinho de emoções que me deixavam entrevado naquela cama. Sonho, apenas! Isso poderia abalar a reputação da pequena e Deus sabe o que poderia acontecer comigo, caso o pugilista descobrisse.— Apenas uma enxaqueca. — Afirmei, tirando o braço dos olhos, focando-os nela.— Mamãe mandou servir-lhe o chá. Quer outra aspirina?— Talvez. — Disse, erguendo-me da cama.&mdas
Assim que chegamos à pensão fui direto para o quarto. Estava atordoado. O beijo de Irina ainda latejava em meus lábios, porém, aquela sensação nostálgica de pertencer à outra pessoa, a outro lugar, ainda me assombrava. Não aguentando mais a opressão daquelas quatro paredes, desci à sua procura. Queria que o jantar terminasse logo para que pudesse tê-la apenas para mim. Precisava saber o que ela tanto teimava em me esconder. Desci a escada de dois em dois degraus e estanquei quando vi Marcus segurando novamente seu braço de forma possessiva. — Virei buscá-la para o baile. Seu pai me deu permissão. — Mas eu não dei. Não irei com você. — Respondeu, puxando o braço. Ele a olhou enviesado, avaliando-a, feito um animal sobre sua presa. Naquele momento senti orgulho da menina. Ela o encarou de volta com superioridade, o que o fez abaixar os olhos. Um humilde a seus pés. — É por causa daquele doutorzinho frouxo? — Não diga bobagens! Eu mal o conheço.
Paranapiacaba, 1867.A Vila estava a todo vapor. Homens andavam de um lado a outro pela linha férrea. Alguns carregavam as malas dos passageiros que pernoitariam na Vila, outros ajudavam na Casa das Máquinas e outros apenas perambulavam sob as ordens dos engenheiros que administravam o lugar. As casas de madeira geminadas coloriam o alto da serra. Da mansão, que imperava do ponto mais alto do lugar, vidros reluziam de onde o homem de altura elevada comandava a Vila e a estrada de ferro. Nada escapava aos seus olhos. Qualquer jovem solteiro que se aventurasse a passear despercebido pela casa dos casados era demitido na hora. A ordem era tudo para aquele nobre inglês, severo, dono de exuberantes suíças.
Enquanto Etelvina e Branca, na parte alta da Vila, sonhavam com vestidos e penteados, na Vila Martin Smith, durante o chá das cinco, as senhoras inglesas empoladas comentavam sobre o baile, porém, uma delas ouvia atentamente a conversa e, de moça que era, se punha a sonhar.— Por que está tão quieta, Mary Ann? — Perguntou sua mãe, senhora Smith, colocando delicadamente a xícara no pires, enquanto pegava cerimoniosamente um biscoito amanteigado.— Em nada, mamãe. Só estava ouvindo-as comentar sobre o baile. — Respondeu com sua voz doce e melodiosa, que lhe rendia o aspecto de um anjo de cachos loiros, escondidos por um chapeuzinho no alto da cabeça.— Conheço esse brilho no olhar, Mary Ann. — Disse a senhora Fox, com um sorriso discreto nos lábios.— Não é nada, minha tia! — Sua voz dizia o contrário de se