Estava protelando, já fazia algum tempo, o destino que daríamos à casa de papai. Evitava o assunto com meu irmão e cunhada, entretanto, tinha que ser pragmática. Era o que o velho queria de nós. Eles se foram. Mas a casa continuava lá, cheia de lembranças, porém, esperando por uma nova família que lhe devolvesse a vida.
Vendê-la seria doloroso. Alugá-la, estava fora de cogitação. Morar lá, uma possibilidade. Mas qual de nós dois voltaria a viver naquele lugar, sendo que ambos tínhamos nossas próprias casas? Aquilo tudo era pura recordação. Cada canto daquela casa lembrava algo. A primeira boneca, o primeiro joelho ralado, a descoberta do sangue e do antisséptico, o amor incondicional da mãe curando nossas feridas, e tantas outras coisas. Na cozinha, ainda conseguia vê-la.
Parece que ficara ali para sempre, em pé, ora no fogão, ora na pia, mas sempre ali. Doce e calma. As rugas se formando conforme seus cabelos embranqueciam. O cheiro do bolo, dos doces e o aroma da carne assando naquele velho fogão, impregnaram-se nas paredes de azulejos quadradinhos. Como um lugar pode guardar tanto a nossa impressão, como se fossemos apenas digitais? Tudo o que somos ou fazemos, no fundo, tornam-se apenas lembranças. Quando entrava na casa para ver meu pai, já doente e cansado, apenas esperando se juntar à mamãe, tinha a impressão de que ela viria pelo corredor, enxugando as mãos no avental, somente para ralhar comigo por não ter ido primeiro à cozinha dar-lhe um beijo.
Talvez fosse melhor se livrar da casa e apagar de uma vez as lembranças que nos fazem sofrer. Mas será que a casa é culpada? Será que a casa não é nosso próprio túmulo? Uma vez que tudo ali nos pertence, então não pertencemos nós à casa? Será que a morte não é continuar fazendo as mesmas coisas que fazíamos, sem ter a noção de que não precisamos mais fazer? Eu sei. Estou divagando. Mas é como me sinto em relação ao lugar onde vivi até me casar. Agora é a vez de sentir meu pai naqueles cômodos. Cada vez que me encontrar na sala de visitas e me sentar no sofá velho e puído, terei a impressão de vê-lo sentado naquela cadeira, atrás da sua escrivaninha, através da porta aberta do escritório.
Quase sempre estava lá, durante a noite e nos fins de semana, e creio que continuará assim. Não acredito nem em céu e nem em inferno. Acho que o inferno está aqui na terra e, de certa forma, o céu também. Nosso lar é o céu, para onde vamos quando nos desprendemos do corpo que nos sustenta. Basta alguém abrir a porta e lá estamos nós, permeados nas lembranças dos que nos amam. Talvez assim, o amor nunca nos deixe partir realmente.
Devo dizer que todo esse devaneio surgiu por causa do sonho. Embora quisesse ir, ainda naquele dia, procurar o que acreditava que ele havia deixado para mim, não consegui fazê-lo. O telefone começou a tocar e os problemas começaram a aparecer, exigindo minha presença no escritório. Durante o almoço, já nem lembrava direito de haver sonhado na noite anterior.
— Pai! — Chamou meu filho do meio, à mesa, durante o almoço.
— Hein?
— Dá pra emprestar o carro esse fim de semana?
— Para quê? — Perguntou, enquanto tomava o suco de morango, já desconfiado.
— Eu e os caras — se referia aos amigos da faculdade — tamo a fim de descer pro litoral.
— Litoral? – Quis saber, ressabiada, fazendo-o me lançar aquele olhar enviesado.
— É. Pode ser? — Respondeu com aquela expressão azeda, característica de todo adolescente.
— Mal voltou para a casa das férias e já vai viajar? Vai com quem? — Insisti, desafiadoramente.
— Já falei. Vai o Gui, o Pedro, o Murilo...
— E as namoradas?
— Não. Sem mulher para encher o saco. Só os caras.
— Sei — Respondi, contraindo os lábios, desconfiada.
— E aí, pai. Empresta o carro?
— Pra onde vocês vão? — Indagou meu marido, impaciente.
— Pra Ilha Comprida.
— Ilha Comprida? — perguntei surpresa — Adoro! Estivemos lá umas quatro vezes, antes de vocês nascerem; ainda quando, para se chegar a ela, tínhamos que atravessar um braço do mar de balsa.
— Sério? É legal lá? — Perguntou curioso.
— Eu adorava quando era meio inóspita. Agora parece que cresceu muito nesses últimos vinte anos.
— É. Os caras falaram que tá manero.
— Você sabe chegar lá? — Perguntou meu marido, olhando o menino meio ressabiado.
— Não! Mas com GPS...
— É, mas tem que prestar muita atenção àquela Serra de Paranapiacaba. Tem muitas curvas.
— É uma serra maravilhosa. Cheia de pés de manacás roxinhos e brancos – suspirei, saudosista.
— E então, pai? Vai emprestar ou não?
— Vou pensar. — Disse meu marido, encerrando o assunto.
Depois que ele saiu para o trabalho, Lucas começou a me atormentar:
— Pô mãe. Fala com ele. Não tem perigo. Eu sou cuidadoso, e os caras também.
— Ah, não sei não. O seguro tá só no nome dele e se você bater o carro, Deus me livre!
— Não vou bater, mãe. É só um fim de semana...
— Vocês vão ficar em que lugar da Ilha?
— Na verdade, os caras tão querendo ficar na cidade de Paranapiacaba.
— Na cidade? Nem sabia que tinha cidade. Pensei que fosse só a serra.
— Não, mãe. É uma cidade histórica. Cheia de mistérios.
— Huum. Não gosto disso. — Respondi sentindo um leve temor, como se uma mão tocasse meu coração.
— Ah, mãe. Nada a ver.
— Não sei não! Depois eu falo com ele. Agora me deixe em paz que eu tenho que trabalhar. — Encerrei o assunto categoricamente.
Uma sensação estranha me acometeu quando ele falou na cidade. Talvez tenha sido o jeito como se referiu a ela. Como se quisesse ir de qualquer jeito, não importando se proibiríamos ou não.
Mais uma vez, o telefone tocou e acabei voltando a atenção ao trabalho, esquecendo-me da casa de papai e da viagem do meu filho. Mal sabia que iria ouvir falar nessa cidadezinha novamente, em bem pouco tempo.
Araraquara, 27 de setembro de 2015.Estranhamente, minha cunhada me ligou na sexta-feira, pedindo-me para encontrá-la na casa de papai, na manhã seguinte, onde um corretor nos esperaria para avaliá-la. Havia conversado por alto com meu irmão, depois que havia sonhado com meu papai, para falarmos sobre sua casa. Ainda não estava certo se a venderíamos, mas, dependendo do valor e da proposta, talvez fosse a coisa certa a fazer.— Val? É Meire. Já está na casa? — Gritou ao celular, assim que acabara de estacionar o carro, naquela manhã ensolarada.— Estou. Onde você está?— Não vou poder ir. Vou ter que levar o Ian ao pediatra. Teve febre à noite toda.— Ah, pobrezinho! Tem médico hoje?— O pediatra dele é particular. Atende a qualquer hora.&mdash
Vila de Paranapiacaba, 1946.Foi o ano do grande incêndio na Estação da Luz, que quase a dizimou. Por sorte, os documentos dos empregados da Companhia estavam seguros em outro prédio, o que levou muitos a pensar que o incêndio fora criminoso, já que o fogo começara justamente nos escritórios da Estação. Na época eu estava com vinte e dois anos e recém-formado em advocacia pela Faculdade do Largo São Francisco. Fui enviado pela empresa em que trabalhava na época a uma Vila do Distrito de Santo André, para tratar de assuntos pertinentes aos empregados da São Paulo Railway Company. Essa empresa acabara de perder a concessão da exploração da ferrovia, assinada por Dom Pedro
Com pensamentos doces aliviando minha mente, enquanto assobiava uma valsa alegremente, abri a mala e guardei meus ternos num armário pequeno de mogno, ao lado da cama. Olhei pela janela e pouco vi do vilarejo. Pensei em deixar a pensão e ir direto aos meus afazeres, mas como conseguiria chegar ao meu lugar de trabalho sem conseguir enxergar um palmo diante do nariz? Refestelei-me na cama, após pendurar o paletó na única cadeira disponível, e ali fiquei pensando em qual seria o próximo passo.Teria que me apresentar aos cidadãos da Vila, embora já me esperassem de antemão, e explicar-lhes as novas condições de trabalho. Muitos seriam reaproveitados pelo governo, que não via a necessidade da contratação de novos funcionários, já que os serviços de manutenção da ferrovia continuariam os mesmos, por enquanto. Minha preocupação e
Acomodamo-nos numa mesa do restaurante. Sentei-me, encarando-o, à espera de que tomasse a iniciativa da conversa. Porém, ele se levantou e, instantes depois, voltou com uma garrafa transparente contendo um líquido que chamou de fogo paulista.— Noite gelada. Toma um gole doutor. — Pediu-me com olhos brilhantes e sarcásticos.Tomei a bebida, querendo me igualar a ele, que desceu rasgando minha garganta e inflando meu estômago. Ele riu da minha tentativa de esconder o horror que senti.— Bebida para homens fortes, doutor. Acho que o senhor não está acostumado a isso. — Ergueu a caneca e deliciou-se com outro gole, limpando a boca na manga da camisa.— Temos algo parecido em minha cidade. — Informei, com o rosto vermelho; e fui presenteado com uma sonora gargalhada.— Gosto do senhor. — Disse, depositando a caneca de metal na mesa, me encarando ferozmente.<
Demorei a me refazer do estranho sonho. Havia acabado de descer para o café da manhã quando dei de cara com Irina. Seu vestido azul rodado, emoldurado por um cinto preto, a deixava mais bela do que no dia anterior. Sorri-lhe educadamente e de sua boca recebi apenas um leve esgar.— Bom dia, doutor. Deseja seu café agora?— Por favor.Dirigi-me ao restaurante vazio, olhando curioso ao meu redor.— É apenas o senhor — disse, dando de ombros.— Mas ontem à tarde...— Todos vêm à hora do chá. Mamãe é especialista em bolinhos amanteigados. Receita de uma senhora inglesa passada à minha avó.— Estavam realmente saborosos. — Respondi, ávido por intitular uma conversa e descobrir mais sobre aquela garota.Ela se calou enquanto me servia. Gostaria de manter uma conversa fluente com a pequena, mas ela
Recolhi-me ao quarto e lá fiquei a tarde toda. Aquela neblina densa me impedia de sair da pensão. Preparei-me para o encontro daquela noite, pois sabia que seria bombardeado de perguntas e ainda teria que encarar meu rival. Não tinha tido a oportunidade de descobrir se o coração de Irina batia por alguém, mas, com certeza, naquela noite descobriria. Assim como todos da Vila, ela estaria lá com os pais.Seguimos juntos para o Clube e aprovei a oportunidade para ficar alguns minutos ao lado de Irina, que caminhava segurando um xale sobre os ombros, enquanto seus pais seguiam à frente, abrindo caminho por entre as brumas.— Parece irrequieta, senhorita — perguntei vendo-a tão calada — Algo a preocupa?— Não. — Sua voz saiu num sussurro, quase inaudível.Segui em silêncio, querendo arrancar alguma palavra de seus lábios, porém, por ma
Deitei-me naquela noite a sonhar com as mãos macias da pequena. O cheiro da erva aromática que Irina colocara em meus olhos, fazia-me confundir com seu cheiro doce de flor de laranjeira. Estava perdidamente enamorado. Confesso. Apaguei, pensando nela.Novamente andava por aquele conjunto de casas desarranjadas, próximas à Igreja. Assoviei novamente em frente à janela de uma das casas assobradadas e novamente vi a cortina se movimentar. Apertei o passo e segui em direção ao pátio da Igreja. Era fim de tarde. A noite adentrava e as primeiras estrelas começavam a despontar no céu. Ouvi um barulho às minhas costas e me virei. Perdi o fôlego ao ver a pequena à minha frente. Seus cabelos eram tão negros quanto a noite que caía e, seus olhos, de um azul turquesa fantástico, iluminavam a face branca e límpida. Sorriu ao ver-me e foi como se mú
Às cinco horas, ouvi uma batida insistente na porta do quarto. Encontrava-me deitado, com os olhos fechados e o braço direito descansando neles, como se isso pudesse aliviar a dor que sentia.— Está aberta. — Respondi às batidas insistentes.— Olavo, você está bem?Ah, aquela voz de anjo encontrava-se preocupada. Talvez, se fizesse a dor se tornar mais feia do que estava, poderia acabar nos braços da moça, afugentando o torvelinho de emoções que me deixavam entrevado naquela cama. Sonho, apenas! Isso poderia abalar a reputação da pequena e Deus sabe o que poderia acontecer comigo, caso o pugilista descobrisse.— Apenas uma enxaqueca. — Afirmei, tirando o braço dos olhos, focando-os nela.— Mamãe mandou servir-lhe o chá. Quer outra aspirina?— Talvez. — Disse, erguendo-me da cama.&mdas